quarta-feira, 9 de julho de 2008

Os abusos da memória


Numa época como a que vivemos, onde existe um volume crescente de informações de todos os tipos, nem sempre transformadas em conhecimento, a preocupação com o passado é presente. Quantas vezes vemos tantas pessoas repetindo, por exemplo, que o Brasil não tem memória, que os eventos históricos e suas conseqüências são esquecidos pelas maiorias? Notamos que esse questionamento é formulado, com alguma freqüência, por pessoas que, de alguma maneira, se sentem lesadas por esse passado. Essa discussão sobre memória e esquecimento acontece em várias partes do mundo, não só aqui. Por isso, acredito na importância de estudos que analisem os usos que se fazem da memória, pois se trata de um tema instigante para o estudo da História, enquanto disciplina e, ao mesmo tempo, politizado, pelo encaminhamento que as pessoas ou grupos, com interesses no presente, pretendem impor-lhe.

A obra “Os Abusos da Memória”, de Tzvetan Todorov vem trazer contribuições pertinentes para esse debate. Leitura agradável, o autor deixa naqueles que lhe percorrem as páginas a vontade insaciada. Apresentado, numa primeira versão em um Congresso (História e memória dos crimes e genocídio nazista, organizado pela Fundação Auschwitz), acredito que, posteriormente, o texto tenha sido adensado. Como a leitura deixou-me boas impressões, pelo encaminhamento que o autor deu ao assunto, penso que poderia ter feito uma obra de maior fôlego, aprofundando os debates que fez, nem sempre de maneira declarada, com os historiadores que se debruçaram sobre o tema.

Todorov começa tratando da “memória ameaçada”. Para ele, seria uma característica dos regimes totalitários o controle ou a tentativa de supressão da memória, quando fosse conveniente para essas tiranias. Assim, a memória ganharia mais prestígio para os grupos que são inimigos desses regimes, porque as informações que dela seriam apuradas poderiam salvar vidas e mobilizar as pessoas contra esses poderes. Não é por acaso que os regimes de Hitler na Alemanha e de Stálin na URSS são utilizados para ilustrar os argumentos do autor. O autor defende ainda que o apreço pela memória e a condenação do esquecimento teriam se estendido além do contexto original, por conta da influência de escritores talentosos que viveram em países com regimes opressores. Isso pode nos ajudar a entender a preocupação atual com a memória.

O elogio incondicional da memória e a condenação do esquecimento são problemáticos, porque, em verdade, não existe antagonismo entre esses dois elementos diferentes. Todorov faz notar que a memória é seletiva, e nisso concordam com ele estudiosos no assunto, como Henry Rousso. Cabe ao historiador perceber o não dito, os silêncios, as omissões nos relatos de memórias que análise. Nem todos têm do que se orgulhar do seu passado. Deslizes, algumas falhas morais, informações que, de alguma maneira possam macular a honra, são deixados de lado. Contando a experiência de fazer um “filme histórico” (Jongos, Canlangos e Folias), a professora Martha Abreu, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense lembrou que uma pessoa que prestou depoimento para o filme pediu, depois de gravada, que uma parte de sua fala, que menciona a ocorrência de brigas, fosse retirada para que as pessoas que assistissem ao filme não imaginassem que esses eventos fossem presentes na sua localidade.

O autor destaca também o que seria um movimento de passagem da tradição para a modernidade. A partir do século XVIII na Europa, começaria a formar-se um tipo de sociedade que deixaria de reverenciar, de maneira incondicional, as tradições e o passado, voltando-se para o futuro. Assim, nas sociedades ocidentais, deixar-se-ia de se servir do passado como um meio de legitimação. Passar-se-ia de uma sociedade regida pela tradição, para uma sociedade dirigida pelo contrato, sendo o recurso ao passado substituído pelo consentimento da maioria.

Todorov posiciona-se pela modernidade. Para ele, o foro privilegiado para a resolução das questões de legitimidade é a atuação do indivíduo enquanto cidadão, pelo contrato social. Tenho a impressão, contudo, que a sua defesa da modernidade sugere um deslocamento homogêneo, partindo-se da tradição para o contrato, num processo que ocorreria com um só ritmo de maneira monolítica em todas as regiões. O autor analisará, aqui mesmo, casos bem atuais e até bastante numerosos onde as justificativas para as ações e reivindicações no presente são retiradas do passado. Penso também que a obra de E. P. Thompson (Costumes em Comum), que trata dos trabalhadores ingleses do século XVIII e parte do XIX que valorizavam fortemente a tradição e os usos costumeiros, é demonstrativa de que esse movimento sugerido por Todorov merece ser relativizado. 

Nessa altura do texto, não restam dúvidas de que o passado é indispensável. Agora, não significa com isso que o passado deva reger o presente. Ao contrário, é o presente que fará do passado o uso que desejar. Ninguém é independente do passado. A identidade atual e pessoal do indivíduo é construída pelas imagens que este possui do passado. Aqui, mais uma vez, nosso autor está afinado com estudiosos da memória, como Michael Pollak. Aliás, a memória estaria responsável não só por nossas convicções, como também por nossos sentimentos. Muito bem lembrado por Todorov o exemplo dos sérvios, que explicavam suas agressões contra os outros povos da Iugoslávia como uma desforra pelas agressões que sofreram no passado. Se todos os ofendidos se sentirem no direito de retribuir mal por mal, usando a “lei do olho por olho”, ficarão todos cegos. 

Nesse momento, nosso autor apresenta o núcleo de sua tese, os bons e os maus usos do passado. Uma maneira de fazer essa distinção consistiria em perguntar-nos sobre os resultados e pesar o bem e o mal dos atos fundados sobre a memória do passado, fazendo a opção pela paz e não pela guerra. Em outras palavras, é dar uma função social para esses usos do passado, fazendo com que eles, de alguma maneira, promovam um estado de bem estar para a coletividade humana.

Seriam, no entender de Todorov, duas as maneiras de ler um acontecimento recuperado pela memória: literalmente ou exemplarmente. Na literalidade, identificam-se as causas e conseqüências de um ato, descobrem-se os personagens envolvidos com o autor inicial dos sofrimentos e os acusam, estabelecendo uma contigüidade entre o ser que alguém foi um dia com o que se é no presente, estendendo as conseqüências do trauma inicial a todos os instantes da existência. Na exemplaridade, sem negar a singularidade do evento, decide-se utilizá-lo, depois de recuperado, como uma manifestação entre outras de uma categoria mais geral e se servem dele como um modelo para compreender situações novas. Abre-se a recordação à analogia e à generalização, constrói-se um exemplo e se extrai uma lição. O passado se converte em princípio de ação para o presente. O uso literal do passado converte em insuperável o acontecimento e submete o presente ao passado. O uso exemplar faz aproveitar as lições das injustiças vividas para lutar contra as de hoje. O indivíduo que não consegue desligar-se do doloroso impacto emocional que sofreu segue vivendo o passado ao invés de integrar-se no presente, e por isso merece ajuda.

O autor defende a exemplaridade, pois está alinhado com a modernidade. O passado, nessa maneira de enxergar, é ferramenta de construção e análise do presente com vistas ao futuro. Daria uma função útil à difícil experiência que se viveu, na medida em que se lança mão dela como referência no tempo presente. O uso literal é paralisante, muitas vezes até patológico, faz com que os grupos vivam em função do passado, esquecendo-se do presente. 

Ainda assim, e Todorov nos mostra isso, a exemplaridade é objeto de criticas. Defende-se que os eventos são singulares, únicos e que a vontade de compará-los com outros não representa outra coisa senão o desejo de os profanar ou atenuar-lhes a gravidade. Mas como dizer que um acontecimento é único se não se o compara com outros? Quando se pensa comparação está se pensando em semelhanças e diferenças. Esta preocupação com a exemplaridade é freqüente quando se trata do genocídio de judeus na Segunda Guerra Mundial. Se se busca no passado lições para o presente, é que se reconhece que estes possuem características comuns. Quando se pensa em singularidade o que acontece geralmente é a tentativa de dar-se uma qualidade superlativa ao evento, ou seja, que a experiência que se defende por singular teria sido a maior ou o pior crime da história humana, o que na verdade é um juízo de valor que não passa de uma comparação.

Todorov traz para suas análises as comparações entre os regimes de Stálin na URSS e o de Hitler na Alemanha e quais os que se posicionaram a favor ou contra essas comparações. Os que estariam contra seriam favoráveis à memória literal e os que se posicionaram a favor os que se identificam com a memória exemplar. Traz também o exemplo de David Rousset, que fora prisioneiro político dos nazistas e conseguira sobreviver, passando, em seguida a lutar contra os campos de concentração comunistas, reunindo e publicando informações a respeito destes. Se tivesse se inclinado para a memória literal, teria passado o resto da sua vida mergulhado no seu passado. Escolhendo a memória exemplar, usa o passado para atuar no presente, dentro de uma situação que ele conhece por comparação. As generalizações da memória exemplar não são ilimitadas. Ela não faz desaparecer a identidade dos fatos, só os relaciona entre si, estabelecendo semelhanças e diferenças. Nosso autor cita mais alguns que assumiram essa postura dinâmica. Outros, no entanto, que viveram experiências como prisioneiros nazistas e comunistas se negavam a combater os Gulags por princípios ideológicos. Transformados em negacionistas, eram mais perigosos que os que assumem presentemente essa postura, porque os campos soviéticos estavam em funcionamento naquele momento e a denúncia pública era única maneira de combatê-los.

O trabalho do historiador, para nosso autor, seria eleger alguns fatos mais destacados e significativos e relacioná-los entre si. Semelhante trabalho estaria voltado, não para a busca da verdade, mas para o bem. Mais uma vez, busca dar às informações sobre o passado um caráter social, pensando na sua boa utilização em prol do coletivo.

Na última parte do texto, a mais extensa, que discute o culto à memória, Todorov afirma que a França estaria inserida nele. Lá ocorreriam chamamentos constantes à vigilância e ao dever de guardar a memória, como uma espécie de militância desta. Tentando entender as razões desta intensa preocupação com o passado, ele aponta que isto poderia significar a saúde de um país pacífico, onde nada acontece, ou a nostalgia por uma época não mais existente, quando a França era uma potência mundial. Acrescentaria nessa enumeração dele a crise de perspectivas no presente e no futuro, que se vive atualmente em várias partes do mundo. Forçando uma generalização, as pessoas estão visualizando a realidade que vivem como estática, pronta e acabada, como se tudo que as certa não fosse resultado de elaborações e reelaborações constantes. Naturaliza-se, por exemplo, conquistas de direitos trabalhistas, como se estes tivessem existido desde sempre e não se corresse o risco de perdê-los. Acredita-se muito pouco, também, nas possibilidades de mudanças para melhor. As pessoas não se sentem capazes de realizações que ajudem a alterar suas vidas, não sentem confiança na atuação política que poderiam desempenhar na sociedade. Esperam que terceiros resolvam-lhes os problemas, tentam transferir suas responsabilidades de atuação no presente para outros. A nostalgia de que falamos pode estar associada à falta de perspectiva no futuro. Muitas vezes, quando se conversa com os mais idosos, estes sempre afirmam que “no meu tempo a situação era melhor”. Dificilmente o tempo atual é o melhor. E isto não afeta somente as pessoas idosas. Muitos jovens vivem hoje com a cabeça em uma época que não viveram. Por admirar algum momento do passado, estabelecem com este uma relação que os paralisa no presente. Deixam de viver o seu tempo e acreditam, muitas vezes, que conseguirão reeditar a experiência do passado que admiram nos dias atuais. Isso é particularmente visível com o Maio de 1968, realmente instigante, principalmente por conta do caráter global e quase sincrônico das atitudes tomadas e das bandeiras defendidas.  

A maioria das pessoas experimenta a necessidade de sentir seu pertencimento a um grupo para obter o reconhecimento de sua existência. O mundo contemporâneo caminha, no entender de Todorov, para uma maior homogeneidade e uniformidade e esse direcionamento prejudicaria as identidades tradicionais. A combinação das duas condições, da necessidade de uma identidade coletiva e a destruição das identidades tradicionais seria responsável, também, pelo novo culto à memória, pois, ao se constituir um passado comum, o indivíduo se beneficia do reconhecimento devido ao grupo com o qual se vincula. Acredito que nosso autor força um pouco quando fala da destruição das identidades tradicionais como um efeito da modernidade. Em vários locais, grupos que se organizam com base na tradição se valem da modernidade para sobreviverem. Quando menciono isso estou pensando no trabalho de um sociólogo argentino, Nestor Garcia Canclini, que na sua obra “Culturas Híbridas – Estratégias para entrar e sair da Modernidade” menciona exemplos de comunidades indígenas que sobreviviam com a venda do seu artesanato. As identidades tradicionais, muitas vezes, subsistem e se adaptam à modernidade.

Outra razão para se preocupar com o passado, aponta Todorov, é com o objetivo de se afastar das ameaças do presente. Os sujeitos buscam ocupar-se com a memória dos sofrimentos passados para exonerarem-se dos preocupantes sofrimentos da atualidade. O conhecimento que daí adviria não passaria de “perfumaria”, servindo somente à erudição egoísta ou à fuga doentia, ao invés de inserir o detentor desse conhecimento na dinâmica de sua vida, como um sujeito que interfere no mundo a sua volta, alguém capaz de identificar as mazelas semelhantes as que conhece e lhes dar combate. Nosso autor menciona os sérvios, que se recordariam das agressões sofridas por seus antepassados porque essa recordação lhes permitiria esquecer as agressões de que se converteram em culpados num momento seguinte. Penso que essa crítica pode ser estendida para os judeus de Israel, por tudo aquilo que fazem com os palestinos, inseridos numa “luta desigual”.

A última razão para o novo culto à memória, que Todorov traz à discussão é, no meu entender, o mais explosivo, porque carregada de polêmicas disputas políticas. Os seus praticantes asseguram a si alguns privilégios no seio da sociedade. Surpreende, à primeira vista, a necessidade que grupos ou pessoas experimentam de se reconhecerem no papel de vítimas passadas e o quererem representar no presente. Para Todorov, ninguém quer ser vítima, pelo contrário, querem ter sido, sem nunca sê-lo. Desejam para si o estatuto de vítimas.

Ter sido vítima dá direito a se queixar, a protestar, a pedir e, se existe vínculo, os demais se sentem obrigados a satisfazer as petições. O papel de vítima é vantajoso e é melhor seguir nele que receber uma reparação pelo dano, porque se conserva um privilégio permanente. Quanto maiores os danos passados, maiores os direitos no presente. Citamos, para ilustrar, o caso dos negros no Brasil que, na atualidade, tem reivindicado cotas para ingressarem nas universidades públicas. Está, quando adotada, não passa de uma medida paliativa, mas ao mesmo tempo excludente. Paliativa porque não resolve o problema maior, que é a qualidade do ensino público brasileiro, e excludente porque não contempla os brancos pobres, que também não são poucos. As cotas universitárias, no meu entender, deveriam ser vinculadas, exclusivamente aos alunos da escola pública, independente de sua cor de pele. A questão é mais sócio-econômica que étnica.

Outro ponto que merecer ser lembrado são as indenizações. Falarei ainda do Brasil. Pessoas que se sentem lesadas pela ditadura militar iniciada nos anos 60 do século passado ingressaram com ações na Justiça e obtiveram indenizações. Uma vereadora da cidade de São Paulo, a Sra. Claudete Alves, do PT, entrou com uma representação no Ministério Público Federal “propondo uma campanha a ser discutida nos tribunais onde os negros pedem uma indenização de 2 milhões de reais.” Essa indenização seria para cada negro do Brasil, pelos prejuízos causados pela escravidão. São tantos os problemas que podem ser levantados para se discutir essa proposta... Porque os cidadãos brasileiros de hoje terão que arcar com as despesas de danos provocados por homens do passado? Será que se trata do mesmo Estado daquela época? (vale para os dois casos citados) Será que essa parlamentar irá processar igualmente Portugal na Justiça? E como ela lidará com os africanos, os que escravizavam outros africanos para venderem? Como fará com a grande quantidade de pessoas que, mesmo “brancas” possuem ancestrais negros, o que é verificável através de exames genéticos? 

Às vezes os processos judiciais geram profundas contradições, como foi o caso dos julgamentos de Nuremberg, onde os representantes de Stálin participaram dos julgamentos dos colaboradores de Hitler, situação vergonhosa, na medida em que uns e outros eram culpados de crimes semelhantes.

Todorov conclui seu texto apontando a necessidade de se conservar viva a memória do passado, não para pedir uma indenização por dano sofrido, mas para que se esteja alerta frente a situações novas e análogas. Aqueles que conhecem o horror do passado teriam a obrigação de levantar suas vozes contra os horrores do presente, que as vezes estão situados muito perto de nós. Colocar, enfim, o passado a serviço do presente.

A organização de seu texto deixa visível a sua opção pelo que ele chama de memória exemplar, que tem uma função importante no presente. Ao mesmo tempo, quando trata da memória literal, que ele não considera que seja boa de utilizar, fica, nos seus leitores, a idéia de que os grupos ou pessoas que sofreram prejuízos no passado devem se valer da sua cidadania, do contrato social para fazerem valer suas reivindicações, atuação inserida no que entende por modernidade. Buscando o que desejam através da tradição, a impressão que se tem é que as eventuais conquistas sempre serão parciais, além dos riscos que se corre com o despertar de paixões sectárias. Considero esse encaminhamento que dá ao seu texto bastante positivo por tentar trazer esses grupos para o funcionamento do contrato social e da vida democrática. É uma maneira legítima de se conseguir as reivindicações que se pretende.

1 -  Disponível em: http://www.claudetealves.com.br/discursos/view.asp?id=251.

Um comentário:

Anônimo disse...

eu só queria entender porque ele é passado em são paulo. que características dessa região favoreceram isso