sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Natal


Natal - Reunião pública do Centro Espírita Pequenos Seareiros. Rio de Janeiro, 14 de Dezembro de 2010.

            Em 1914 inicia-se a Primeira Guerra Mundial. Os cenários, dos campos de batalha, lembravam o solo lunar, castigado pelos explosivos. Além disso, centenas de cadáveres permaneciam, muitas vezes, insepultos e, portanto, em estado de putrefação, o que tornava o ar irrespirável. As trincheiras, cavadas no chão, abrigavam aqueles combatentes do fogo adversário. Avançar posições era quase tarefa suicida. Levantar, distraidamente, poderia ser fatal. Alguns atiradores falavam que davam um “beijo de boa noite” nos adversários quando eles cometiam este descuido. A Europa fica arrasada, pela destruição material provocada, mas principalmente pela destruição moral, na saudade daqueles que deixaram o corpo físico vitimados pela violência dos campos de batalha. As estimativas do número de mortos ficam na casa dos milhões, variando de acordo com os estudiosos. Existe, no entanto, uma peculiaridade nesta guerra que gostaria de tratar: a trégua de Natal, que começou na véspera, ou no próprio dia de Natal, se estendendo por alguns dias. Em uma parte da frente de lutas, durou até março de 1915. Ela foi totalmente não-oficial e sem qualquer acordo prévio, um gesto espontâneo de boa vontade dos soldados que, até, contrariava a ordem de seus superiores hierárquicos. 
            Os conhecimentos que se tem a respeito do assunto são limitados às declarações dadas por testemunhas oculares. Na época, foi muito divulgada na Inglaterra e pouco menos na Alemanha. O governo britânico afirmava que se tratava de episódios isolados, ao passo que os da Alemanha e da França afirmavam que não havia acontecido, a despeito dos relatos de suas tropas.
            A maioria dos relatos é de encontros entre alemães e britânicos. Com os franceses foi mais difícil, uma vez que o país deles encontrava-se, então ocupado.
Em alguns pontos da frente, as tropas ouviam os soldados inimigos cantando cânticos de Natal e então começavam a “retaliar”, cantando também. Em outras ocasiões, gritos de “A Happy Christmas to you Englishmen!” eram abertamente lançados para as trincheiras britânicas, sendo cortesmente retribuídos. [1]
            Um correspondente de um jornal britânico (Daily Telegraph) escreveu que, em determinada parte da frente de combate, os alemães conseguiram passar um pedaço de bolo de chocolate para as trincheiras britânicas.
Junto do bolo veio uma carta pedindo o cessar-fogo para aquela noite, para que eles pudessem comemorar a ocasião e o aniversário do seu capitão. Os britânicos concordaram e enviaram tabaco como presente. Às 19:30 h, os soldados alemães se ergueram de sua trincheira e começaram a entoar cânticos, com cada canção recebendo aplausos de ambos os lados. Os alemães então conclamaram os britânicos a cantar também, mas um inglês ainda um tanto belicoso gritou: “Preferimos morrer a cantar, alemão!”, ao que um bem-humorado germânico respondeu: “Vocês podem nos matar se cantarem!” [2]
            Existem narrativas de que, soldados que na vida civil eram barbeiros, cortavam os cabelos dos soldados adversários. Conta-se, também, que num certo local um mágico, com auxiliares de ambas as nacionalidades, fazia seus números na “terra de ninguém”, onde se desenrolavam os combates. Existem referências de uma ceia de Natal, onde alemães e britânicos compartilharam um leitão assado. Menciona-se, até, que trocavam ferramentas entre si, a fim de repararem suas cercas de arame, das trincheiras!
            Graham Williams, soldado inglês, escreveu para sua irmã algumas conversas que teve com os alemães, nesta ocasião:
Ele me disse que tinha uma namorada em Londres e que a guerra havia interrompido seus planos de casamento. Eu lhe disse: ‘Não se preocupe. Nós derrotaremos vocês até a Páscoa e então você poderá voltar e casar com a garota’. Ele riu e então me perguntou se eu poderia mandar um cartão postal para ela e eu prometi que o faria.
Outro alemão (...) me mostrou uma foto de sua família em Munique. Sua irmã mais velha era linda e eu disse que poderia me encontrar com ela algum dia. Ele sorriu, disse que gostaria muito disso e deu-me o endereço de sua família.
Mesmo os que não conseguiam conversar podiam ainda trocar presentes - nossos cigarros pelos deles, nosso chá pelo seu café, nossa carne pela sua salsicha. Brasões de unidade e botões de uniforme eram trocados como souvenires (...) [3]
            Um dos episódios mais interessantes nestas tréguas eram as partidas de futebol, jogadas na “terra de ninguém”. Uma dessas partidas, onde os alemães ganharam por 3 a 2 foi interrompida por conta das ordens de um oficial superior alemão ficou sabendo e mandou interromper. Em uma ocasião, a partida terminou porque a bola bateu num obstáculo de arame farpado.
 
                            Fotografia mostrando soldados alemães se confraternizando no interior de trincheira britânica no Natal de 1914. 
            A necessidade de enterrar os mortos que estavam na “terra de ninguém” era outra motivação para as tréguas. Conta-se que em certo ponto da frente de combates, soldados de ambos os lados realizaram serviços fúnebres em conjunto, com todos lendo juntos o salmo 23: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará...”
            As tréguas geralmente terminavam da maneira que começavam. Por acordo mútuo. O Capitão Stockwell, do Royal Welsh Fusiliers contou assim o final de uma delas:
Às 8:30 h do dia 26, eu disparei três tiros para o ar, ergui uma bandeira com os dizeres “Merry Christmas” e subi da trincheira. Os alemães levantaram uma placa com os dizeres “Thank you” e o capitão deles apareceu no alto da trincheira. Nós nos saudamos e retornamos às nossas trincheiras. Em seguida, ele fez dois disparos para o ar. A guerra havia começado novamente. [4]
            O jovem soldado que escreveu para sua irmã guardou impressão interessante do encontro.
(...) depois de conhecer estes homens, me espanto em como nossos jornais haviam sido desonestos. Eles não eram os ‘bárbaros selvagens’ que nós havíamos lido tanto. Eles eram homens com casas e famílias, esperanças e medos, princípios e, sim, amor pelo seu país. Em outras palavras, homens como nós. (...)
Eu estava começando a voltar para a minha trincheira quando um alemão mais velho segurou meu braço e me disse: ‘Meu Deus! Por que não podemos ter paz para todos nós voltarmos para casa?’ Eu respondi: ‘Você tem que perguntar isso ao seu imperador’. Ele olhou para mim sério e disse: ‘Talvez, meu amigo. Mas também temos que perguntar aos nossos corações’. [5]
            Que data misteriosa e profunda essa! Como nos toca as fibras mais íntimas do coração! Que poder tem esse Homem, nascido numa manjedoura simples, entre animais e o povo! É ponto pacífico que muitos de nós entendemos esta data como sendo a oportunidade de trocar presentes. O comércio adora isso! “Já é Natal na Leader Magazine”, ouvimos isso, muitas vezes já no mês de Novembro! A mídia, de maneira geral, massifica a informação de que as pessoas estão comprando nas lojas de rua, nos shoppings, nos grandes centros comerciais. Crianças são entrevistadas, junto com seus pais, onde dizem o que esperam ganhar do Papai Noel, figura, para alguns mais velhos simpática. Quando eu era criança, tinha medo daquele homem enorme, vestido de vermelho, com um saco nas costas, com aquela barba desproporcional. Muita criança tem medo dele, como eu tinha. Agora, pode ser uma excelente opção de ganhos extras no fim do ano para aqueles senhores de mais de 50 anos, barbudos e um pouco acima do peso. Deve ser terrível suportar aquela roupa quentíssima. Aliás, este é outro aspecto de nosso Natal. Incorporamos elementos de outras culturas de maneira muito natural. As roupas de Papai Noel, as comidas e as bebidas que costumam vender nestas ocasiões são de clima frio, nada que se compare ao escaldante verão carioca. Mas o Natal não é dos convencionalismos. É de Jesus.
            Dessa maneira, entendo que, ao realizarmos enormes banquetes, onde a comilança predomina, aliada, muitas vezes, à bebedeira convencionalmente aceita (cerveja e vinho, para não falar dos destilados), estamos fugindo ao propósito mais elevado da comemoração - o nascimento de Jesus. Ele, que nasceu pobre, filho de pobres que não conseguiram um local para se hospedar na noite em que ele nasceu. Eis que, dentre os animais, no meio da gente simples do povo, Ele começa a sua missão. E quantos padecem privações, nesta data! As nossas mesas desperdiçando, muitos estômagos famintos... Muito luxo para rememorar o nascimento de um pobre que andou acompanhado de outros pobres. O nascimento de alguém que, hoje, seria considerado um excluído, no mundo. Será que haveria lugar para Jesus nascer no nosso mundo de hoje? Fica para refletir. Irmão X, numa bela mensagem do livro “Antologia Mediúnica do Natal” aponta, com muita sabedoria:
Quem sabe, Senhor, poderias voltar, consolidando a tua glória, como fizeste há quase vinte séculos?! Entretanto, não nos atrevemos ao convite direto. As estalagens do mundo estão ainda repletas de gente negociando bens transitórios e melhorando o inventário das posses exteriores. (...) Quase certo que não encontrarias lugar entre as criaturas. (...) que adiantaria o teu retorno se a estatística das coisas santas não oferece a menor garantia de vitória próxima? Como insistir pela tua volta pessoal e direta se na esfera dos homens ainda não tens lugar onde possas nascer, trabalhar e morrer?[6]
            Devo registrar que não sou contra, nem estou fazendo qualquer pregação contra a atitude de confraternizar. É uma prática sumamente saudável, que dá conta dos sentimentos de amizade, estima e afeto que sentimos pelas pessoas. Penso que muito do que vemos, nesta ocasião próxima ao Natal, se deve às influências de Jesus na nossa vida social. Penso que, apesar de todas as ressalvas que possamos levantar a respeito da atitude de muita gente sobre o Natal, existe, da parte da maioria das pessoas, muito boa vontade nesta época. Boa parte de nós procuramos reunirmo-nos com nossos amigos, conversarmos. O que chamo a atenção, de maneira negativa, é para a atitude com relação aos excessos, ao desperdício que muitas vezes acontece nestes dias. Comida para um batalhão, numa família de três, quatro pessoas. Bebedeira desenfreada, com episódios desagradáveis que o álcool provoca. Estou certo de que isso foge ao objetivo da data.
            Ainda no livro que citamos, encontramos uma história do Espírito Néio Lúcio que vai de encontro com o que dissemos a respeito da comilança. Um peru que, após conviver largo tempo numa família que possuía vastos conhecimentos evangélicos, aprendeu a transmitir os ensinamentos de Jesus aos outros animais, guardando, igualmente, fé nas promessas Dele.
O peru, muito confiante, assegurava que Jesus Cristo era o Salvador do Mundo, que viera alumiar o caminho de todos e que, por base de sua doutrina, colocara o amor das criaturas umas para com as outras, garantindo a fórmula de verdadeira felicidade na Terra. Dizia que todos os seres, para viverem tranqüilos e contentes, deveriam perdoar aos inimigos, desculpar os transviados e socorre-los.
As aves passaram a venerar o Evangelho; todavia, chegado o Natal do Mestre Divino, eis que alguns homens vieram aos lagos, galinheiros, currais e, depois de se referirem excessivamente ao amor que dedicavam a Jesus, laçaram frangos, patinhos e perus, matando-os ali mesmo, ante o assombro geral.[7]
            Evidente que houve lamentações e, aflitas, as aves rodearam o pregador e crivaram-no de perguntas dolorosas. “Como louvar um Senhor que aceitava tantas manifestações de sangue na festa do natalício? Como explicar tanta maldade por parte dos homens que se declaravam cristãos e operavam tanta matança?”[8] O pastor prometeu responder no dia seguinte, porque também achava-se cansado e oprimido, uma vez que sua esposa também fora vítima. Assim, na manhã de Natal, esclareceu a seus companheiros que a ordem de matar não partira de Jesus, que preferiu a morte a ter que justiçar e que deviam, por isso, continuar amando o Senhor e servindo-o, não sem esquecer da recomendação de perdoar setenta vezes sete vezes. Comparou estes homens aos falsos profetas, vestidos de ovelha, mas na verdade agindo como lobos devoradores e, por fim, recordou-lhes as bem-aventuranças prometidas àqueles que sofrem. Assim, confortadas, “as aves se recordaram de que o próprio Senhor, para alcançar a Ressurreição Gloriosa, aceitara a morte de sacrifício igual à delas.” [9] Dessa maneira, que verifiquemos o que está sendo mais importante na comemoração da data, a lembrança do nascimento Dele ou a comilança nervosa.
            Eis que se encontra outra imprecisão: quando, afinal de contas, Jesus nasceu? Terá sido mesmo no dia assinalado de nossa comemoração? O dia 25 de dezembro foi escolhido no século IV, coincidindo com o Solstício de Inverno (quando o hemisfério norte do planeta recebe menos sol) que era comemorado pelos romanos como o “Dia do Sol Invencível”, uma data onde o Sol era venerado. Mas dificilmente Jesus teria nascido nesta época. Era inverno e na região que hoje é o Estado de Israel, a estação era muito intensa. Alguém refugiado numa estrebaria, uma criança principalmente, não conseguiria sobreviver às baixas temperaturas. Além disso, o relato evangélico dá conta da presença de pastores que fazem a visita ao recém nascido, que não ficavam nos campos durante esta estação do ano. Já tive contato com algumas opiniões que dão conta de que o nascimento teria ocorrido entre os meses de abril e maio.
            Um autor pouco comentando entre os espíritas de hoje, porém, de artigos muito interessantes e profundos, chamado Pedro de Camargo, que utilizava o pseudônimo “Vinícius” tem reflexões bem oportunas sobre o Natal, que quero dividir com todos. “Eis que vos trago uma boa nova de grande alegria: na cidade de David acaba de vos nascer, hoje, o Salvador, que é Cristo, Senhor... Glória a Deus nas alturas, paz na Terra aos homens de boa vontade.”[10] Chama atenção para o “vos nascer”! Nasceu para mim. Um acontecimento de natureza particular. Para o autor, a obra do nazareno só tem valor fundamental quando individualizada. Vinícius entende que “a redenção, que é obra de educação, tem que partir da parte para o todo, do indivíduo para a coletividade, e não desta para aquele. A transformação social há de ser a soma das transformações pessoais. Por isso, cumpre individuar o Natal (...)”[11] Afirma o autor que o nosso momento é pessoal e específico. Enquanto esperarmos que o ambiente em torno de nós se modifique e nos proporcione condições de mudarmos a nossa realidade espiritual, perderemos tempo. O dia de iniciarmos a nossa obra pessoal de redenção é hoje, está no presente. Penso que é a hora que nos damos conta da necessidade de fazê-lo. Quando tomamos consciência de que a vida que levamos não nos serve mais, não nos preenche mais, eis que é chegado o momento de empreendermos os esforços necessários para a mudança. Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, em sua segunda parte, indaga aos benfeitores espirituais:
Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?
“Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa, ou o que instrui. Tudo em a Natureza se encadeia. Ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a execução dos desígnios da Providência. Cada um tem neste mundo a sua missão, porque todos podem ter alguma utilidade.” [12]
            Chama-nos a atenção, assim, para a responsabilidade que nos cabe na transformação social. “Instruir os homens, auxiliar-lhes o progresso, melhorar-lhes as instituições” são tarefas que nos competem enquanto encarnados. Assim, não esperemos as condições materiais adequadas para o início de nossas atividades no bem. Criemos as situações onde possamos ser úteis. Quando o servidor encontra-se preparado, o serviço aparece. Vinícius continua em suas reflexões. O Natal, portanto, que nos deve interessar, é o que se dará em nós, pela nossa vontade.  “Só sabemos das coisas de Jesus por experiência própria. Só após ele haver nascido em nosso coração, é que chegamos a entendê-lo, assimilando, em espírito e verdade, o seu Verbo incomparável.”[13]  Em outra obra, do mesmo autor, intitulada “Em Torno do Mestre”, ele nos propõe algumas reflexões quanto ao papel de Jesus nas nossas vidas:
Que influência está exercendo em nós o seu nascimento? Que relação existe entre o natal de Jesus e a nossa vida no momento atual? Que veio Jesus fazer à Terra, na parte que nos toca? (...) Se o nascimento do Redentor não é ainda uma realidade em nós mesmos, influindo positivamente em nosso caráter, que importância pode ter no que nos diz respeito? [14]
            O nascimento do Jesus histórico, em última análise, não nos afeta pessoalmente. Só tem valor se tem relação conosco. Se isso representa, para nós, uma força capaz de modificar-nos as estruturas íntimas, como uma força viva atuando em nosso Espírito, então Jesus, efetivamente, nasceu para nós. Vinícius, ainda, nos brinda com uma página repleta de sensibilidade: “Cristo nasceu? Onde? Quando?” Para Paulo de Tarso, Jesus nasceu quando ele, intolerante e fanatizado por uma causa inglória, se viu envolvido naquela luz poderosa. “Dali por diante - ‘Já não sou eu mais quem vive, mas o Cristo é que vive em mim’.”[15] Para o apóstolo Pedro, Jesus nasceu no pátio do palácio de Pilatos quando o galo cantou, após ele ter negado o Mestre por três vezes. Dali por diante, não o vemos mais vacilante, como antes. Para Zaqueu, Jesus teria nascido em Jericó, quando ele estava em cima de uma árvore para o ver passar de longe e Ele o chamou, a fim de se hospedar em seu lar. Naquele dia a salvação entrou na sua casa. Para Dimas, Jesus teria nascido no topo do Calvário, quando a maldade humana julgava ter aniquilado Ele para sempre. Dali, Jesus dirigiu-lhe um olhar repleto de ternura e piedade (que nós não costumamos voltar aos criminosos), que lhe fez esquecer todas as amarguras deste mundo. Estes corações, dos exemplos utilizados por Vinícius, deixaram de ser como as hospedarias de Belém e acolheram Jesus, transformando-se numa manjedoura. Quando Jesus nasceu para nós? Como fazer com que Ele nasça em nossos corações? Vamos aproveitar o clima de fraternidade do momento em que vivemos. No Natal, Jesus está mais próximo da Terra, e no dia, na passagem, segundo Francisco Cândido Xavier, presente algumas horas, socorrendo os infelizes, ao lado daqueles que são os “mais pobres, humildes e perdidos.” [16] Aproveitar e fazer como aqueles soldados alemães e britânicos da Primeira Guerra Mundial que tentaram superar suas rivalidades, suas inferioridades, em nome do espírito de fraternidade que será o cimento das relações humanas. Tentar, um momento que seja. Para aqueles homens da guerra estou seguro que a experiência vivida foi marcante, ainda que eles tenham recomeçado os combates. Mas foram marcados por Jesus. Experienciaram que outro tipo de relações entre os seres é possível. Vamos, sim, tentarmos as pequenas realizações, os pequenos gestos, as pequenas atitudes na direção da fraternidade humana. Vamos dar algo de nós, muito além do dinheiro que tenhamos (ou não). Vamos dar atenção às pessoas. Muita gente tem fome de pão, mas existe muita fome de afeto, como diz Tereza de Calcutá. Meimei nos sugere:
Não importa se diga que cultivas a bondade somente hoje quando o Natal te deslumbra!... Comecemos a viver com Jesus, ainda que seja por algumas horas, de quando em quando, e aprenderemos, pouco a pouco, a estar com ele, em todos os instantes, tanto quanto ele permanece conosco, tornando diariamente ao nosso convívio e sustentando-nos para sempre. [17]
            Vamos, portanto, nos aclimatando ao bem. Adestrando-nos nele, a fim de que, aos poucos, deixemos de lado nossa bagagem ruim e formemos, em nós um patrimônio importante de boas realizações na Seara de Jesus. Assim, Jesus nascerá para nós e assim teremos um verdadeiro Natal cristão.


[1] THEODORO, Reinaldo V. A Trégua de Natal. Disponível em: http://www.clubesomnium.org/arquivos/militaria/historia/Tregua_de_Natal.pdf Última consulta em 3 de dezembro de 2010.
[2] Idem, p. 2.
[3] Idem, p. 3.
[4] Idem, p. 6.
[5] Idem, p. 4.
[6] XAVIER, Francisco Cândido. Antologia Mediúnica do Natal. FEB, Rio de Janeiro, 1998, p. 35 - 36.
[7] Idem, p. 105.
[8] Idem.
[9] Idem, p. 106.
[10] VINÍCIUS. Na Seara do Mestre. FEB, Rio de Janeiro, 1951, p. 24.
[11] Idem, p. 25.
[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. FEB, Rio de Janeiro, 1995, p. 285.
[13] VINÍCIUS. Na Seara do Mestre. FEB, Rio de Janeiro, 1951, p. 28.
[14] VINÍCIUS. Em Torno do Mestre. FEB, Rio de Janeiro, 1939, p. 189.
[15] Idem, p. 190.
[16] Aqui é o estrado para teus pés,
Que repousam aqui, onde vivem os mais pobres
Mais humildes e perdidos.
Quando tento inclinar-me diante de ti,
A minha reverencia não consegue alcançar
A profundidade onde teus pés repousavam,
Entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.
O orgulho nunca pode aproximar-se desse lugar
Onde caminhas com a roupa do miserável
Entre os mais pobres humildes e perdidos.
O meu coração jamais pode encontrar
O caminho onde fazes companhia ao que não tem companheiro,
Entre os mais pobres, humildes e pedidos.
TAGORE, Rabindranath. Poema. Disponível em: http://www.peregrinosdapaz.ufpa.br/pensadores/poema07.pdf Última pesquisa em 3 de dezembro de 2010.

[17] XAVIER. Francisco Cândido. Op. cit., p. 25.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Das Ocupações e Missões dos Espíritos


Das Ocupações e Missões dos Espíritos – O Livro dos Espíritos, perguntas 567 a 575. Rio de Janeiro, 16 de Novembro de 2010.

            O Espírito André Luiz encontrava-se, segundo seu relato, numa região espiritual inferior em companhia do instrutor Gúbio e de Elói. Ao aproximar-se da janela do local onde estavam alojados, observou o que se desenrolava na via pública.
Os diálogos e entendimentos surpreendiam. Quase todos se referiam à esfera carnal.
Questões minunciosas e pequeninas da vida particular eram analisadas com inequívoco interesse; contudo, as notas dominantes caíam no desequilíbrio sentimental e nas emoções primárias da experiência física.[1]
            Na questão 567 de O Livro dos Espíritos, Kardec indaga se costumam os Espíritos imiscuir-se em nossos prazeres e ocupações, ao que os Espíritos da Codificação respondem: “Os Espíritos vulgares, como dizes, costumam. Esses vos rodeiam constantemente e com freqüência tomam parte muito ativa no que fazeis, de conformidade com suas naturezas. (...)” [2] Kardec, em seus comentários posteriores, acrescenta que os Espíritos se ocupam com as coisas deste mundo de conformidade com seu estágio evolutivo em que se achem. Os Espíritos Superiores podem analisá-las em suas particularidades na medida em que isso sirva ao progresso. Somente os Espíritos Inferiores “ligam a essas coisas uma importância relativa às reminiscências que ainda conservam e às idéias materiais que ainda não se extinguiram neles.” [3]
            Morrer é fenômeno biológico. Desencarnar é fenômeno psicológico. Podemos ir, aos poucos, em vida na carne, desencarnando, quando, através de nossos esforços, nos acostumamos com a realidade de sermos Espíritos Imortais, quando, portanto, colocamos o interesse da construção do Reino de Deus em nós acima dos interesses materiais exagerados pelo nosso egoísmo. Morrer sem desencarnar traz dificuldades aos Espíritos. A órbita de seus interesses permanecerá sendo a vida material e todas as suas peculiaridades. Os avarentos se preocuparão com seus bens, o vaidoso com sua beleza ou fama, os viciados com o atendimento de seus vícios, os promotores da guerra se preocuparão com o estímulo à violência... A fronteira da morte não descaracteriza o sujeito. Acorda como viveu, sendo exatamente quem é depois do transe biológico. Quem em vida acostumou-se a determinado clima mental, circulará no ambiente que criou para si mesmo. André Luiz, no livro “Libertação”, nos chama a atenção para um dos centros de interesse dos Espíritos congregados àquela região de sofrimentos. “Desequilíbrios sentimentais”, o que me fez lembrar as novelas que costumamos acompanhar pela TV. Qual a nota preponderante delas? As questões amorosas, nem sempre saudáveis do ponto de vista moral e, por isso, psicológico. Trocas de casais, traições, tentativas de conquistas amorosas a todo custo... As novelas me parecem, neste aspecto, muito mal inspiradas... De onde será que os autores retiram essas idéias ou melhor, com quem eles compartilham a autoria da trama? As relações humanas, no campo do sentimento são, em última análise, banalizadas, como se trocar de par fosse como trocar de chinelos, esquecendo-se que estamos tratando com seres humanos que merecem ser tratados com dignidade humana e não como objetos. Os Espíritos inferiores, portanto, onde estejam, ao nosso lado, ou nos locais onde se reúnem, estão com a cabeça aqui, no mundo material, porque não “desencarnaram”, não libertaram-se das preocupações relativas a vida material. Já os Espíritos Superiores, ou aqueles bem intencionados, observam essas particularidades com o objetivo de promoverem o progresso. Estudam essas situações, compartilham, nos ambientes de reuniões mediúnicas, com os encarnados, essas vivências, preparam trabalhadores no mundo espiritual para atuarem no auxílio a essas entidades em dificuldades. O que são as obras de André Luiz senão um estudo permanente dos aspectos da realidade do mundo espiritual próximo à Terra?
            Em “Nos Domínios da Mediunidade”, no capítulo “Forças Viciadas”, relata-nos algumas observações quando dirigia-se a uma instituição espírita.
Dois guardas arrastavam, de restaurante barato, um homem maduro em deploráveis condições de embriaguez.
O mísero esperneava e proferia palavras rudes, protestando, protestando...
- Observem o nosso infeliz irmão! – determinou o orientador. (...)
Achava-se o pobre amigo abraçado por uma entidade da sombra, qual se um polvo estranho o absorvesse.
Num átimo, reparamos que a bebedeira alcançava os dois, porquanto se justapunham completamente um ao outro, exibindo as mesmas perturbações.[4]
            O instrutor Áulus convida André Luiz e Hilário, que os acompanhava, a entrarem no ambiente. Relata-nos o autor espiritual que os Espíritos ali presentes sorviam as baforadas de cigarro arremessadas ao ar, ainda aquecidas pelos pulmões dos fumantes encarnados, encontrando nisso alegria e alimento. Outras aspiravam o hálito de alcoólatras impenitentes. Ainda naquele local, em outro ambiente, havia um homem jovem, numa mesa com conhaque, que fumava demais, acompanhado de uma entidade de aspecto ruim. O homem escrevia... Das mãos da entidade, localizada na cabeça do encarnado, escorriam substâncias escuras e pastosas. Eram co-autores daquilo que o encarnado escrevia. Desejava o rapaz, dado à malícia, a respeito de suposta participação de uma jovem num crime. A entidade desencarnada objetivava deprimir a vida moral da moça, a fim de trazê-la para o ambiente viciado em que se encontrava. Um homem dado a malícia encontrou o parceiro que procurava no mundo espiritual. O desencarnado, querendo fazer sofrer uma pessoa, encontra nele veículo de suas possibilidades. Certamente são parceiros, a moça e o desencarnado, de vivências passadas, até nas regiões inferiores do mundo espiritual. Reencontrando-a encarnada, bênção de que ainda não dispõe, procura arrastá-la para a desordem emocional, onde encontraria clima para vampirizar-lhe as energias.
Eis a importância, para nós, de uma conduta reta, pautada no bem. Mostramos aos desencarnados que nos acompanharam nos banquetes do mal no passado que estamos procurando ser diferentes, com atitudes renovadas no bem. Evidentemente que lhes sofremos as influenciações, mas à medida que consolidemo-nos no bem, notarão que estamos transformados. Podem seguir-nos na renovação, o que para nós seria excelente, por conquistarmos alguém pelo exemplo, ou simplesmente afastarem-se de nós, que não mais lhes compartilhamos o modo de encarar a vida.
Eis que, ao saírem do ambiente onde encontrava-se o jornalista comprometido com a malícia, na via pública novamente, André Luiz e seus companheiros vêem passar uma ambulância. À frente, no lado do motorista, um homem de cabelos grisalhos, simpático e preocupado. Junto dele, abraçando-o com naturalidade e doçura, uma entidade em roupagem lirial lhe envolvia a cabeça em vibrações suaves e calmantes de prateada luz. Um médico em alguma tarefa de socorro.
Deve ser, antes de tudo, um profissional humanitário e generoso que por seus hábitos de ajudar ao próximo se fez credor do auxílio que recebe. (...) Para acomodar-se tão harmoniosamente com a entidade que o assiste, precisa possuir uma boa consciência e um coração que irradie paz e fraternidade.[5]
            Eis que, neste caso, temos uma entidade com relativa evolução ocupada com as questões da vida material, no que diz respeito ao auxílio aos doentes, acompanhando um homem que se credenciou à sua companhia, pelas atitudes nobres que assumiu diante da vida.
            Na questão 568, Kardec indaga se os Espíritos, que tem missão a cumprir, o fazem na erraticidade ou encarnados e os Espíritos respondem-lhe que podem ter em ambos os estados. Na 569, desenvolvendo a anterior, pergunta: “Em que consistem as missões de que podem ser encarregados os Espíritos errantes?” Obtendo, como resposta dos Espíritos: “São tão variadas que impossível fora descrevê-las. Muitas há mesmo que não podeis compreender. Os Espíritos executam as vontades de Deus e não vos é dado penetrar-lhe todos os desígnios.” [6]
            Kardec assinala, nas suas observações, que as missões dos Espíritos tem sempre por objeto o bem. São incumbidos de
auxiliar o progresso da Humanidade, dos povos ou dos indivíduos (...) e de velar pela execução de determinadas coisas. Alguns desempenham missões mais restritas e, de certo modo, pessoais ou inteiramente locais (...) há tantos gêneros de missões quantas as espécies de interesses a resguardar (...). [7]
            As obras do Espírito André Luiz são repletas de situações deste gênero, onde os Espíritos desempenham variadas missões, de acordo com os interesses com os quais se identificam. Penso que àqueles ligados, na Terra, às profissões relacionadas à educação, desde que se identifiquem com esta, buscarão, no mundo espiritual, desempenhar tarefas relacionadas ao esclarecimento das criaturas. Aqueles voltados à área médica podem dirigir seus esforços para o atendimento da saúde humana, ou mesmo o reequilíbrio do Espírito, naquilo que diz respeito ao perispírito, que deve ser objeto de estudos no mundo espiritual. Podem, por fim, desempenhar tarefa que lhes seja “estranha” quando encarnados, num esforço por recomeçar nas atitudes do bem que não escolhe, necessariamente, um campo específico, mas que aproveita as oportunidades de trabalho que a vida, no mundo espiritual lhe oferece. Evidentemente que, com o tempo, direcionará seus esforços para aquilo com que se identifique mais, desenvolvendo-se neste campo. Em “Missionários da Luz”, no capítulo “Socorro espiritual”, André Luiz conta-nos o caso de uma senhora desencarnada que buscou auxílio para que seu filho, moribundo, pudesse permanecer mais algum tempo encarnado, a fim de solucionar problemas que ainda lhe estavam pendentes na vida material.
            Com a saúde fragilizada, recolheu-se ao leito de sono com preocupações e angústias tais que suas criações mentais se tornaram, para ele, em verdadeira tortura. A mãe notou que corria risco de derrame cerebral. André Luiz assinala que o sujeito, espiritualmente, movimentava-se com dificuldades junto ao corpo, quase que completamente exteriorizada. O instrutor espiritual Alexandre toca-lhe o cérebro perispiritual e pede-lhe que se mantenha vigilante, sugerindo-lhe que deseje retomar o corpo. A seguir, aplicou-lhe passes no corpo material. Depois disso, convocou, mentalmente, o grupo de serviço do irmão Francisco. Concentrou-se e eis que um minuto depois chega ao local onde se encontravam oito entidades. Alexandre solicitou-lhes que trouxessem algum encarnado desdobrado pelo sono, a fim de lhes aproveitar as energias para o homem em risco de desencarnação. Enquanto o chefe da caravana retirou-se para buscá-lo, os demais permaneceram em auxílio magnético através da prece. Eis como Alexandre apresenta o grupo recém chegado:
Temos aqui o grupo do irmão Francisco. Trata-se de uma das inumeráveis turmas de serviço que nos prestam cooperação. Muitos companheiros consagram-se aos trabalhos dessa natureza, mormente à noite, quando as nossas atividades de auxílio podem ser mais intensas. [8]
            Assim que o encarnado que fora buscado pelo irmão Francisco chegou, Alexandre solicitou-lhe que colocasse suas mãos na cabeça do corpo do moribundo. Depois disso, esforçou-se por transferir energias do doador desdobrado pelo sono ao enfermo. À medida que o instrutor movimentava suas mãos no cérebro do doente, notava-se que melhorava. Sua forma perispiritual reunia-se devagarinho ao corpo, integrando-se uma com a outra, como se estivessem em reajustamento célula por célula. O encarnado ganhou uma moratória de cinco meses no máximo, devendo vigiar os pensamentos para que não lhe afetasse a estrutura orgânica. André Luiz conversa, depois do ocorrido, com o irmão Francisco, que o esclarece.
Nossa pequena expedição (...) é uma das inumeráveis turmas de socorro que colaboram nos círculos da Crosta. Somos milhares de servidores, nessas condições, ligados a diversas regiões espirituais mais elevadas. (...) O nosso (grupo) destina-se ao reconforto de doentes graves e agonizantes. (...) Quase ninguém no círculo de nossos irmãos encarnados conhece a extensão de nossas tarefas de socorro. (...) São muitos os irmãos afins (...) que se reúnem, depois da morte do corpo, em tarefas de amparo fraternal, quando já alcançaram os primeiros degraus da escada de purificação. (...) sabemos que, muitas vezes, é possível efetuar realizações deveras sublimes, de natureza espiritual, em poucos dias, nessas circunstâncias, depois de largos anos de atividades inúteis. No leito da morte, as criaturas são mais humanas e mais dóceis. Dir-se-ia que a moléstia intransigente enfraquece os instintos mais baixos, atenua as labaredas mais vivas das paixões inferiores, desanimaliza a alma. (...) Nunca observou a paciência inesperada de doentes graves, a calma de certos enfermos incuráveis e a suprema conformação da maioria dos moribundos? Muitas vezes, semelhantes edificações, incompreensíveis para os encarnados que os cercam, constituem o fruto do esforço de nossos grupos itinerantes de socorro. [9]
            Na pergunta 570, Kardec pergunta se “os Espíritos percebem sempre os desígnios que lhes competem desempenhar”, ao que os Espíritos Superiores lhe respondem que não, uma vez que muitos existem que podem ser instrumentos cegos, havendo, claro, outros que sabem com que objetivo atuam. Parece-nos estranho que alguns realizem atividades sem consciência do que estejam fazendo. Ainda em “O Livro dos Espíritos” existe um item intitulado “Ação dos Espíritos nos fenômenos da natureza”, onde verificamos que eles tem papel ativo nos fenômenos naturais. De acordo com a tarefa que desempenhem, podem ser de ordem mais elevada ou não. As tarefas mais “materiais” estão a cargo dos Espíritos mais materializados, ao passo que as atividades de comando são exercidas por entidades mais elevadas. Na pergunta 540 do livro que analisamos, Kardec deseja saber se estes Espíritos, que lidam com os fenômenos da natureza, operam com conhecimento de causa, usando o livre-arbítrio, ou apenas por efeito de instintivo impulso. Obtém resposta semelhante, ou seja, uns operam com conhecimento daquilo que fazem, outros não. Divaldo Franco, numa entrevista que concedeu à Revista Espírita Allan Kardec identifica-os como os elementais, das tradições exotéricas e espiritualistas.
            Na pergunta 571, Kardec indaga se somente os Espíritos elevados desempenham missões, ao que lhe informam que “A importância das missões corresponde às capacidades e à elevação do Espírito. O estafeta que leva um telegrama ao seu destinatário desempenha uma perfeita missão, se bem que diversa da de um general.” [10] Certa vez, numa palestra, ouvi que nós, na condição evolutiva em que nos encontramos, somos os missionários do milímetro, ao passo que aqueles Espíritos luminares que admiramos são os missionários do quilômetro... Mas somos missionários, porque detemos certa tarefa, por singela que seja. O muito só nos será confiado se dermos conta do pouco. Humberto Hoden conta-nos que Gandhi fora procurado, um dia, por dois homens, interessados em iniciarem-se nos mistérios do mundo espiritual. Gandhi aceitou e para começar a iniciação espiritual, encarregou os dois candidatos de varrerem o pátio coberto de folhas secas. Os dois encararam o desafio. Quando concluído, solicitou-lhes que descascassem batatas e cortassem verduras, além de racharem a lenha para o fogo do almoço. Os caras fizeram. Na parte da tarde, mandou-lhes com latas de creolina, às aldeias da vizinhança para fazerem a limpeza nas privadas e fossas, como ele mesmo, Gandhi, costumava fazer. Os candidatos passaram a tarde fazendo isso. Ao voltarem do serviço, nada espiritual, indagaram-se: “Será que Gandhi se esqueceu do nosso pedido de iniciação espiritual?” De noite, tomaram uma refeição frugal, ao lado dos demais habitantes da colônia. No dia seguinte, as mesmas atividades com pequenas variações. Os dois estavam cada vez mais decepcionados. Esperavam, quem sabe, que fossem convidados para uma sala misteriosa, onde visualizassem algum ritual secreto... No terceiro dia, um deles teve a coragem de perguntar à Gandhi:
- Mestre, quando começa a nossa iniciação?
- Já começou – respondeu Gandhi.
- E quando terminará?
- Terminará quando vocês fizerem de boa vontade o que até agora fizeram de má vontade.
Os dois candidatos à suprema espiritualidade sumiram. [11]
            Na pergunta 572 de “O Livro dos Espíritos”, Kardec deseja saber se a missão de um Espírito lhe é imposta, ou se ele a solicita, ao que os Espíritos informam-lhe que ele a pede e se sente, naturalmente feliz se a consegue. Determinada missão, pode, no entanto, ser solicitada por diversos Espíritos, o que acontece com alguma freqüência, mas nem todos são aceitos para o desempenho dela. Acredito que questões de mérito e capacidade são avaliadas pelos Espíritos responsáveis pelas reencarnações daqueles que desempenharão determinada tarefa.
            Na pergunta 573, Kardec indaga:
Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?
“Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa, ou o que instrui. Tudo em a Natureza se encadeia. Ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a execução dos desígnios da Providência. Cada um tem neste mundo a sua missão, porque todos podem ter alguma utilidade.” [12]
            Tem muitas informações nesta resposta. Cabe-nos instruir os homens, através de nossa experiência, a fim de lhes ajudar a progredir. Compete-nos melhorar as instituições humanas, por meios diretos e materiais. Onde nos encontremos, no local de trabalho, num templo religioso, num clube em que sejamos sócios, num partido político... Devemos concorrer para a melhora deste ambiente, torná-los locais onde o ser humano seja valorizado e promovido em todas as suas capacidades. O agricultor e o governante, para os Espíritos Superiores, desempenham nobres missões. Devem ser valorizados nos locais onde se encontrem. Os Espíritos não fazem distinções sociais, tão ao gosto dos nossos preconceitos materialistas. Enxergam dignidade na tarefa do lavrador, como na do que manda em multidões. É certo que os efeitos das atitudes dos governantes são mais amplos do que a do cultivador do solo. Pode ser maior neste aspecto, mas ambas são cartas de serviço confiadas pela Providência a fim de que eles cresçam e desenvolvam-se. “Diante da Lei, todas as tarefas do Bem são missões de caráter divino” [13], como afirma Emmanuel. Deus, ainda segundo ele, é o Grande Anônimo, que trabalha por nós, provendo-nos a vida. Emmanuel, aliás, tem uma frase lapidar: “É indispensável que o Espírito aprenda a ser grande nas tarefas humildes, para que saiba ser humilde nas grandes tarefas.” [14]
            Na questão 574 Kardec pergunta qual seria a missão das pessoas voluntariamente inúteis. Os Espíritos respondem que estas unicamente para si vivem, e que não sabem tornarem-se úteis para os demais. Expiarão a voluntária inutilidade, muitas vezes já neste mundo, pelo desgosto e aborrecimento que a vida lhes causa. Os preguiçosos encarnados não são senão os preguiçosos do mundo espiritual, que às vezes podem ter recuado diante da execução de uma obra que lhes fora confiada ou aqueles que cedem, porque se identificam, às sugestões pela ociosidade, por parte de Espíritos inferiores.
            Por fim, na pergunta 575 Kardec considera que as ocupações comuns parecem mais deveres que missões, sendo que estas teriam caráter menos exclusivo, de importância menos pessoal. Indaga, então, como se poderia reconhecer que um homem tem realmente na Terra uma determinada missão. Os Espíritos respondem-lhe: “Pelas grandes coisas que opera, pelos progressos a cuja realização conduz seus semelhantes.” [15] Seriam, portanto, Divaldo Franco, Chico Xavier, indivíduos portadores de missões, de acordo com essa idéia, uma vez que realizaram grandes trabalhos em benefício da coletividade, através do Espiritismo. Vidas de renuncia, onde abrem mão de projetos de satisfação egoística em detrimento da satisfação que se consegue quando se consegue criar o sorriso no rosto de alguém.


[1] XAVIER, Francisco Cândido. Libertação. FEB. Rio de Janeiro, 1996, p. 79.
[2] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. FEB. Rio de Janeiro, 1995, p. 284.
[3] Idem.
[4] XAVIER, Francisco Cândido. Nos Domínios da Mediunidade. FEB, Rio de Janeiro, 1995, p. 138.
[5] Idem, p. 144.
[6] KARDEC, Allan. Op. cit., p.284.
[7] Idem.
[8] XAVIER, Francisco Cândido. Missionários da Luz. FEB, Rio de Janeiro, 1997, p. 68.
[9] Idem, p. 71 a 73.
[10] KARDEC, Allan. Op. Cit., p. 285.
[11] HODEN, Humberto. Mahatma Gandhi. Martin Claret, 1998, p. 132.
[12] KARDEC, Allan. Op. Cit., p. 285.
[13] XAVIER, Francisco Cândido. Justiça Divina. FEB, Rio de Janeiro, 1997, p. 56.
[14] XAVIER, Francisco Cândido. Justiça Divina. FEB, Rio de Janeiro, 1997, p. 110.
[15] KARDEC, Allan. Op. Cit., p. 286.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Parábola do Semeador


Naquele mesmo dia, tendo saído de casa, Jesus sentou-se à borda do mar; - em torno dele logo reuniu-se grande multidão de gente; pelo que entrou numa barca, onde sentou-se, permanecendo na margem todo o povo. – Disse então muitas coisas por parábolas, falando-lhes assim:
               Aquele que semeia saiu a semear; - e, semeando, uma parte da semente caiu ao longo do caminho e os pássaros do céu vieram e a comeram. – Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia muita terra; as sementes logo brotaram, porque carecia de profundidade a terra onde haviam caído. – Mas, levantando-se, o sol as queimou e, como não tinham raízes, secaram. – Outra parte caiu entre espinheiros e estes, crescendo, as abafaram. – Outra, finalmente, caiu em terra boa e produziu frutos, dando algumas sementes cem por um, outras sessenta e outras trinta. – Ouça quem tem ouvidos de ouvir.
               Escutai, pois, vós outros a parábola do semeador. – Quem quer que escuta a palavra do reino e não lhe dá atenção, vem o espírito maligno e tira o que lhe fora semeado no coração. Esse é o que recebeu a semente ao longo do caminho. – Aquele que recebe a semente em meio das pedras é o que escuta a palavra e que a recebe com alegria no primeiro momento. – Mas, não tendo raízes, dura apenas algum tempo. Em sobrevindo reveses e perseguições por causa da palavra, tira ele daí motivo de escândalo e de queda. – Aquele que recebe a semente entre espinheiros é o que ouve a palavra; mas, em quem, logo, os cuidados deste século e a ilusão das riquezas abafam aquela palavra e a tornam infrutífera. – Aquele, porém, que recebe a semente em boa terra é o que escuta a palavra, que lhe presta atenção e em quem ela produz frutos, dando cem ou sessenta, ou trinta por um. (S. Mateus, 13: 1 a 9 e 18 a 23.)
           
            A parábola do semeador é encontrada em 3 evangelhos. Além do de Mateus, utilizado por Kardec, o de Marcos, ambos muito parecidos, ainda que no dele a narrativa esteja maior, e o de Lucas, que traz detalhes que destoam dos outros dois, ainda que seja o que traz a história de maneira mais sucinta. No de Lucas, ao referir-se às sementes que caíram na estrada, afirma que foram pisadas. Mais adiante, ao tratar das que caíram entre os espinhos, aponta que com ela (a semente) teriam crescido os espinhos.
            Jesus apresenta-nos, em linhas gerais, algumas condições da alma humana, diante do contato com a revelação divina, com a mensagem do Reino de Deus.  Diante da multiforme capacidade de entendimento das pessoas, ali presentes (ou as de nossos tempos), utiliza-se de parábolas para ministrar seus ensinamentos. Segundo Torres Pastorino[1], estas parábolas “são calcadas, de modo, geral, em fatos e situações conhecidas pelos ouvintes, colhidos da vida diária; dado que a maioria dos circunstantes era constituída de lavradores e pescadores, donas de casa e pequenos comerciantes, é dessas profissões que são tirados os exemplos.”
            Três grupos de sementes não dão resultados, mas a quarta parte dá muito fruto. Ainda segundo Pastorino,
Os terrenos montanhosos e pedregosos do norte da Galiléia, com atalhos batidos a atravessar os campos, com espinheiros e cardos vigorosos a brotar quase espontaneamente, sem que eles dispusessem de meios para total erradicação; com trechos em que a crosta de pedra é rasa, recoberta apenas por delgada camada de terra, oferecia ampla margem de experiência pessoal aos ouvintes para a compreensão da historieta.[2]
            O autor ainda aponta que, como em todas as parábolas, os dados não precisam ser exatos, podendo ser exagerados ou diminuídos, a fim de enfatizar aspectos do que se pretende ensinar. Segundo ele, “nenhum campo da Palestina (...) produz a cem por um.” [3] O normal do rendimento iria de quatro a dez sementes por um, sendo um ótimo resultado conseguir-se entre dez e vinte por um.
            Abstraia-se, na parábola, a “imprevidência” do semeador, que deixa cair as sementes em terrenos onde, sabidamente, não seriam propícios à plantação. O espírito do ensinamento é enfatizar a incapacidade de quem o recebe, supondo-se perfeita a capacidade do Semeador.
            Possivelmente a explicação que os discípulos receberam de Jesus tenha se dado em um momento de intimidade, depois de dissolvida a multidão, quem sabe, ao chegar em casa. “Por que lhes falas em parábolas”, dá a entender que o método já vinha sendo utilizado por Jesus em suas pregações.
            Segundo Pastorino, aos discípulos é dado conhecer os segredos do reino dos céus. Ele nota o emprego da palavra “tà mystéria”, que entre os gregos significaria a doutrina religiosa secreta ou oculta, revelada a iniciados.  Ainda seguindo os raciocínios deste autor, quando Jesus menciona o fato das pessoas
Verem (lerem) e não entenderem (o sentido profundo real) e de ouvirem e não perceberem (esse sentido), provém de que seu coração (sua mente) está enregelada (pela vaidade e pelo egoísmo); então, eles fecham os olhos e tapam os ouvidos (para não serem obrigados a aceitar a interpretação correta; e isso lhes é permitido), para que, vendo (lendo) com os olhos, e ouvindo com os ouvidos, não sucedam que entendam com o coração (a mente) e se voltem e eu os sare, porque a eles NÃO INTERESSA a cura (libertação) das coisas materiais do mundo, as quais estão apegados em profundidade.[4]
            Recordo-me de uma passagem narrada no Evangelho de João onde os discípulos afirmam: “Duro é este discurso, quem o pode ouvir.” [5] A mensagem cristã não é de facilidades, como muitas denominações protestantes às vezes apresentam. Jesus prometeu-nos alívio, não isenção das dores, não o “Pare de sofrer” apresentado por aí. “No mundo, tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.” [6] Se Ele venceu, nós também o podemos. “Vós sois deuses” [7], podemos fazer o que Jesus fez, atingir o seu patamar, desde que nos empenhemos para tanto. Logicamente, Jesus tornou-se o que é num tempo que não temos condições de medir, mas não é, por isso, inatingível. Evidentemente, uma longuíssima série de reencarnações aguarda-nos, onde reescreveremos nossa história e cresceremos intelectual e moralmente. Não por acaso, os Espíritos Superiores apontaram-nos Jesus como guia e modelo em O Livro dos Espíritos.[8]
            Assim, acompanhando Pastorino, não há má intenção da parte da Divindade no sentido de estabelecer-nos um programa que não pudéssemos atingir. Existe a nossa má-vontade, por ignorância que, embora digamos na consciência atual que queremos nos converter, lá no fundo, no nosso mundo íntimo, não desejamos semelhante mudança. Ainda em O Livro dos Espíritos, na questão n° 909, quando Kardec pergunta “Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?” Ao que os Espíritos respondem: “Sim, e, frequentemente, fazendo esforços muito insignificantes. O que lhe falta é a vontade. Ah! Quão poucos dentre vós fazem esforços!”[9] Kardec não se dá por vencido e, para cercar a questão, questiona se não existiram paixões tão vivas e tão irresistíveis, que a vontade seria impotente para domá-las. Os Espíritos desenvolvem, então, o raciocínio:
“Há muitas pessoas que dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém muito satisfeitas ficam que não seja como “querem”. Quando o homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se compraz nelas, em consequência da sua inferioridade. Compreende a sua natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para ele, uma vitória do Espírito sobre a matéria.” [10]
            As parábolas utilizadas por Jesus, para Pastorino, são um sinal da misericórdia divina,
pois permite às criaturas que tenham tempo de ir evoluindo, e a cada nova encarnação possam ir aprofundando o sentido oculto das parábolas, conseguindo assim atingir a realidade total do ensino de Jesus. (...) um ensino que deveria ir sendo compreendido gradativamente pela humanidade, à proporção que fossem evoluindo os homens. [11]
            Deve-se ressaltar, no entanto, que os ensinamentos morais de Jesus foram dados abertamente. O amar ao próximo como a si mesmo é bem claro.
            Acompanho, agora, a interpretação de Pastorino para as diferentes realidades de pessoas, sugerida por Jesus, na Parábola do Semeador:
1º. A primeira categoria é a dos que estão presos às sensações e que portanto se deixam influir pelo mau (...) Por esses, que mais amam ao corpo e suas comodidades e confortos acima de tudo, a doutrina da Palavra não chega a ser nem sequer compreendida, pois é julgada “loucura”, sonho, tolice, etc. ... Eles se acham “à beira do caminho”, ou seja, à margem da espiritualidade (...) com espírito bem materializado.
2º. A segunda é dos que vivem presos a animalidade, e portanto com preponderância das emoções, e nesse setor se inclui a maioria esmagadora da humanidade. Deixam-se levar pelo gosto e desgosto, pelo prazer e desprazer, pela simpatia e antipatia, pelo amor e pelo ódio, pela alegria e pela dor, encontrando a estrada da vida eriçada de pedras e escolhos, que representam os carmas negativos, os resultados ruins de ações e pensamentos de vidas anteriores. Estes ouvem a doutrina (...) com alegria, mas quando sofrem os embates da própria vida, os sofrimentos e ingratidões (quando tropeçam nas pedras), se escandalizam (...) e arrepiam carreira. (...) ao primeiro revés, retrocedem amedrontados e, como disse Jesus, escandalizados, porque julgam que, uma vez na estrada certa, o sofrimento e as pedras do caminho DEVERIAM  ser retirados para que sua jornada fosse de rosas... Acham-se, então, COM DIREITO a certos privilégios... A raiz deles é pequena: qualquer contrariedade maior (...) é suficiente para afastá-los do espiritualismo.
3º. A terceira categoria é daqueles que já se encontram com o intelecto mais desenvolvido, e portanto apresentam certo domínio sobre as emoções, embora estas ainda tenham bastante influência nas decisões intelectivas. Ocorre, então, que vivem como entre “espinheiros”, que são constituídos pelos cuidados e “preocupações da vida”, pela “ilusão das riquezas”, pela “cobiça de tantas outras coisas” transitórias, que são verdadeiras ilusões. Estes ouvem e até gostam, chegam mesmo a compreender a doutrina (...) Mas NÃO PODEM fazê-las frutificar, porque estão muito OCUPADOS com suas atividades terrenas. (...) NÃO TENHO TEMPO...
4º. A quarta categoria é a dos que se iniciam na senda: ouviram a Palavra, aceitaram-na com amor, querem vivê-la. Para isso, buscam perceber a presença e a ação da individualidade. Começam a distinguir entre a realidade do Espírito (dando-lhe supremacia) e a ilusão da matéria (...) já compreendem a necessidade de dedicar algum tempo de sua vida às orações e meditações que visam à busca do Eu Interno. (...) embora pudessem, realmente, fazer um pouco mais.
5º. A quinta categoria compreende aqueles que já aprofundaram mais o espiritualismo, que já conseguem penetrar certos mistérios ou segredos do reino (...) Homens que superaram todo ilusionismo material e vivem na ânsia do Encontro Sublime (...) São os místicos (...) que já experimentaram a realidade do Espírito e dessa realidade tem lampejos seguros.
6º. Finalmente a sexta categoria é a daqueles que já obtiveram a união, ou melhor, a Unificação Total e permanente com o Cristo Interno, e portanto já se tornaram Cristificados, conseguindo a libertação plena.
            Aos primeiros, não dá para chamá-los de indiferentes. Podem ser indiferentes às questões morais, da alma, mas não o são quanto ao atendimento de suas paixões. Podemos dizer que são os “egoístas em si”. São os de estômago cheio, saciados por todas as formas, porém de almas vazias. “Uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê-la inesperadamente torna-se mais uma. O egoísmo unifica os insignificantes” [12], diria William Shakespeare a respeito dos egoístas. Em O Céu e o Inferno, de Kardec, no capítulo que trata dos Espíritos endurecidos, há o caso de Angèle, nulidade sobre a Terra. Na reunião onde dialogam com este Espírito, questionam-lhe: “E de que modo preenchestes a existência?” Ao que ela respondeu: “Divertindo-me em solteira e enfadando-me como mulher.” O guia do médium que recebeu a comunicação, chamado “Monod”, informa que
Ângela era uma dessas criaturas sem iniciativa, cuja existência é tão inútil a si como ao próximo. Amando apenas o prazer, incapaz de procurar no estudo, no cumprimento dos deveres domésticos e sociais as únicas satisfações do coração, que fazem o encanto da vida (...) ela não pôde empregar a juventude senão em distrações frívolas; e quando deveres mais sérios se lhe impuseram, já o mundo se lhe havia feito um vácuo, porque vazio também estava seu coração. Sem faltas graves, mas também sem méritos, ela fez a infelicidade do marido, comprometendo pela sua incúria e desleixo o futuro dos filhos. (...) Ficai bem certos de que não basta abster-vos de faltas: é preciso praticar as virtudes que lhe são opostas. [13]
            Angela não teve erros grosseiros, foi indiferente às questões sérias da vida, dando espaço para as futilidades que só atenderam a seus interesses particulares. Poderíamos lembrar-nos dos viciados, qualquer que seja o vício. A agressão a si mesmos é maior, com o pano de fundo de suas ações sendo o mesmo egoísmo.
            Podemos enxergar os da segunda categoria como aqueles que esperam da Providência benefícios aos quais não são merecedores, ainda que desejem ser trabalhadores de Jesus. Jesus, aliás, foi o maior de todos e o que recebeu de nós? A cruz...  Ele que não tinha erros a expiar... Nós os temos, e não devem se poucos.  Na tarefa cristã, como diz Emmanuel, Começar é fácil, continuar é difícil e chegar ao fim é crucificar-se. Entendamos que, uma vez vinculados ao trabalho de Jesus, o socorro às nossas necessidades reais se fará presente. Deus provê as aves do céu e os lírios dos campos, a nós também o fará. Entretanto, nossa estrada não será atapetada, como a Dele, bem como a daqueles que o amaram e seguiram não o foi.
            Os terceiros são os “muito ocupados” com as “questões práticas da vida”, que deixam de lado o essencial, pela escolha que fazem. Talvez pretendam dedicar-se a algum trabalho assistencial quando se aposentem numa situação de fartura, ou proponham-se a ajudar alguém quando reúnam possibilidades financeiras folgadas.  Certa vez
perguntaram ao Dalai Lama:
- O que mais te surpreende na Humanidade?
E ele respondeu:
- Os homens... Porque perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde.
E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido. [14]
            Quantos não conhecemos nestas condições? Quantos vimos passar pelo trabalho no bem e que, por estes motivos, ou bem semelhantes, vimos afastarem-se? E, provocativamente, para nós, quantas vezes flertamos com essa possibilidade? É para pensarmos.
            O quarto grupo são aqueles que tentam conciliar algum tempo de suas vidas às atividades enobrecedoras, que se dedicam, em algumas horas semanais, a alguma atividade no bem. Os trabalhos voluntários, em diferentes setores, estão aí. 
Segundo pesquisa da ONU, o número de voluntários no Brasil passou de 22 milhões, para 42 milhões após o Ano Internacional. Outro dado também chama atenção: uma pesquisa DataFolha revela que 83% dos brasileiros acham que o trabalho voluntário é muito importante para o país (...) [15]
            O quinto e o sexto grupos eu não classificarei. Direi nomes de algumas personalidades, exemplares para nós, segundo o meu entendimento. Gandhi, Martin Luther King Jr., Francisco Cândido Xavier e Madre Teresa de Calcutá. Eis que, em O Livro dos Espíritos, em sua pergunta 912 Kardec propõe: “Qual o meio mais eficiente de combater-se o predomínio da natureza corpórea?” E os Espíritos respondem: “Praticar a abnegação.” [16] De abnegação estes entendem, por isso a lembrança. Abnegação, segundo o Minidicionário Aurélio significa “desprendimento”. “Nunca quisemos que nos considerassem expectadores (...)” [17] afirmou Luther King ao escolher permanecer Montgomery, no sul dos Estados Unidos, onde o preconceito racial era violento, abrindo mão de ensinar em Boston.
Se alguém estiver perto de mim quando chegar meu dia, não desejo um grande funeral. E se alguém quiser falar de mim, que não seja muito. (...) Eu só quero que digam que Martin Luther King tratou de amar alguém. Sim, digam que eu era um tambor. Um tambor da justiça. Um tambor da paz. Um tambor da retidão. Tudo o mais não importa. (...) Só quero deixar atrás de mim uma existência comprometida. [18]
            Madre Teresa de Calcutá, quando entrega-se ao trabalho com os “mais pobres dentre os pobres” também encontra dificuldades. Aprende técnicas de enfermagem, durante quatro meses e aluga um barraco na favela atrás do convento onde passara anos. Começa seu trabalho ensinando o alfabeto bengali a cinco crianças. Com uma varinha, traçava as letras no chão. O calor na favela chegava aos 46°, com alta umidade do ar. Os ratos e baratas passeavam no chão de seu barraco. Na favela, percorria os barracos e procurava ser útil dentro de suas possibilidades.
A equipe da NBC tinha ido a Calcutá para entrevistá-la, além de documentar seu trabalho diário.
O entrevistador e o operador de câmera seguiam-lhe pela cidade, mesmo quando, como de hábito, ela parava para remexer em imensos focos de imundície. Madre Teresa sabia que, naqueles locais pútridos, freqüentados por cães vadios, ratos e ladrões à procura de algo para comer, continuamente eram também atirados os “excluídos” da humanidade: criaturas inocentes às quais era negada a dádiva da vida. E Madre Teresa salvou tantos deles, porque aqueles lugares assustadores eram sua meta habitual e obrigatória.
Ela arregaçava as mangas como faz frequentemente quando trabalha e punha-se a remexer, com suas pequenas mãos nodosas, aquela imundície nauseante. O operador de câmera e o entrevistador ao seu lado, incomodados, com máscaras no rosto para resguardar-se do mau cheiro e dos miasmas.
De repente, as mãos de Teresa agarraram algo. Seus olhos iluminaram-se. Da podridão, ela tirou um pequeno volume: o corpinho de um recém-nascido, sujo, ensangüentado, com os olhos fechados e o cordão umbilical ainda por cortar. Com rapidez, porém cuidadosa, lançou-se sobre aquele pequeno ser tentando fazer ressurgir a vida dentro dele. Sacudia-o, massageava-o com energia. Chegou a fazer-lhe respiração boca a boca, mas a criança não reagia, parecia mesmo no fim. “Talvez fosse melhor deixá-lo morrer”, disse o entrevistador. Madre Tereza lançou-lhe um olhar em chamas: “Não”, gritou-lhe, “ainda está vivo e tudo que é vivo é o nosso próximo, é Deus”. Com renovada energia, retomou sua tarefa desesperada e, depois de alguns instantes, a criança soltou um gemido. Ela apertou-a contra o peito gritando de alegria e a levou para casa. Estava salvo! Estava vivo! [19]
            Penso que, muitas vezes, guardamos alguns elementos das três primeiras categorias. Acredito que por enquanto estamos tentando estar na quarta categoria, começando no bem, cheios de elementos do nosso passado ainda presentes em nós. Penso que a classificação foi utilizada por Jesus porque, apesar de “misturarmos categorias”, uma delas se destaca em nós. Trabalhemos, portanto, para que o destaque seja sempre da quarta categoria em diante.

Parábola do Semeador – O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XVII, itens 5 e 6. Apresentado no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor na Reunião Pública de 14/09/2010. 


[1] PASTORINO, Carlos Juliano Torres. Sabedoria do Evangelho, vol. 3. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1964, p. 27.
[2] Idem, p. 28.
[3] Idem.
[4] Idem, p. 35.
[5] João, 6: 60.
[6] João 16: 33.
[7] João 10: 34.
[8] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 308.
[9] Idem, p. 418.
[10] Idem.
[11] PASTORINO, Carlos Juliano Torres. Op. cit., p. 36.
[12] SHAKSPEARE, Willian. http://www.pensador.info/tag/egoismo/
[13] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Rio de Janeiro: FEB, 1997. pág. 367.
[14] GYATSO, Tenzin (Dalai Lama). http://www.pensador.info/autor/Dalai_Lama/
[15] O trabalho voluntário no Brasil. http://favelacult.blogspot.com/2010/01/o-trabalho-voluntario-no-brasil-pos-o.html
[16] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 418.
[17] RENA, Lilí. Luther King, Peregrino da Liberdade. São Paulo: Paulinas, 1996, p. 23.
[18] Idem, p. 76-77.
[19] ALLEGRI, Renzo. Teresa dos Pobres, Conversando com a Madre de Calcutá. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 10-11.