sábado, 31 de março de 2007

A revolução não será televisionada

A revolução não será televisionada
11/09/2006
John Pilger
O meu primeiro documentário para a televisão foi The Quiet Mutiny [O motim silencioso], realizado em 1970 para a Granada. Era um filme inusual, entrelaçado de ironia e farsa, como que um Catch-22 factual, filmado num estilo gentil, quase lírico por George Jesse Turner. A história era algo como uma revelação em primeira­ mão: o grande exército dos Estados Unidos no Vietname estava a desintegrar­‑se à medida que recrutas irados levavam a sua rebelião de casa para os campos de batalha do Vietname. A evidência do filme de soldados disparando contra os seus oficiais e recusando-se a combater causou um furor entre os guardiães da verdade oficial. O embaixador norte­‑americano na Grã­‑Bretanha, Walter Annenberg, um velho amigo do presidente Richard Nixon, telefonou a Robert Fraser, director da Independent Television Authority (ITA) [Autoridade de Televisão Independente]. Embora não tivesse visto o filme, Robert estava apopléctico. Intimando os executivos da Granada, ele bateu na secretária e descreveu­‑me como «um subversivo extremamente perigoso» que era «anti­‑americano». Isto surpreendeu Bernstein, o fundador libertariano da Granada, que protestou que The Quiet Mutiny tinha recebido muitos louvores do público e, longe de ser anti­‑americano, só tinha mostrado simpatia pelo desespero dos jovens soldados apanhados numa guerra sem esperança. Quando voei para Nova Iorque e o mostrei a Mike Wallace, o repórter estrela do programa “60 Minutes” da CBS, ele concordou. «É uma verdadeira vergonha que não o possamos mostrar aqui», disse.Este medo e desgosto chegaram como uma surpresa para mim. Eu era um jornalista ingénuo nos meandros da televisão, especialmente sobre quão longe o poder estabelecido ia para a controlar. A longa lista de programas banidos, censurados e adiados sobre a Irlanda é testemunha disto, tal como o são os ficheiros desclassificados sobre a verdadeira razão pela qual The War Game, a brilhante recreação de Peter Watkins de um ataque nuclear contra a Grã­‑Bretanha em 1965, foi banido. (Na época, a BBC tinha mentido ao dizer que as “pessoas sensíveis” não seriam capazes de suportar assistir a The War Game. Na verdade, a BBC tinha entregue secretamente ao governo o controle editorial, com uma nota de Normanbrook, presidente do conselho de administradores, explicando que, embora o filme fosse «baseado em investigação cuidadosa de material oficial (...) e produzido com contenção considerável», a sua transmissão «poderia ter um efeito significativo sobre a atitude do público em relação à política de dissuasão nuclear».)Quase todos os mais de 50 filmes que fiz para a ITV (e uma série para o Channel 4) tiveram de navegar através de um sistema que raramente declara a sua intenção de criar e moldar a opinião pública. A BBC exemplifica isto, com a sua especiosa neutralidade, equilibrando miticamente extremos que se digladiam enquanto expele um fluxo de assunções oficiais e enganos como “notícias”. Na sua juventude, a televisão comercial britânica era diferente. Ao contrário dos seus equivalentes em qualquer outra parte do mundo, reteve um núcleo de pessoas que, como Bernstein, defenderiam aqueles que desafiavam a sabedoria recebida. Certamente, os meus colaboradores incluíram alguns dos melhores e mais arrojados, entre os primeiros os três jovens renegados da BBC que em primeiro lugar me sugeriram a televisão num restaurante de Soho em 1969. Os realizadores Paul Watson, Charles Denton e Richard Marquand eram produtos dos breves e esclarecidos anos de Hugh Greene na BBC. Reunidos pelo destacado actor David Swift, o nosso propósito, nas palavras de Watson, era «levar os documentários para além dos limites estabelecidos para o pessoal da BBC e trazer para a televisão assuntos indigestos para as hierarquias». Acreditávamos que faltava uma dimensão muito séria ao jornalismo que não fosse esclarecido pela opinião, pela ironia, pelo humor, pela compaixão e pelo engajamento. As nossas inspirações eram One Pair of Eyes, de James Cameron, e See It Now, de Edward R. Murrow.A ideia foi apanhada por World in Action, o marco de documentários da Granada que foi pioneiro de tanto jornalismo poderoso. Fui um dos primeiros repórteres de World in Action a aparecer à frente da câmara, encorajado por Charles Denton a não falar em “código da BBC” e a dizer claramente «o que tu próprio descobriste». De uma base norte­‑americana perto da fronteira cambojana, saímos em patrulha com um pelotão de “grunts” (homens destacados), no que eles chamaram «terra índia» (índia = vietcong). Não vimos nenhum vietcong. O que vimos foi uma galinha, que o sargento presumiu ser uma galinha vietcong e por isso digna de menção no seu registro como um «inimigo avistado». Quanto escrevi isto no meu comentário, um executivo da Granada queria saber a fonte da minha afirmação de que a galinha tinha filiação comunista. Depois de alguma agradável conversa nesta toada, apercebi­‑me que ele estava a falar a sério. «A ITA precisa de saber estas coisas», disse. «Não ficarão contentes a não ser que os tranquilizemos». Propus que a galinha permanecesse no filme como um companheiro de viagem, se não como portador de cartão [do partido], e isto foi aceite.Robert e Normanbrook estavam certos: o documentário político é de facto perigoso, porque pode circundar o clube que une e domina o poder político e jornalístico estabelecido. Além disso, o documentário como um “acontecimento” televisivo pode enviar ondas vastas e para longe. Year Zero: the silent death of Cambodia, que realizei com David Munro em 1979, fez isso. Year Zero não só revelou o horror dos anos de Pol Pot, mostrou como o bombardeamento “secreto” desse país por Nixon e Kissinger tinha proporcionado um catalisador para a ascensão dos Khmeres Vermelhos. Também expôs como o ocidente, conduzido pelos Estados Unidos e pela Grã­‑Bretanha, estava a impor um embargo, como um cerco medieval, ao país mais devastado da Terra. Esta era uma reacção ao facto de o libertador do Camboja ter sido o Vietname – um país que viera do lado errado da guerra fria e que tinha recentemente derrotado os EUA. O sofrimento do Camboja era uma vingança premeditada. A Grã­‑Bretanha e os EUA apoiaram mesmo o pedido de Pol Pot de que os seus homens continuassem a ocupar o assento do Camboja na ONU, enquanto Margaret Thatcher impediu que leite para crianças fosse enviado para os sobreviventes do seu regime de pesadelo. Pouco disto foi reportado.Se Year Zero tivesse simplesmente descrito o monstro que Pol Pot era, teria sido rapidamente esquecido. Ao reportar o conluio dos “nossos” governos, contou uma verdade mais ampla sobre como o mundo era dirigido. Até George W. Bush e Tony Blair terem forçado a sua sorte no Iraque e no Líbano, isto permaneceu um tabu.«Solidariedade e compaixão agitaram-se em toda a nossa nação», escreveu Brian Walker, director da Oxfam. Dois dias depois de Year Zero ter ido para o ar, 40 sacos de correio chegaram à ATV (posteriormente, Central Television) em Birmingham – 26.000 cartas de primeira­ classe só na primeira remessa. A estação juntou rapidamente 1 milhão de libras, quase todo em pequenas quantias. «Isto é para o Camboja», escreveu um condutor de autocarros de Bristol, incluindo o seu salário da semana. Pensões inteiras foram enviadas, juntamente com poupanças inteiras. Petições chegaram a Downing Street, uma após outra, durante semanas. Os deputados receberam centenas de milhares de cartas, exigindo que a política britânica mudasse (o que aconteceu, eventualmente). E nada disso foi pedido.Para mim, a resposta do público a Year Zero mostrou a mentira dos lugares­‑comuns sobre o “cansaço da compaixão”, uma desculpa que alguns emissores e executivos de televisão usam para justificar a actual descida ao cinismo e à passividade da Big Brotherland. Acima de tudo, aprendi que um documentário poderia reclamar memórias históricas e políticas partilhadas, e apresentar as suas verdades escondidas. A compensação era então um público compassivo e informado; e ainda é.

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