domingo, 6 de julho de 2008

Ascensão social dos mercadores cristãos velhos



No presente trabalho buscaremos analisar a ascensão social dos mercadores cristãos velhos, do século XVI ao século XVIII em Portugal e na América portuguesa. Pensaremos, para isso, na abertura oferecida ou não por rei e nobreza, que controlavam a hierarquização social, além das estratégias de que lançaram mão para superar dificuldades no projeto que abraçaram. Assim, articularemos o trabalho de Daniela Buono Calainho sobre os agentes inquisitoriais no Brasil, bem como a análise de João Fragoso sobre a primeira elite senhorial do Rio de Janeiro. Contemplaremos também dois trabalhos de Fernanda Olival, o primeiro tratando das Companhias Pombalinas e a nobilitação no setecentos e o outro sobre juristas e mercadores, conscientes de que a autora, neste segundo trabalho, tem como foco de sua análise casos de cristão novos. Por fim, permeando nosso esforço, pretendemos trazer à discussão a abordagem de Norbert Elias sobre aqueles que ele denomina estabelecidos e os outsiders, além da reflexão de Edward Shils sobre suas noções de centro e periferia.

A sociedade em que viviam esses mercadores não é igualitária e nem tinha a intenção de o ser. Pertence ao Antigo Regime, profundamente hierarquizada, onde cada indivíduo tinha um lugar e um papel a cumprir. A mobilidade social não é fácil, mas não é impossível, como constataremos. As regras são ditadas pelos centros de poder, o rei, que deseja criar aliados, e a nobreza, que para preservar seus privilégios adquiridos, esforça-se pela manutenção da estrutura dessa sociedade, reforçando impedimentos à ascensão de demais grupos, mas almejando galgar outros níveis de privilégios cada vez mais altos. Os grupos mais poderosos se pensam superiores, como nos aponta Norbert Elias. A antiguidade de suas associações cria a coesão desses grupos. Mantendo afastados de si aqueles que não vivem à moda da nobreza, os que têm defeitos de sangue e mecânica, eles preservam sua identidade e afirmam a sua superioridade. João Fragoso nos lembra da origem do sistema de mercês, nas guerras de Reconquista contra muçulmanos na Península Ibérica na Baixa Idade Média, onde o rei concedia à aristocracia principalmente terras e privilégios pelos serviços prestados. Essas práticas se estendem ao além mar com a tomada de Ceuta em 1415. Quando conquistava, a Coroa concedia postos administrativos ou militares que poderiam proporcionar vantagens e vencimentos. Essas pessoas passam a ser uma parte do centro, assim se reconhecem. Adquirem qualidades, como nos mostra Edward Shils, que as qualificam para o exercício da autoridade.

Os mercadores buscavam tomar parte na sociedade, procuravam ascender, adquirir foros de nobreza, conseguir privilégios, como muitos dos homens de sua época ambicionaram. Os casos analisados pelos nossos autores referem-se evidentemente, àqueles que lançaram mão de estratégias das mais variadas para ascender socialmente, mas todas elas enquadradas nos dispositivos legais de sua época, criados por aqueles que detinham o poder. A documentação que foi objeto de estudos dos autores foi produzida pelos agentes de poder, pelos órgãos de administração e pelos postulantes à ascensão. Aqueles mercadores, ou outros indivíduos quaisquer, que por acaso não tinham interesses em adquirir mercês não figuram aqui. Era um sistema central de valores, para usar as idéias de Edward Shils, afirmado e seguido por essa elite, era o lugar onde os pretendentes a estabelecidos deveriam se enquadrar.

Uma das estratégias adotadas pelos mercadores foi a de se ligarem ao Santo Ofício, ocupando o cargo de Familiares. A inquisição sempre seguiu o desenvolvimento econômico. Os centros eram os locais que mais dispunham de Familiares. Não por acaso a maioria deles eram... comerciantes, com predominância no século XVIII. Para habilitarem-se o candidato a Familiar teria que dispor, segundo Daniela Calainho, de recursos que lhes facultasse viverem de forma abastarda, além de passarem por provas de sangue, já que o defeito mecânico era tolerado. As vantagens que apuravam, dentre outras, eram algumas isenções de impostos, um estímulo interessante, bem como a possibilidade, como nos informa Fernanda Olival, de mencionar a inscrição como Familiar do Santo Ofício ao pedirem habilitações na Mesa de Consciência e Ordem, pois era uma prova de ascendência limpa e status, diminuindo a marca negativa que envolvia a atividade comercial. Agora como estabelecidos, estigmatizavam os cristãos novos. Como Familiares, tentaram ofuscar, de alguma forma uma supremacia econômica atingida pela burguesia mercantil de origem judia. Daniela Calainho, no entanto, para não deixar de relativizar a questão, informa-nos que apesar de muitas vezes rejeitados pelo Santo Ofício, alguns de sangue impuro conseguiram se habilitar como Familiares através de tráfico de influência.

João Fragoso, o seu estudo, contempla os descendentes dos conquistadores participantes das expedições comandadas por Mem de Sá nas lutas contra os franceses e os índios tamoios. Estes ocupavam postos no senado da câmara, na elite administrativa e militar. Pelos serviços de seus antepassados e pelos seus, que continuavam prestando, essas pessoas adquiriram aquilo que Edward Shils chama de qualidades distintivas, que se fazem notar também nas ligações através do parentesco, via casamentos, que eles começaram a tecer logo cedo.

O rei concede mercês que afetava diretamente a economia da conquista, no Rio de Janeiro. Com isso, os mercadores de açúcar não eram iguais diante do mercado. Criaram-se mecanismos de acumulação que, mesmos realizados no mercado, são mediados pela política. Aqui também, nas vantagens comerciais, os critérios para adquiri-las eram sociais. Ter dinheiro e ser fidalgo ajuda mais que ser um bravo e valente soldado que tenha matado a muitos em algum combate. Os homens estudados por João Fragoso tiravam proveito do monopólio do mercado, valiam-se da sua posição de ministros (posto por eles ocupado muitas vezes) para arrematar bens por dívidas, além de usarem o acesso privilegiado que tinham à “poupança colonial” (arca dos órfãos, por exemplo), por conta do exercício de suas funções administrativas, para movimentarem esses recursos em benefício próprio, tomando “empréstimos”. Valiam-se da desigualdade da sociedade para abarcarem parte da riqueza produzida por esta e, ainda uma vez, ascender pelos serviços que poderiam prestar, melhor capitalizados. Norberto Elias informa-nos que a auto imagem dos estabelecidos se modela pela imagem dos seus melhores membros. Buscavam viver nobremente. Uma vez estabelecidos, fecham-se à entrada de elementos que não consideram de seu nível. O contato com um outsider pode contaminar, através dos defeitos que poderiam ser transmitidos, como os de sangue e o de mecânica. Os indivíduos que foram objeto da análise de João Fragoso não descuidaram da política de casamento nas suas uniões.

O trabalho de Fernanda Olival sobre as Companhias Pombalinas nos traz os homens que se aproveitaram da oportunidade aberta pelo rei de se verem livres de um defeito comum aos mercadores, o defeito mecânico. Através da compra de dez títulos, inicialmente da Companhia do Grão Pará e Maranhão, depois estendido a outras Companhias, o indivíduo que porventura almejasse hábitos de Ordens Militares ficaria dispensado desse defeito nas suas habilitações. Uma boa parte dos acionistas socorreu-se da compra desses títulos e ainda juntavam a certidão da aquisição quando solicitavam suas provanças, assim como entregavam também um exemplar do alvará régio de 10 de Fevereiro de 1757 impresso avulso.

A Mesa de Consciência e Ordens, os estabelecidos, não reage bem a esse alvará. Dos quatro pontos que considerava nebulosos sobre a questão, três deles pensavam a extensão do alvará. E a questão do defeito mecânico estava ali presente, afinal, os estabelecidos atribuem características ruins aos outsiders e além de tudo, são um grupo, conforme Norbert Elias. Depreciam os mercadores que buscavam ascender por esse e outros caminhos porque disputam poder, a fim de manterem sua superioridade social.

Quando Fernanda Olival analisa no seu trabalho os juristas e mercadores através de quatro processos de nobilitação percebemos alguns pontos que nos podem ser úteis, mesmo sabendo tratar-se de cristãos novos que, segundo os códigos da época, tinham defeito de sangue.

Através dos serviços prestados ao rei,na primeira metade do século XVI, os indivíduos estudados pela autora recebem cargos, hábitos de Ordens e mercês. Notamos que seus parentes seguiram-lhes a trajetória, inclusive ocupando cargos anteriormente preenchidos por eles. A política de casamentos estava presente aqui. Fidalgos de linhagem não consideravam tão mau negócio ligar-se ao sangue de um mercador de grosso trato. Faziam isso quando não iam lá muito bem de suas finanças e enquanto a questão da limpeza de sangue era tolerada.

Edward Shils nos mostra que a “apreciação da autoridade implica a apreciação das instituições através das quais a autoridade funciona e das suas regras” . Foi o que fizeram os indivíduos objeto de análise dos autores. Para ascenderem socialmente, tiveram que atuar conforme as regras ditadas pelas autoridades, o rei, simbolizando a maior delas, e dos nobres, que ocupavam as diferentes instâncias na administração, como a Mesa de Consciência e Ordens e o Desembargo do Paço. O primeiro desejava arregimentar aliados para si, os segundos criando obstáculos a ascensão social desses grupos nessa sociedade hierarquizada. Assim, fortaleciam o próprio poder, porque mantinham para si as possibilidades de ascender ainda mais, através dos serviços que poderiam prestar por conta da posição que já ocupavam e, ao mesmo tempo, segurando o fortalecimento do rei. Parece-me que aceitando essas regras impostas pelos estabelecidos a conseqüência natural disso é aceitar os estigmas de defeitos de sangue e mecânico que os estabelecidos, formuladores dessas regras, lhes impunham. Norbert Elias diz que “em termos das normas de seus opressores, eles se consideram deficientes, se vêem como tendo menos valor” .

Os indivíduos estudados por João Fragoso e por Fernanda Olival no seu trabalho sobre os juristas e mercadores valeram-se do histórico de serviços prestados à coroa por eles e por seus descendentes. Dentro dessas relações estabelecidas com o centro, ascenderam socialmente. Os Familiares do Santo Ofício estudados por Daniela Calainho e os mercadores acionistas da Companhia do Grão Pará e Maranhão valeram-se da abertura oferecida pela não consideração dos defeitos mecânicos. Isso, aliás, se aplica a todos os casos por nós analisados. Através de tráfico de influência ou mesmo por tolerância, indivíduos de sangue impuro conseguiram ser Familiares do Santo Ofício ou mesmo ocupar algum outro cargo mesmo dentro da Igreja Católica. Os autores fazem-nos ver também que viver À moda da nobreza era fundamental para os postulantes a títulos e privilégios, e os exemplos que arrolam mostram bem isso. Com Fernanda Olival e Daniela Calainho vemos que a acumulação de riquezas desses homens era rápida e, com isso, voltavam seus olhos para a possibilidade de ascenderem socialmente. E não deixaram de ser mercadores por isso. Com essas autoras vemos também que as regiões centrais do império português e de sua colônia americana se destacavam no que respeita a mobilidade social. 

Reforçamos que esses homens para chegarem onde pretendiam aceitaram e observaram as regras, crenças e valores dos governantes, como nos ajuda a entender Edward Shils. Valeram-se das oportunidades que lhes surgiram, prestando serviços à Coroa, mesmo que fossem financeiros. Acumularam riquezas, buscaram espelhar-se no modo de vida nobre, prosseguiram suas atividades comerciais, lançaram mão da política de casamentos e contavam com a flexibilização do centro no que respeita aos seus defeitos mecânicos. Mas só chegaram até onde lhes foi permitido pelo poder central que os permitiu ascender. Sempre tiveram a impressão das portas abertas, mas não transpuseram todas elas, afinal, ainda possuíam o defeito de sangue, além do que a nobreza obstaculizava a distribuição de benefícios, buscando preservá-los para si. A ascensão dos indivíduos que não possuem tradição é dificultada, porque os serviços prestados por seus antepassados também contam, o que muitas vezes não era o caso dos homens que estudamos. Essa impressão alimentava seus esforços na realização de atividades que lhes granjeasse méritos para receberem mercês, e o rei se beneficiava disso. Mas não receberam todas que desejavam, ou bem poucos conseguiram, porque a sociedade em que viveram esses mercadores não era igualitária e nem tinha a intenção de o ser.

1 - Shils, Edward. Centro e Periferia. DIFEL. pág. 57.

2 - Elias, Norbert; Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2000. pág. 28.

Bibliografia:
- Shils, Edward. Centro e Periferia. DIFEL
- Elias, Norbert; Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2000.
- Calainho, Daniela B.. Agentes da Fé. Bauru: Edusc, 206
- Fragoso, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi, 1: 45 – 122, 2000.
- Olival, Fernanda. Juristas e mercadores à conquista de honras. Revista de História Econômica e social, 4: 7 – 53, 2002.
- Olival, Fernanda. O Brasil e as Companhias Pombalinas e a nobilitação no terceiro quartel de setecentos. Anais da Universidade de Évora, 8 – 9: 73 – 97, 1998/1999.



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