sábado, 31 de março de 2007

Lápis e papel na mão

Fausto Wolff para o Jornal do Brasil - 18/01/2007, Caderno B: Não são muitos - felizmente - os leitores que escrevem dizendo que o socialismo não deu certo nem no Haiti, ou que Marx está superado, como se alguma vez sua filosofia humanista houvesse sido posta em prática integralmente. A essência do marxismo está contida numa famosa declaração de 1845, extraída de seus textos: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras. A questão é modificá-lo.” Isso significa que, para Marx, todos os problemas nasciam do modo como a sociedade era organizada. Só através da justiça social o homem terá condições de ser feliz. Até hoje ninguém me provou que um homem realmente inteligente pode se preocupar com a futura fortuna dos seus bisnetos em vez de preocupar-se em melhorar a si mesmo como ser humano e assim melhorar o mundo. O Manifesto diz, em seu final: “Os proletários não têm nada a perder, além dos seus grilhões, e têm um mundo a conquistar. Trabalhadores de todos os países, uni-vos!“. A Essência do cristianismo, de Hegel, foi o livro que mais influenciou o jovem Marx. O deus que Feuerbach manteve numa formulação praticamente existencialista não era mais do que a essência do próprio homem: abstratamente e falsamente “objetificada” e então cultuada. O próximo estágio deveria ser, portanto, substituir o amor do homem por Deus pelo amor do homem pelo homem. Um homem que ama a si próprio e aos semelhantes já é, naturalmente, um cristão, sem necessariamente acreditar em qualquer Deus. “Não é a consciência que determina a existência; é a existência que determina a consciência“, escreveu Marx. Um homem ignorante abandonado pela sociedade só poderá decidir entre a subordinação escrava e o crime. Para Marx, o homem é moldado pela sociedade. Embora negasse a religião ele mesmo, jamais desconsiderou a qualidade dos sentimentos religiosos. Ironicamente, a vigorosa vida que existe dentro do marxismo, e especialmente a do marxismo-cristão do século 20, estava ruindo, pois os teólogos da Libertação perderam a guerra contra o clero evangélico-vigarista do estilo Igreja Redentor. O cristianismo socialista voltou a tomar força com Chávez, Correa e Morales, três homens do povo eleitos democraticamente e que a grande democracia dos EUA não quer reconhecer. Quando o lucro desculpa tudo, tudo é possível. As distinções de classe se tornam cada dia mais visíveis: os ricos, uma pequena classe média, um bolsão de pobreza e ignorância e outro de miséria física e mental. Os dois últimos blocos não pensam, são como personagens e assistentes do Big Brother. Votarão eternamente em Lula, pois não votam num nome, mas numa imagem na qual se vêem refletidos. Com dinheiro e armas é fácil para os algozes negarem que o trabalho de um homem produz um valor superior às suas necessidades. O excesso (ou surplus) se transforma em capital para os proprietários da produção. Marx acreditava que um camponês, dono de sua terra, ao final do dia podia decidir se trabalharia uma hora a mais e se a dor na costas compensaria o lucro. O operário na fábrica não tem essa escolha. O diagnóstico de Marx é o de que o sistema capitalista não é, de modo algum, natural para seres humanos. Nele, o homem é um ser alienado da natureza e de si mesmo. Sente-se à parte do seu trabalho, porque não pode contribuir, com ele, para a comunidade. Ele é apartado de si mesmo, pois, embora trabalhe, não tem acesso aos resultados do próprio trabalho. Uma das grandes falácias sobre o marxismo é que ele não dá suficiente importância à vida interior dos indivíduos. Ora, é somente quando se sente livre que o homem constrói sua individualidade e se torna senhor do seu destino. Só se consegue isso no capitalismo através da exploração, do roubo e da loteria esportiva, outra forma de roubo. Com as mudanças ocorrendo em quase toda a América Latina, e Bush atolado em seus crimes no Oriente, não há momento melhor para reconsiderar os argumentos de Marx à luz dos nossos tempos, à luz de métodos mais precisos e refinados de análise moderna. É preciso entender a hora de entregar alguns anéis para não perder os dedos.

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