sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Fédon, de Platão

            Organizado como um diálogo, o Fédon, de Platão, trata de um assunto que faz parte (ou já fez) das cogitações de todo ser humano: a existência e sobrevivência da alma após a morte do corpo. Trazendo-nos aqueles que seriam os últimos instantes de Sócrates, Platão desenvolve seu argumento favorável a essa possibilidade, utilizando-se na figura de seu mestre, que nada escreveu. Estudiosos do tema vislumbrarão com mais clareza, no texto, em quais momentos teremos o pensamento de um ou outro. Em nossas análises, contudo, teremos em mente o famoso “só sei que nada sei” de Sócrates, uma postura intelectualmente mais aberta às possibilidades do conhecimento e de revisões de pontos de vista, portanto não dogmática, senhora de certezas absolutas. No texto, surgem momentos onde Sócrates defende algumas idéias com muita convicção, sendo, assim, um comportamento que não condiz muito com aquele que defende a “certeza da incerteza”. Dessa forma, teremos, em verdade, a “voz” de Platão na defesa de suas crenças.

            A obra começa a partir de um diálogo onde Equécrates solicita a Fédon que lhe narre os últimos momentos de Sócrates, uma vez que a ele estivera presente. A demora entre o julgamento e a execução chamam a atenção daquele que estava ansioso por informes. Em função de uma tradição local, o envio de um navio à cidade de Delos, não se podia executar ninguém, esperando-se pelo retorno deste. A primeira impressão que Fédon transmite a Equécrates era a do estado de espírito de Sócrates, que longe de estar angustiado pela situação, encontrava-se feliz, como se fosse, efetivamente, encontrar no além uma felicidade incomum. Por outro lado, os que estavam presentes oscilavam entre a alegria e a tristeza. Platão, aliás, não se inclui em sua narrativa, entre aqueles que vivenciaram o momento. Diz, através de Fédon, que estava doente. Não somos daqueles que duvidam da capacidade do ser humano em superar seus desafios, mantendo uma postura de coragem moral incomum em momentos críticos da existência. Não sabemos em que medida Platão exagera ou não nas tintas que usa para pintar o estado de ânimo de Sócrates nestes momentos decisivos. 

            As conversas com Sócrates desenrolam-se na prisão. Sabendo do retorno do navio considerado sagrado, no último dia seus amigos chegam para o encontro mais cedo. E o homem (idealizado por Platão?), pelo relato, parece que não perdia ocasião de discutir e ensinar algo. Uma vez livre dos grilhões que lhe atavam a perna, chama a atenção para uma relação que existiria entre o prazer e a dor, que não são simultâneos no homem, mas que se sucedem um ao outro. No caso, parece-nos que o prazer advém da ausência da dor, representado no alívio que se sente.

            Cebes, um dos presentes, recordando-se subitamente de que Sócrates vinha a algum tempo musicando os contos de Esopo, pergunta-lhe com que intenção o fazia, uma vez que várias pessoas o questionaram a respeito, inclusive um poeta chamado Eveno. Sócrates pede-lhe que responda ao poeta que não desejava lhe fazer concorrência e que fizera os versos em função de repetidos sonhos que o exortavam a compor músicas, tendo obedecido por escrúpulos religiosos e na intenção de desvendar seus significados. O desejo de atribuir significados aos sonhos não é exclusivo dos contemporâneos de Sócrates. Situações pouco racionais (sofrer perseguição de insetos gigantes), encontros com pessoas que morreram, sonhos com números (para quem gosta de jogos) que viram resultados em jogos do bicho, por exemplo, intrigam a muitos, ao ponto de termos publicações que pretendem tratar de significados de sonhos, como se isso pudesse ser catalogado e classificado mecanicamente.

            Sócrates pede, então, que transmitam essas informações a Eveno, além de um conselho bem intrigante: se ele for sábio, que lhe siga as pegadas o mais rápido que puder, mas sem fazer violência a si mesmo, porque não seria permitido. Cebes se dá conta do paradoxo e questiona de que maneira se pode seguir alguém que vai morrer e não fazer violência a si mesmo. Diante disso, Sócrates (ou Platão?) defende que existe, para todos, uma necessidade de viver e a vida seria uma espécie de prisão, de onde não seria permitido evadir-se. Os seres aí presos seriam de propriedade dos deuses. De que maneira se daria essa necessidade de viver e como demonstrar o “título de propriedade” dos deuses não é dito.

            Cebes acha estranha a facilidade com que os filósofos aceitam a morte, afinal, se os homem encontram-se sob a guarda das divindades, os homens sensatos deveriam se aborrecer com a morte, porque seriam privados da presença delas. Símias, outro presente ao diálogo, concorda com a observação e acrescenta que ela se dirige a Sócrates, que para ele, não parece se importar muito em abandoná-los. Sócrates defende que cometeria erro sim, ao não se irritar com a morte, se não possuísse a certeza[1] de que, depois dela, se encontrará ao lado dos deuses e de outros homens que já morreram. Acredita que existe algo após a morte que é melhor para os homens bons que para os maus, o que, de certa forma, condiz com certas tradições religiosas do pensamento grego, como os mistérios de Elêusis. A morte, assim, não o afastaria da presença dos deuses, os seus donos, segundo acredita.

            Aquele que se dedica à filosofia, segundo Sócrates, tem como preocupação central preparar-se para morrer, sendo, por isso, estranho que se irrite diante da morte. Afirma que ela não seria mais que a separação da alma do corpo, no que Símias, a princípio concorda. O filósofo deveria ter, no seu entendimento, uma postura de afastamento dos prazeres ditos corporais, que lhe facilitaria esse preparo. Entretanto, como mencionado em um momento do curso[2], em outra ocasião (na obra o Banquete) é apresentado um Sócrates que valoriza certos aspectos destes prazeres, como, por exemplo, o das boas vestimentas. Viver com o pensamento na morte não nos parece uma escolha acertada. Que se considere a morte como possibilidade de qualquer momento, sim, sem dúvidas. É a certeza que se tem. Começamos a morrer desde que somos gerados. Morremos um pouco todo dia. Essa preocupação com a morte que virá um dia não “engessaria” as pessoas, dificultando-lhes o viver? Quem estivesse presente ao diálogo e quisesse “provocar” Sócrates poderia questionar-lhe se a atitude de desejar a morte não seria uma espécie de rebeldia diante dos desígnios dos deuses, que o tem num corpo de carne. Se está vivo, é porque esses deuses quiseram assim.

            O corpo, na exposição de Sócrates, é apresentado como um empecilho na aquisição da sabedoria, uma vez que as sensações corporais são limitadas. Raciocinando, distante do corpo, a alma conseguiria apreender melhor aquilo que deseja. É trazia a cena, por Platão, a teoria das idéias, manifestada em formulações como: “O justo em si mesmo”, “o belo em si mesmo” e “o bom em si mesmo”. Este “em si” seria pensar cada uma destas coisas elas são, a realidade delas. Para a apreensão dessa realidade plena, em si mesma, seria necessário recorrer-se ao pensamento, sem o auxílio dos sentidos corporais. Dessa maneira, conseguir-se-ia maior sucesso. Só se consegue alcançar o conhecimento dos seres em si mesmo por intermédio da alma em si mesma. Para tanto, só conseguiremos quando a alma esteja apartada do corpo, quando ela existirá em si mesma, o que só é possível ocorrer depois da morte. A idéia da imortalidade da alma é necessária para sustentar esta teoria e, como veremos, no entendimento de Platão (pela fala de Sócrates) ela justifica essa sobrevivência da alma.

            Diante disso, Cebes apresenta sua primeira objeção. A alma, efetivamente, sobreviverá após a morte do corpo? Sobreviveria como uma individualidade pensante? Respondendo-lhe, Sócrates questiona se não é no Hades que se encontram as almas dos defuntos, sendo de lá que elas voltariam, renascendo. Assim, se dos mortos nascem os vivos, as almas devem ir para lá depois da morte. Interessante que o argumento não prova coisa alguma, partindo de uma concordância de Cebes, que seria um ponto comum nas idéias dos dois, apenas relembrada por Sócrates. É estranhável, partindo de alguém que há instantes atrás não considerava, ou não levou em conta, essa possibilidade. Esta idéia também remete a forma de pensar dos gregos de então, em termos de circularidade, onde uma coisa daria origem à outra e não um surgimento do nada, organizado linearmente. Para Sócrates, se algo não surgisse do seu contrário, em algum momento elas se imobilizariam em uma extremidade (pensando em termos lineares), deixando o outro extremo vazio. Recordo-me, neste momento, das idéias que se vendem sobre o fim do mundo. Evidentemente ocorrerá, porque é material. Mas parece haver certa ansiedade de se viver esse momento. Diversas vezes se disse que estava para acabar e não acabou. A virada para o ano 2000 certamente aterrorizou muita gente que, desde pequena escutava dos antigos que “a 2000 chegará, mas de 2000 não se passará”. Não é incomum que sejam mencionados casos de suicídio por conta disso. A mais recente notícia do fim do mundo daria conta de que este acabará em 2012, segundo um calendário Maia. Esquece-se, entretanto, que esta sociedade também pensava em termos de circularidade, ao final sucedendo-se um novo começo, não em termos de final absoluto, linear, como a mentalidade da grande maioria de nós está acostumada a organizar a vida.

            Aprender seria recordar-se, uma vez que em algum momento anterior teríamos aprendido aquilo que presentemente recordamos. Foi Cebes quem lembrou disso! Partindo dessa referência, Sócrates defende que se pode ter uma recordação de algo “ativada” através de uma imagem diferente, como por exemplo, a de um objeto que lembre uma pessoa. A recordação, assim, poderia partir de um semelhante como de um diferente. Os seres verdadeiros seriam as idéias eternas e os objetos materiais não seriam outra coisa senão a imitação pobre daquelas. Para se conhecer algo (relembrar) é necessário que se tenha conhecido as idéias em si antes de entrar no corpo. A despeito de serem muito criticadas, anteriormente, por suas limitações e possibilidades de gerar enganos, as sensações surgem-nos, agora, como o veículo necessário para se perceber as semelhanças dos objetos materiais, que estão à volta, com as idéias em si, apreendidas antes. Através dos sentidos, revivem-se os conhecimentos.

            Símias e Cebes dão-se por satisfeitos com a demonstração de que a alma existe antes do nascimento, mas o primeiro questiona se ela continua a existir depois da morte, uma vez que isso não fora provado ainda. Sócrates, então, retoma aquela idéia de que tudo o que vive nasce do que é morto, argumento aceito por ambos anteriormente e que, em última análise, não prova coisa alguma. Buscando aprofundar mais o assunto, adensando seu argumento, conduz sua reflexão deles quais seriam as coisas suscetíveis de decomposição e em quais isso não ocorreria. Os seres que se conservam imutáveis seriam aqueles não sujeitos à decomposição. Retomando a linha argumentativa da teoria das idéias, dela se utiliza para questionar se o belo em si, o igual em si, em última análise, a realidade em si mesmas, são passíveis de modificações. Cebes considera que se conservam da mesma maneira. Os seres dessa realidade (em si) só seriam captáveis pelo pensamento. Sócrates, então, propõem duas espécies de seres, uma visível e outra invisível, sendo que os primeiros não conservam sempre sua identidade, ao passo que os segundos sim. Seríamos constituídos de alma e corpo, a alma sendo invisível e o corpo visível. A alma, no seu entendimento, teria mais semelhança com o divino e o corpo com o mortal. Continua não provando nada, repassa, com pequenos desenvolvimentos, a argumentação já utilizada.

            Sócrates alonga-se ainda em considerações sobre como seria a realidade das almas boas ou más, trazendo a idéia da metempsicose, ou seja, da possibilidade da alma humana renascer em corpos de animais, de acordo com a vida que tenha levado no mundo. Pinta-nos com tintas tão vivas que parece ter visitado e conversado estas almas. Enquanto isso, Cebes e Símias conversam, tentando “digerir” aquilo que fora exposto até então, sendo Símias o primeiro a externar sua insatisfação com o exposto.

            Para ele, as provas não foram satisfatórias. Utilizando-se das imagens de uma lira e a harmonia, sugerindo que a harmonia é invisível, incorpórea e divina (como a alma), ao passo que a lira é corpórea, terrena, ligada, por semelhança, ao mortal. E quando a lira fosse destruída, o que seria da harmonia? A alma como harmonia, então, seria como a saúde do corpo, parte integrante deste. Cebes concorda que a alma exista antes do nascimento, mas não consegue admitir que depois da morte ela subsista. Admite que a alma seja mais durável que o corpo, entretanto, o corpo, cuja natureza é mais frágil, subsiste ainda por algum tempo depois do fenômeno da morte. A alma, durante a vida, renova sua vestimenta (o corpo) diversas vezes. Considera Cebes que na morte, com a última vestimenta, a alma possa ser destruída. Em outras palavras, pelo que apreendemos, acredita que em algum momento nestes renascimentos múltiplos, a alma também sofra desgaste e pereça no instante da morte do último corpo.

            Eis que Sócrates lhes responde. Propõe a Símias que modifique sua opinião, pois que este não poderia afirmar, ao mesmo tempo, que a harmonia existe antes dos elementos que a compõem, uma vez que antes admitira que a alma existia antes de nascer. Assim, ela não poderia ser um atributo do corpo. Adensando ainda mais sua defesa, Sócrates questiona que, se a alma é harmonia, como se explicaria a virtude e o vício que se encontram nas almas? Se fosse harmonia, elas seriam uniformes, para alguma das duas possibilidades (virtude ou vício), porque decorrentes do corpo, um efeito material. Simplesmente retórica. Novamente utiliza-se de noções anteriormente aceitas sem questionamento por parte de seus interlocutores, qual seja, o de que a alma existe antes do nascimento.

            Para responder Cebes, que deseja a demonstração da indestrutibilidade da alma, bem como sua imortalidade, Sócrates lança mão, com vigor, da teoria das idéias. A idéia em si não admite possuir naturezas contrárias (não pode ser pequeno e grande ao mesmo tempo). Em outros termos, as coisas não admitem ser o seu próprio contrário. Tomando essa referência, propõe uma série de questões a Cebes, colocando, como resposta, que o contrário da vida seria a morte. O que não admitiria a idéia da morte, para ele, seria imortal. Se a alma não admite a idéia de morte, logo é imortal. Se o imortal é indestrutível, a alma não poderia ser destruída. Assim, a alma sobreviveria ao fenômeno da morte. Novamente uma resposta retórica, que não traz nenhuma prova concreta, apenas desdobrando argumentos a partir da teoria das idéias.

            Como se relacionaria Platão, nos dias de hoje, com os relatos de quase-morte[3] onde pessoas descrevem o que seria o ambiente que visualizaram no “mundo dos espíritos”, ou aquelas de regressão de memória[4], onde o indivíduo lembrar-se-ia de detalhes de suas outras vidas? Como enxergaria a transcomunicação instrumental[5], que estuda as supostas comunicações dadas por aqueles que já teriam morrido através de aparelhos eletrônicos, como televisores, rádios e até telefones? Estes estudos, certamente, revestem-se (ou pretendem) um caráter mais científico em suas abordagens e metodologias para constatarem ou não a sobrevivência do espírito e a reencarnação. Será que usaria estas informações para tentar convencer os Símias e os Cebes modernos?  De nossa parte, a despeito de acreditarmos nisto, não ficaríamos convencidos com a argumentação proposta por Platão, através do discurso de Sócrates.

           

           



[1] E o só sei que nada sei?

[2] Evolução do Pensamento Filosófico e Científico, 2°/2009.

[3] Mais informações no site do Instituto de Pesquisas Projeciológicas e Bioenergéticas: http://www.ippb.org.br/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=2662. Acessado em 09/11/2009.

[4] Mais informações no site Fórum Espírita: http://www.forumespirita.net/fe/off-topic/entrevista-ao-dr-brian-weiss/ . Acessado em 09/11/2009.

[5]  Mais informações no site: Transcomunicação.net: http://www.transcomunicacao.net/ . Acessado em 09/11/2009.

Sobre Serpa Pinto, viajante português do século XIX

A obra de Serpa Pinto, intitulada “Como eu atravessei a África, do Atlântico ao Mar Índico. Viagem de Benguela à Contra-Costa, através de regiões desconhecidas. Determinações geográficas e estudos etnográficos” possui 16 mapas e 183 gravuras feitas pelo autor, com 18 capítulos, divididos em dois volumes. Foi publicada em Londres, em 1881.

           

Na primeira parte da obra, agradece em primeiro lugar, a Sua Magestade D. Luiz I, por dívida de justiça e gratidão, já que ele assinou o decreto criando recursos para a primeira expedição científica portuguesa daquele século à África Central. Uma oportunidade e tanto de prender seu nome de soldado a esta empresa. Presta contas ao Conselheiro João D’ Andrade Corvo que, em 1877 propôs o nome dele na Comissão Permanente de Geografia, para fazer parte da expedição. Lembra de agradecer, também, a Sociedade Geográfica de Lisboa, na figura de dois de seus presidentes. Situa Henrique Moreland Stanley como amigo e conselheiro, agradecendo-lhe as lições. Não deixa de fora nem as Associações portuguesas no Brasil. Não se esquece do rei Leopoldo, da Bélgica, bem como a Sociedade Geográfica deste país, além da de Londres.

           

Seu livro é apresentado como a reprodução fiel do seu diário de viagem. A obra efetivamente possui essa organização, uma vez que faz a cronologia da viagem, escreve notas de observações, às vezes abrindo parênteses para narrar fatos curiosos ou que considera engraçados.

           

Para ele, a Europa, de uma maneira geral, e o homem que nunca viajou para os sertões do interior da África, não teria condições de compreender o que se sofre ali e quais as dificuldades a se vencer a cada instante. As narrativas de Livinsgtone e Stanley não dariam conta de mostrar o sofrimento dos viajantes africanos. Só um explorador poderia compreender as atribulações de um explorador. Faz questão de frisar que não à África ganhar dinheiro. Recebeu o pagamento (mesquinho, diz) de oficial do exército. Deixou tudo para a grande obra de estudo do continente desconhecido. Reiteradas vezes menciona as saudades da família e a vontade de desistir da empresa por causa dela.

Além desse discurso de autoridade (vencedor de dificuldades, foi e voltou), tenta mostrar-se destacado em habilidades e qualidades morais, na imagem que pinta de si de um bom atirador e a de austeridade moral. Um homem vendia um líquido que ele afirmava preservar aquele que o bebesse de ser atravessado por uma bala. Desafia Serpa Pinto a atirar na panela que continha o tal líquido, sem antes situa-la numa distância de oitenta passos, que acreditava o bastante para que não fosse atingida. A panela foi espatifada, segundo Serpa, junto com a moral do vendedor.

Quando se encontra na região do sova dos Ambuelas, este mandara os seus festejarem juntos com os de Serpa Pinto. Aos poucos, os homens foram retirando-se, permanecendo apenas as mulheres destes, para os “agradarem”. As filhas do sova ficaram em sua tenda, tentando-o aos “prazeres da carne”, ao que ele conta ter resistido porque elegera a austeridade na conduta, para dar exemplo para os que o acompanhavam.

Perto de chegar ao Zambeze, sua caravana já se encontrava sem comida. Mandava buscar em algumas regiões, mas os locais não vendiam. Aborrecido, reúne os seus e assaltam uma localidade que lhes negara a compra, provendo-se de alimentos e, depois, pagando-os com missangas e tecidos que, segundo ele, corresponderiam ao valor daquilo que “compraram à força”.

Em certos momentos da viagem, na contingência de ter que punir alguém, participantes ou não de sua caravana, diversas vezes os perdoou, para espanto de todos (espanto que faz questão de assinalar).

Descreve sua rotina. Diz que se levantava às 5 horas, tomava banho morno. Fala de sua banheira e de sua chaleira (que usava na sua higiene). Ao termino, seu criado guardava os objetos e lhe trazia seus cronômetros, termômetros e barômetros. Depois de seu chá verde, dava ordem de partida. Carregadores à frente, ele e os pombeiros atrás. Ao final do dia, fazia o boletim meteorológico. Depois da refeição, se o cansaço o impedia de caçar ou percorrer os arredores, passava o tempo escrevendo no diário. Acordava às 3 horas e ficava fumando até às 5 horas, pensando na família.

 

 

No Prólogo de sua obra descreve um pouco de sua trajetória, bem como os preparativos para a empresa. Ficando sabendo da intenção do governo de mandar uma expedição para a África Austral, procurou o Ministro das Colônias e, após algumas dificuldades de encontrá-lo, fora recebido por este com alguma secura, até que mencionou saber das intenções de uma expedição à África. O tratamento mudou e ele foi convidado a fazer a viagem.

O presidente da Comissão Central Permanente de Geografia informou-lhe que já havia pensado em outro oficial para o trabalho, Hermenegildo Capello. O assunto da expedição esfriou por um tempo, passando-se mesmo alguns meses, e tanto ele quanto Capello já não acreditavam mais na possibilidade de se concretizar até que a verba de 30 contos foi votada no Parlamento. Convocado, tinha um mês para preparar a expedição. Quando foram providenciar os materiais que precisariam, não encontraram nada pronto. Tiveram que encomendar todos os acessórios para a viagem.

Lendo as narrativas de outros exploradores, notou que não se ocupavam com os preparativos destas. Propôs-se, então, a escrever sobre isso, mencionando os objetos que foram úteis e quais não.

 

Segundo ele, o governo pretendia que estudassem as relações hidrográficas entre as bacias do Congo e do Zambeze, e os países compreendidos entre as colônias portuguesas de uma a outra costa da África Austral. Reconhece que a pretensão é maior que a capacidade de uma só expedição, bem como pelos poucos recursos disponíveis.

 

Em 06 de Agosto de 1877 chegam a Loanda. Preocupava-se com a bagagem, que já era grande e ainda seria aumentada com fazendas, missangas e outros gêneros que seriam moeda no sertão. Nos livros de viagens lera a dificuldade de se conseguir carregadores em bom número. Um problema que, aliás, viverá com muita regularidade.

Partiu, então, para o sul de Benguela, para tentar consegui-los. Como não confiava nas gentes com que acertaria, lembrou-se de pedir ao governador certo número de soldados, que fossem a escolta de vigia. Este mandou saber se havia nos regimentos quem os quisesse acompanhar, já que não sendo um serviço regular, não podia obrigá-los a irem.

Certas curiosidades sobre os carregadores lhe chamam a atenção. Os bihenos iam muito longe em suas andanças, mas só viajavam do Bihé ao interior. Só iam ao litoral quando queriam. Os bailundos alugam seus serviços entre a Costa e o Bihé, não indo ao interior para o leste, mas apenas ao norte.

Momentos houve, na viagem, que tinham mais cargas que carregadores. As vezes teve que abandonar cargas. Destruía o que não era levado, pois se deixasse os carregadores aproveitarem algo, teria problemas. Sempre haveria alguém deles doente, obrigando-o a abandonar cargas para se retirarem dali objetos para uso próprio, organizando um roubo permanente. Conselhos de Silva Porto, o velho sertanejo que o ajudava com sua experiência e logística, enviando-lhe algumas cargas, em certos momentos.

 

Busca fazer uma descrição de Benguela. Procura observar as construções, a organização das ruas e praças. Nota quais gêneros agrícolas são produzidos, particularmente se são europeus. Os principais produtos do comércio são a cera, o marfim, a borracha e a urzela (líquem que serve de corante) que chegam a cidade trazidos pelas caravanas do sertão, algumas dirigidas por agentes das casas comerciais, outras compostas por filhos da terra.

Descrevendo as localidades, acaba fazendo o juízo de valor dos naturais e, até, as vezes, de brancos já adaptados à região. Falando do exército das colônias, diz que este é mau, porque o preto seria mau soldado, ao passo que o português é bom. Entretanto, até os brancos que aí servem saem piores que os pretos. Deportados por crimes na Europa, confiam-lhes o posto de soldados. A segurança nas mãos de homens de passado duvidoso.

Considera a possibilidade da “degeneração” do branco europeu ao contato com o africano. Cita os Böers do Transvaal que, europeus de origem, em um século perderam tudo de civilização que trouxeram da Europa, sendo vencidos pelo elemento selvagem do meio em que viviam. Se são europeus pela cor e pela religião cristã, são bárbaros pelo costume.

 

No histórico que faz do Bihé também é possível depreender as maneiras como enxerga o africano. Para ele, os bihenos são pouco industriosos e pouco agricultores, sendo o trabalho feito pelas mulheres, que cultivam a terra. Os homens são dados a viajar. Vão traficar nos sertões marfim e escravos. As comitivas levam crianças com cargas proporcionais as suas forças. Apesar dessa qualidade, do hábito de viajarem, possuem grandes defeitos. Diz não conhecer outros que sejam tão viciados, depravados, cruéis e hipócritas.

Não possuiriam menor idéia de religião (como a entende Serpa). Não adoram o sol nem a lua, vivendo com seus feitiços e adivinhações. Parecem acreditar na imortalidade da alma ou na sua perturbação quando não cumprem certos preceitos em favor do morto.

Acredita que os africanos, ao contato com o europeu, possam modificar seus hábitos, civilizando-se.

 

A alimentação deste povo é quase toda vegetal. Raramente matam um boi. Vez ou outra um porco. Comem toda carne que encontram, preferindo-a em estado de putrefação. Não os considera positivamente canibais, apesar de comerem, de tempos a tempos, um bocado de homem cozido. Seria altamente ladrão, furtando sempre que lhe surgisse ocasião. Entretanto, fora de seu país, não roubaria e, como carregador, respeitaria a carga.


Procura atentar para os produtos europeus possíveis de cultivo na região, bem como características da população e formas de governo.

 

Alguns Quimbares que ele julgava semi-civilizados juntaram-se aos Quimbundos na disputa de restos mortais de um animal, para horror de Serpa Pinto, que comenta o fato. Às vezes pensa que é absurdo civilizar o negro na África. Acha que é preciso, para cada preto, a presença de um branco, para se realizar esse sonho de alguns espíritos elevados europeus, que acreditam nisso. Assim, se poderia equilibrar e vencer o elemento selvagem. A despeito de considerar a possibilidade de civilização dos africanos, as vezes duvida, pelo que se depreende.

Algumas reflexões sobre o MST

PESCHANSKI, João Alexandre. A Evolução Organizacional do MST. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. São Paulo: FFLCH/USP. 2007.

Analisa a evolução organizacional do MST, de sua formação até o ano de 2006. Trabalha com duas hipóteses, a primeira defende que a organização do movimento resultaria de uma combinação entre os objetivos dos sem-terra, os riscos e as oportunidades de cada situação, além da atuação das lideranças, cujo perfil considera importante analisar. A segunda propõe que para a continuidade do MST é decisiva sua capacidade de se reinventar, levando em conta as mudanças que lhe são externas.

No período inicial do movimento, teria sido fundamental a participação de grupos católicos progressistas, estimulados por uma leitura social da religião, inspirados na Teologia da Libertação. Teriam atuado como defensores e articuladores de mobilizações camponesas em vários Estados. Quando o movimento se formaliza, estes setores do Catolicismo teriam se afastado, em função das novas circunstâncias políticas geradas pela redemocratização. Vive-se, então, um período de alguma confusão organizacional até formularem a Direção Nacional.

Na década de 1990 a DN (Direção Nacional) se torna pouco aberta a novas lideranças, em função dos enfrentamentos com o Governo Federal. Com a eleição de Lula, a direção se reinventa para dar conta da nova realidade política, tendo como resultado mais concreto a abertura a novas lideranças. O MST mantinha fortes vínculos com lideranças do PT desde o seu surgimento, participando, de 1988 à 2002 da campanha para consolidar o nome de Lula para presidente.

Outro fenômeno que leva à mudança na composição recente da DN é o crescente protagonismo feminino. Durante sua história, esta instância fora pouco aberta a mulheres. Em 2006, adota a política de reequilíbrio de representação de gênero. O autor aponta, por fim, uma tendência à radicalização dos protestos por parte das mulheres.

RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado. Tramas e Traumas: identidades em marcha. Tese de Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP. 2007.

A autora analisa o processo de constituição das identidades, por meio de experiências de vida, que envolvem o MST. Além disso, busca apreender a aplicação da história oral como forma de produção e análise, na maneira de se memorizar e narrar, e as relações estabelecidas entre sujeitos (entrevistador e entrevistado). Tratou conjuntamente de da história oral e das identidades sem-terra porque, para ela, experiência e memória são essências do narrar e identificar.

Trabalhou, no começo, com 47 entrevistas, realizadas durante a Marcha Nacional, que ocorreu de 1° a 15 de Maio de 2005. Desse universo, selecionou 8. considera ter sido fundamental ter participado desta Marcha para entender a formação das identidades.

A experiência de exclusão seria, para ela, fundamental para entender a construção das identidades sem-terra. Falando disso com os entrevistados, refletiu-se sobre as questões de cidadania e da democracia, por serem inclusivas do indivíduo no mundo político. A marca dessa inclusão, para os narradores, é a diferença de vida antes e depois de conhecerem o MST.

O MST, aliás, não seria igual para todos, porque é interpretado de diversas formas por seus componentes. Não existiria, assim, uma identidade sem-terra única, como algumas lideranças teriam desejado, mas sim identidades que o compõem, em sua diversidade.

A vida privada/familiar, no geral, não faz parte das entrevistas, que possuem caráter mais militante/profissional. Existe um fascínio, por parte dos narradores, com relação à organização e pelo tamanho do movimento. Ser homem e ser mulher, no MST, são coisas bastante diferentes. Há, ainda, uma estrutura machista, que faz com que a participação feminina, da Direção Nacional às fileiras da Marcha, seja minoritária. Ser negro, indígena ou branco também implicaria em diferenciações. Além disso, a educação também é marco de certa hierarquia. Não por acaso, é apontada como importante pelos narradores, uma vez que a tomam como ferramenta para a superação da exclusão social.

SILVA, Benedito Cândido. A luta na terra em busca da emancipação. Histórias orais de vida de agentes do MST do Assentamento Dorcelina Folador, no município de Arapongas, Estado do Paraná. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas. Paraná: UEPG. 2007.

Trata-se de um estudo de caso que busca sondar o nível de emancipação e inclusão social atingidos, na visão dos agentes pesquisados, após o ingresso no MST e a conseqüente conquista da terra.

Observou forte influência da Igreja Católica na formação das identidades da maioria das narrativas. A idéia de emancipação, assimilada pelos agentes alvo da pesquisa, apresenta-se, mais do que conquista da terra, a apropriação de maior esclarecimento sobre aspectos da conjuntura atual e a evolução na consciência de direitos de cidadão.

A escolha do método de investigação foi motivada pela obra “Vozes da Marcha pela terra”, de Santos, Ribeiro e Meihi, que é um registro de histórias orais de vida de alguns integrantes do MST, participantes da Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, realizada em Abril de 1997.

Pretende oferecer a possibilidade de ser dirigido o olhar para o mundo e a sociedade na perspectiva do lavrador que se propôs a lutar para conquistar seu pedaço de terra, justificando essa luta em função de garantir um mínimo de segurança a si mesmo e a sua família, além de conhecer como esse lavrador se vê no contexto social. Até onde ele se insere e até onde diverge da sociedade, como lida com as influências da ideologia do movimento em contraponto com a ideologia dominante.

Entrevistou 3 homens e 3 mulheres para avaliar as perspectivas de ambos os gêneros. A escolha não foi decidida pelo pesquisador, mas em reunião dos coordenadores dos setores de educação e cultura do Assentamento.

O fio condutor das entrevistas foi a trajetória de vida de cada um, antes e depois de ingressarem no MST, o que lhes motivou o ingresso, suas lutas, sucessos e fracassos, suas perspectivas e dificuldades enfrentadas após a conquista da terra. As falas dos entrevistados foram divididas em temas, segundo o autor para facilitar o estabelecimento de relações entre elas. Os temas são: Apresentando os sujeitos; A Igreja como determinante no ingresso ao MST; Emancipação e sentimento de dignidade; A questão de gênero; As lutas.

Os pesquisados demonstraram vivo interesse em conhecer o resultado final da pesquisa, na expectativa de que possa contribuir para reflexão e aperfeiçoamento de práticas, ainda que o objetivo da pesquisa não seja de intervenção, como declara o autor. A escolha por militantes foi no sentido de avaliar os aspectos motivadores da militância e seus reflexos dentro da comunidade. Apesar das dificuldades que suportavam, o sentimento que os entrevistados deixa transparecer é o de terem conquistado emancipação e dignidade de cidadãos.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O mal em primeiro lugar?

Já repararam como é iniciado o Jornal Nacional, da Rede Globo? As notícias ruins vem em primeiro lugar. As melhores são deixadas para o fim.

Já imaginaram um jornal onde só existissem boas notícias?

Os maus, por acaso, preponderam no mundo? Somos mais de 6 bilhões de seres humanos. Será mesmo que as más notícias são em maior número?

Mesmo os maus são capazes de atitudes, isoladas que sejam, de bondade. Sempre amam alguma coisa.

Nas novelas, acontece algo parecido. E eu raramente as assisto. As maldades começam e se estendem durante todo o período. Os "bons" só se dão bem no final. Aí vem o "castigo" dos maus... e nos sentimos plenos no sofrimento deles. Nos sentimos vingados...

O mal precisa de tratamento.

Precisamos divulgar mais o bem, para contagiar aqueles que andam mornos, desanimados, sem esperanças.

Sementes do Amanhã, na voz de Erasmo Carlos