Palestra
apresentada no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor em 9 de abril de 2022.
Marco
Aurélio Gomes de Oliveira
Quem não conhece alguém - ou não é a
própria pessoa - que já teve algum tipo de contato com os Espíritos (pela
visão, audição, ruído ou movimento de objetos) e tem uma história para contar
sobre isso? Desde que o mundo é mundo, desde que a criatura humana se entende
por gente, essas histórias existem. Começamos a ter contato com elas a partir
do momento em que as pessoas do passado resolveram deixar registros materiais -
escritos, pintados, esculpidos, transmitidos oralmente e, depois, registrados
em papel - de seus pensamentos e de suas vivências. Muita gente com essa
capacidade de entrar em contato com os Espíritos, que no passado podem ter sido
tomados como "deuses", valeu-se de sua posição para exercer dominação
sobre os demais. Outros, podem ter simulado essa capacidade. Assim, nem todos
esses registros devem ser a expressão da verdade, mas certamente são
indicadores de que a morte sempre foi um objeto de reflexões e de que, em meio
ao que pode ter sido inventado por alguém interessado em destaque e poder,
existam relatos reais.
Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte
Léon Denizard Rivail, conta-nos, em suas Obras
Póstumas que em 1854 ouviu falar, pela primeira vez, nas mesas girantes. "Já sabe da singular propriedade que se
acaba de descobrir no Magnetismo? Parece que já não são somente as pessoas que
se podem magnetizar, mas também as mesas, conseguindo que elas girem e caminhem
à vontade"[1],
disse-lhe o senhor Fortier. Kardec
não se espantou porque, para ele, o fluido magnético, "que é uma espécie de eletricidade, pode perfeitamente atuar
sobre os corpos inertes e fazer que eles se movam."[2]
Pouco tempo depois, a mesma pessoa o encontra e o informa que as mesas não
somente se moviam como falavam. "Só
acreditarei quando o vir e quando me provarem que uma mesa tem cérebro para
pensar, nervos para sentir (...)".[3]
Kardec, então, ignorava a causa do movimento das mesas que expunha uma
manifestação de inteligência. Um ano depois, em 1855, encontrou-se com um amigo
que, por primeira vez, falou-lhe na intervenção dos Espíritos no fenômeno e
contou-lhe coisas consideradas por ele tão surpreendentes que, longe de o
convencerem, aumentaram-lhe as dúvidas. Em maio desse mesmo ano teve notícias
desse mesmo fenômeno vindas de uma pessoa instruída, fria e calma, que
falou-lhe num tom sem entusiasmo. Não era uma pessoa que se mostrasse empolgada
porque deslumbrada. Pelo contrário. Foi convidado a participar de uma reunião.
Ali, pela primeira vez presenciou o fenômeno.
Minhas ideias
estavam longe de precisar-se, mas havia ali um fato que necessariamente
decorria de uma causa. Eu entrevia, naquelas aparentes futilidades, no
passatempo que faziam daqueles fenômenos, qualquer coisa de sério, como que a
revelação de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo.[4]
Allan Kardec conta-nos que eram
numerosas essas reuniões e nelas eram admitidos todos os que solicitassem
permissão para assisti-las.
Eram
geralmente frívolos os assuntos tratados. Os assistentes se ocupavam,
principalmente, de coisas respeitantes à vida material, ao futuro, numa
palavra, de coisas que nada tinham de realmente sério; a curiosidade e o
divertimento eram os móveis capitais de todos. [5]
Nessas reuniões começou seus estudos
sérios de Espiritismo. Relata-nos que nunca elaborava teorias preconcebidas,
observava
cuidadosamente, comparava, deduzia consequências; dos efeitos procurava
remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não
admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as
dificuldades da questão.[6]
Entendeu que os Espíritos, não sendo
outra coisa senão as almas dos homens que já viveram, "não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o
saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de
adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião
pessoal."[7]
Kardec afirma que essa certeza o preservou de acreditar na infalibilidade dos
Espíritos e o impediu de formular teorias precipitadas. É importante destacar
isso porque, no dias atuais, muita gente abre mão do bom senso e da razão para
acreditar de maneira cega naquilo que os Espíritos dizem por intermédio dos
médiuns, muitas vezes por simpatia por estes mesmos médiuns. Em O que é o Espiritismo, Kardec
recorda-nos que os Espíritos são "o
reflexo do mundo corporal; neles se encontram os mesmos vícios e as mesmas
virtudes; há entre eles sábios, ignorantes e charlatães, prudentes e levianos,
filósofos, raciocinadores, sistemáticos".[8]
Ainda no mesmo livro, Kardec nos diz que aquele que esperasse receber todas as
informações prontas dos Espíritos, aquele que, de braços cruzados e sentado, aguardasse
que estes lhe trouxessem todas as descobertas e invenções, estaria em erro.
Afirma que Deus quer que trabalhemos e raciocinemos e que, através do nosso
esforço, alcancemos o conhecimento. O Espiritismo, que é uma ciência de
observação - não percam isso de vista, ciência de observação - objetiva estudar
os Espíritos, a fim de que fiquemos sabendo "o
que seremos um dia". [9]
E em sendo uma ciência de observação, diz Kardec, não é "uma arte de adivinhar e especular". [10]
Estuda-se para conhecer o estado dos Espíritos no mundo invisível, as relações
que estabelecem conosco, a ação oculta deles sobre o mundo material e não para
tirar vantagens materiais. Olhamos para eles para refletir no que somos hoje e
no que viremos a ser. Olhamos para eles a fim de refletir sobre o nosso presente
e o nosso futuro, individual e coletivo.
Para ideias novas, palavras novas.
Allan Kardec evita usar as palavras "espiritualista" e
"espiritualismo" porque estas já tinham significados bem conhecidos.
Todo aquele que acredita que exista em nós alguma coisa além da matéria é
espiritualista. O católico e o protestante, por exemplo, se enquadram aí.
Porém, diferente dos espíritas, uma boa parte deles não acredita que seja
possível que os Espíritos se manifestem e entrem em contato conosco. Assim, "Espiritismo"
e "espírita" foram palavras criadas por Allan Kardec para dar conta
daqueles que acreditam na existência dos Espíritos e em suas manifestações. [11]
Ao estudarmos a obra de Allan Kardec
percebemos, de sua parte, certo receio em dizer que o Espiritismo é uma
religião. Numa definição que apresenta logo no início de O que é o Espiritismo, ele apresenta o Espiritismo como "uma ciência de observação e uma
doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se
estabelecem entre nós e os Espíritos; como Filosofia, compreende todas as
consequências morais que dimanam dessas mesmas relações". [12]
A partir do esforço de observação e análise do fenômeno da manifestação dos
Espíritos, decorreria, tanto do fenômeno em si (que atesta a sobrevivência da
alma à morte) quanto do conjunto dos ensinamentos dos Espíritos, uma filosofia
de consequências morais. No mesmo livro, Kardec afirma a proximidade entre a
ideia de religião e o Espiritismo, porque este concordaria com seus fundamentos
dela.
(...) os Espíritos
proclamam um Deus único, soberanamente justo e bom; eles dizem que o homem é
livre e responsável por seus atos, recompensado ou punido pelo bem ou pelo mal
que houver feito; colocam acima de todas as virtudes a caridade evangélica e a
seguinte regra sublime ensinada pelo Cristo: fazer aos outros como queremos que
nos seja feito.
Não serão
estes os fundamentos da religião? [13]
O receio de Kardec na definição do
Espiritismo como religião tem a ver com a ideia comum que se faz dela,
associando-a a cultos, rituais, paramentos e sacerdotes, tudo aquilo que o
Espiritismo não tem. Ele deixa clara sua posição na Revista Espírita de dezembro de 1868.
Por que, pois, declaramos que o Espiritismo não é uma
religião? Pela razão de que não há senão uma palavra para expressar duas idéias
diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de
culto; que ela desperta, exclusivamente, uma idéia de forma, e que o
Espiritismo não a tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não
veria nele senão uma nova edição, uma variante, querendo-se, dos princípios
absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com um cortejo de hierarquias,
de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo, e dos
abusos contra os quais a opinião é freqüentemente levantada. [14]
Já que são as almas dos homens que já
viveram que se manifestam, como saber se o que dizem os Espíritos sobre a vida
e sobre as realidades do mundo espiritual é ou não correto? Em O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan
Kardec propôs um método: o controle universal do ensino dos Espíritos. Não se
pode impedir que os Espíritos se manifestem. Se os que se consideram inimigos
do Espiritismo tentassem proibir sua prática, não teriam sucesso; se mandassem
prender os médiuns de uma cidade ou país, eles receberiam suas comunicações nas
cadeias, enquanto que, em outras partes do mundo, onde existissem médiuns -
conscientes ou não de suas mediunidades – os Espíritos continuariam se
comunicando com a humanidade. Fossem mesmo todos os médiuns exterminados - se
isso fosse possível, porque todos somos, de acordo com O livro dos médiuns, mais ou menos médiuns - poderia ser provocada
uma breve interrupção nas comunicações, mas... Como todo dia nasce gente, todo
dia nasce médium. E as comunicações seriam restabelecidas. Notem que quero
demonstrar que a mediunidade está disseminada pelo mundo: onde há gente, há
médium. Assim, os Espíritos manifestam-se por toda a parte. Comunicar-se com
eles não é privilégio de quem quer que seja. Como eles são as almas dos homens
que já morreram e entre os encarnados há os sábios e os fanfarrões, entre os
Espíritos também; Se existisse apenas um médium, este poderia ser enganado por
algum Espírito interessado apenas em se divertir com a cara de alguém. Agora, é
muito mais difícil enganar um enorme conjunto de pessoas que recebem
comunicações de Espíritos diferentes em vários pontos diferentes do mundo.
Allan Kardec diz que "nessa
universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo (...)
milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do
planeta, proclamando os mesmos princípios."[15]
Ou seja: aquilo que é dito de maneira igual em diferentes pontos do planeta por
diferentes médiuns e diferentes Espíritos é um indicador de verdade. Se o que é
falado por algum Espírito numa cidadezinha do Sul do Brasil, concorda com o que
é ensinado por outro Espírito em outra cidadezinha do México e, assim por
diante, estamos diante de um conhecimento que merece ser considerado por nós.
Essa verificação universal, diz Kardec, "constitui
uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias
contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade."
[16]
Kardec ainda diz que "não será a
opinião de um homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos
Espíritos" [17],
e quando ele escreve isso também faz referência a si mesmo. Vale para ele e
para qualquer um. Qualquer um!
O Espiritismo possui cinco princípios
básicos que são abordados nas obras de Allan Kardec e nas dos demais autores:
1º) Existência de Deus; 2º) Imortalidade da alma; 3º) Comunicabilidade dos
Espíritos; 4º) Reencarnação e 5º) Pluralidade dos mundos habitados. A moral que
os Espíritos ensinam é a do Cristo, que eles, através de seus ensinamentos,
acrescentam os princípios que regem as relações entre encarnados e
desencarnados.
O Espiritismo, diz Allan Kardec em A Gênese, possui duplo caráter: "participa ao mesmo tempo da revelação divina
e da revelação científica."[18]
Ele não é o resultado da mente de Kardec, o fruto do trabalho de um único
homem. Os ensinamentos que reúne o Espiritismo, que dão conta do estado em que
se encontram os Espíritos no mundo invisível e das consequências morais das
ações humanas, foram recebidos dos Espíritos. Mas aqueles que receberam esses
ensinamentos não eram seres irracionais, passivos, que tivessem aberto mão da
razão. Aqueles que os receberam não estavam
dispensados do
trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao
livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário,
recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à
crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos
que os Espíritos lhe põe sobre os olhos e das instruções que lhe dão,
instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as
ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o
ser divina a sua origem e a iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração
fruto do trabalho do homem. [19]
Notem que os Espíritos nos envolvem, à
nós que estamos encarnados, na elaboração da Doutrina Espírita. E faz todo o
sentido, porque os Espíritos, no mundo invisível, participam da humanidade! São
parte dela! Hoje, aqui estamos nós encarnados e muitos deles lá, no mundo
espiritual, desencarnados; amanhã, seremos nós os desencarnados e muitos deles
serão os encarnados! Os Espíritos verdadeiramente sérios e comprometidos com a
verdade nos aconselham o exame das comunicações espirituais que recebamos. O
Espírito Erasto, em O livro dos Médiuns,
faz a Kardec recomendação muito sensata nesse sentido.
Na dúvida,
abstém-te (...) Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de
manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expedida, por pouco
que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e
rejeitai desassombradamente o que a razão e bom-senso reprovarem. Melhor é
repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.[20]
A verdade se impõe. Se a recusamos
aqui, ela é dita em várias outras partes por diferentes Espíritos através de
diferentes médiuns e o controle universal do ensino dos Espíritos a promove e a
consolida. A mentira costuma ter feitos imediatos e destruidores, que podem
comprometer o trabalho e a imagem dos médiuns e da própria doutrina na opinião
pública. Percebam, por estas citações, que há, por parte de Allan Kardec e dos
Espíritos sérios um constante chamamento à razão e a responsabilidade pessoal
na análise daquilo que é trazido pelos Espíritos. Nada deve ser aceito
cegamente dos Espíritos! Em O livro dos
Médiuns, não há nenhuma parte onde se diga que se deve acolher tudo que os
Espíritos digam como verdade, como também não há qualquer parte que trate de
médiuns perfeitos... Porque estes não existem, nem nunca existiram! Não é a
pretensa "autoridade" moral do médium que é garantia de verdade de
qualquer comunicação espiritual! Nesse sentido, toda idolatria de médiuns é
improdutiva e prejudicial àqueles que idolatram e, de uma certa forma,
prejudicial também à doutrina, porque demonstra, àqueles que não são espíritas,
como também aos adversários da doutrina, que seus adeptos estão abrindo mão da
razão e do bom senso. E ao fazerem isso estão deixando de lado, por
desconhecimento ou distração, exatamente o que um dos seus principais
organizadores - Allan Kardec - e os Espíritos cujos ensinamentos ele reuniu,
recomendaram.
Ainda no que diz respeito à
participação dos encarnados na estruturação da Doutrina Espírita, Kardec nos
traz um exemplo no primeiro capítulo de A
Gênese, aliás, um capítulo fundamental para as reflexões dos espíritas.
Eles nos conta que, no mundo dos Espíritos, ocorre um fenômeno do qual muita
gente não fazia ideia até então: há Espíritos que não se consideram mortos. Os
Espíritos Superiores, que conhecem perfeitamente essa realidade, não foram até
Kardec e lhe disseram: "Olha, Kardec: existem Espíritos que não sabem que
morreram, se julgam encarnados e mantém todos os seus costumes e vícios."
O que eles fizeram?
Provocaram a
manifestação de Espíritos desta categoria para que observássemos. (...) A
multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que
constituía uma das fases da vida espiritual; pode-se então estudar todas as
variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é
sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos
gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e
anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação.[21]
Decorrendo da observação, percebemos
aqui que os Espíritos inferiores, em condições de sofrimento moral e
ignorância, também concorrem, com suas experiências de vida material (quando
encarnados) e no mundo espiritual, para a construção do edifício da Doutrina
Espírita. O grande e o pequeno participam com sua parcela na elaboração e
desenvolvimento do Espiritismo. O Espiritismo é obra da humanidade dos dois
lados da vida! Quando os Espíritos comunicam-se nas reuniões mediúnicas
chamadas de desobsessão ou de esclarecimentos e dialogam com os encarnados,
estes muitas vezes pensam que estão ali para beneficiar aqueles irmãos em
condição de sofrimento. Sem dúvidas que esse contato, supervisionado pelos
Espíritos Bons, traz benefícios para aqueles Espíritos em sofrimento. Porém, os
encarnados se beneficiam enormemente com a presença deles, para além da ajuda
da palavra e da solidariedade que lhes emprestam: estes Espíritos, ao trazerem
suas dores e lutas, ensinam aos encarnados aquilo que eles podem vir a ser,
caso não emendem sua conduta e retifiquem seus caminhos morais.
Allan Kardec, na nota de rodapé do item
45 de A Gênese reflete sobre seu
papel na elaboração da Doutrina Espírita. Apresenta-se como "um observador atento, que estuda os
fatos para lhes descobrir a causa e tirar-lhes as consequências." [22]
Como fez isso? Afirma ter comparado todos os ensinamentos que conseguiu reunir
- ele trocava cartas com outros espíritas[23]
- e depois coordenou o conjunto.
Em suma,
estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações, sem atribuirmos aos
nossos trabalhos o valor maior do que o de uma obra filosófica deduzida da
observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe da doutrina, nem
procurarmos impor as nossas ideias a quem quer que seja.[24]
Demonstrada a necessidade de
participação dos encarnados na elaboração da Doutrina Espírita, recolhendo,
observando, analisando, comparando e tirando conclusões dos ensinamentos dos
Espíritos e, apoiando-se em fatos, verifica-se que ela tem que ser progressiva,
como toda ciência de observação. Dessa forma, é aliada da ciência.
Caminhando de
par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas
descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se
modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. [25]
Não há livros sagrados no Espiritismo. Aberto
ao progresso da ciência, e portanto, progressista, Kardec ficaria muito
espantado se alguém sacralizasse ou santificasse seus livros, impedindo ou
inibindo, com isso, a análise deles à luz das descobertas dos diferentes ramos
da produção do conhecimento ao longo do tempo. É importante destacar essa
relação de proximidade do Espiritismo com a ciência, seus métodos, a
racionalidade e valorizá-los porque vivemos, no Brasil, tempos de burrice
irracionalidade empoderada e orgulhosa, que se manifesta nos negacionismos
daqueles que são contra vacinas (e a favor das doenças), daqueles que negam as
mudanças climáticas provocadas pelas ações dos homens ricos (o que é fartamente
documentado pelos cientistas) e daqueles, até, que chegam ao ponto de negar a
forma esférica da Terra (não é uma esfera perfeita, porque achatada nos polos).
O conhecimento das relações que podem
ser estabelecidas entre encarnados e desencarnados traz uma série de
consequências morais para nós, encarnados. Allan Kardec diz que esse
conhecimento "não pode deixar de
acarretar, generalizando-se, profunda modificação nos costumes, caráter,
hábitos, assim como nas crenças que tão grande influência exerceu sobre as
relações sociais."[26]
Trazendo de volta a mensagem dos que atravessaram a morte, o Espiritismo nos
revela a vida vitoriosa que se faz presente em toda a parte. O evangelho de
João registra a promessa da vinda do Consolador, "que vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que
vos tenho dito". [27]
O Espiritismo, nos diz Kardec, "realiza
o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo que
o homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na Terra; atrai para os
verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança."
[28]
Saber que a vida continua e que nossas
ações no presente gerarão efeitos futuros traz, para nós, a responsabilidade de
emendarmos nossa conduta pelo mais alto padrão de moral. Sabendo disso, já não
se pode viver como se vivia antes, como todos. Viver tentando passar por cima
dos outros, para se dar bem a qualquer custo, já não deve ser para nós e para
ninguém, porque estaremos nos comprometendo pela soma de erros cometidos e com
aqueles que fizermos mal por causa de nossa ganância. Explorar o trabalho dos
outros para enriquecermos? O papel do ambicioso que esgota os outros pelo
trabalho não cabe mais. E, para além de não caber-lhe mais, tem que colocar-se
o dever moral de dar combate incessante a essa forma de sociabilidade dominante
chamada capitalismo que transforma tudo em mercadoria e torna cada vez mais
difícil a vida de bilhões de pessoas. O espírita deverá ser aquele que se
conduz retamente, com o dever moral de caminhar no mundo erguendo aqueles que não
aguentaram o peso das próprias provas e/ou que foram esmagados pela ganância
dos outros e deixados de lado, descartados, como vidas sem importância.
A indiferença com a forma de
sociabilidade capitalista reforça a miséria e sofrimento para a maioria das
pessoas. As favelas que conheço aqui no Rio de Janeiro aumentaram de tamanho no
decorrer da minha própria existência de quarenta e um anos. Um outro futuro e
uma outra forma de sociabilidade devem ser pensados e construídos, que não mais
comportem a exploração do homem pelo homem e o descarte destes como coisas
indesejáveis. Essa nova sociabilidade também deve assumir outro tipo de relação
com o meio ambiente que não seja a da lógica da destruição. Estamos neste
planeta e a ele voltaremos, se a nossa conduta nos permitir e não formos tão
nocivos que nossa presença atrapalhe a maioria. Que tipo de planeta vamos
encontrar? Há poucos dias, na segunda quinzena de março de 2022, "Estações meteorológicas registraram na
sexta-feira (18) uma marca 40º C acima do normal em partes da Antártida e 30ºC
acima da média no Ártico, segundo a agência de notícias Associated Press
(AP)." [29] A
intervenção humana atrás de lucro a qualquer custo tem provocado o aquecimento
global, gerado pelos gases de efeito estufa. Além disso, ainda temos o
desmatamento das florestas por queimadas para a implantação de pastos ou para o
plantio de soja e outras culturas voltadas à exportação.[30]
Temos, ainda a poluição dos oceanos, que colocam em risco a existência de
vários animais. Tudo isso está afetando o clima do planeta, concorrendo para
sua deterioração. Os períodos de seca estão mais prolongados; as chuvas, quando
vem, cada vez mais concentradas e fortes, provocando alagamentos.[31]
Ondas de calor estão provocando cada vez mais mortes de idosos.[32]
Com as mudanças climáticas, algumas regiões do planeta podem tornar-se
inabitáveis, tanto pelo aumento dos oceanos quanto pelo calor extremo.[33]
Sozinhos, isolados, pouco podemos fazer para lutar contra isso. Importa
pensarmos nessas questões agora, qualquer que seja a nossa idade. Os mais
jovens tem anos pela frente; os mais velhos, com menos tempo, a seu turno
reencarnarão neste mesmo planeta. Se nada mudar na defesa do meio ambiente, se
todos nós, presentes a esta reunião, desencarnarmos em, no máximo, oitenta
anos, as condições climáticas do planeta serão muito piores do que as atuais.
Imaginando que passemos em torno de oitenta a cento e vinte anos no mundo
espiritual, reencarnando, suponhamos, em 2222, será que encontraremos ainda a
floresta Amazônica de pé? Será que na região do Rio de Janeiro encontraremos um
deserto, pela falta de chuvas? Será que reencarnaremos ainda no Brasil, que vem
diminuindo os índices de natalidade? [34]
Invocando o método de análise de Kardec, há que se observar se existem médiuns
cujos Espíritos comunicantes minimizem ou ocultem esses problemas de exploração
do homem pelo homem e os de natureza climática. O capítulo 19 de O livro dos Médiuns, que trata "Do
papel dos médiuns nas comunicações espíritas" certamente pode indicar caminhos
para o entendimento desta questão. É urgente que nos organizemos coletivamente
e participemos ativamente do trabalho por essas mudanças necessárias.
Com o Espiritismo, aprendemos que o
futuro será construído no presente. Que tipo de futuro temos construído,
individual e coletivamente falando? Será um futuro tranquilo, bacana, um tempo
de realizações positivas onde poderemos desenvolver plenamente nossas
capacidades, ou será num mundo ainda repleto de problemas e ainda mais graves
dos que aqueles que estamos enfrentando agora? Recordem-se que ainda paira
sobre nossas cabeças a ameaça de um conflito nuclear por causa da Guerra contra
a Ucrânia. Os desencarnados não assumirão nossas responsabilidades: a
humanidade desencarnada, que é comprometida com o bem - porque existem aqueles
que não o são tanto "aqui" quanto "lá" - certamente nos
ajudarão com suas energias e inspirações, mas o trabalho fundamental está sob a
responsabilidade daqueles que estão encarnados. Conosco estão as possibilidades
materiais de lutarmos pela salvação material do planeta e ela, certamente, não
se dará sob um ambiente de opressões e explorações.
O preconceito racial e a homofobia,
repugnantes sob qualquer ponto de vista, devem ser repudiados pelos espíritas.
Somos todos Espíritos encarnados. Possuímos um corpo transitório e
reencarnaremos em outras condições, adequadas e necessárias ao nosso progresso
moral. Agir de maneira preconceituosa contra pessoas de outras etnias e contra
pessoas de orientação LGBTQIA+ é faltar com o dever de fraternidade e respeito
para com essas pessoas, além de cometer crime previsto no Código Penal, crime
que deve ser denunciado e de maneira alguma tolerado. Além disso, com o
conhecimento da reencarnação, pode-se descobrir no próximo - objeto do
preconceito - um parente, um amigo ou um irmão de outras reencarnações. E, por
nossa vez, muito provavelmente reencarnaremos em outras etnias e com gênero ou
orientação sexual diversa da atual.
O Espiritismo pode parecer a alguns
como um chamamento individual à mudança e a transformação pessoais. Entretanto,
ninguém é uma ilha e só nos transformamos verdadeiramente quando nos
comprometemos com a transformação de todos, com a melhoria para todos. O
próximo não é cenário para nossas realizações evolutivas, para fazermos selfies
enquanto distribuimos a caridade material; o próximo é nosso irmão, nosso igual
que, se porventura, encontra-se hoje em dificuldades, amanhã poderá ser a mão a
nos socorrer. Não é alguém que deve permanecer abaixo de mim numa relação
desigual de subordinação velada. É alguém que participará, ao nosso lado, da
transformação do mundo num lugar acolhedor para quem se compromete com a
coletividade e, por isso, pensa coletivamente. Só conseguiremos criar o reino
de Deus em nós quando nos dispormos a torná-lo real para todos.
[1] KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB,
1995, p. 265.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Idem, p. 267.
[5] Idem, p. 268.
[6] idem.
[7] Idem, p. 269.
[8] KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de Janeiro:
FEB, 1999, p. 107.
[9] Idem, p. 109.
[10] Idem.
[11] Ver: KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo, op. cit., p. 66 a
68 e KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos.
Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 13.
[12] KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo, op. cit., p. 50.
[13] Idem, p. 128.
[14] KARDEC, Allan.
“O Espiritismo é uma religião?”. Revista
Espírita. Paris, Dezembro 1868, n° 12, p. 5.
[15] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio
de Janeiro: FEB, 2004, p. 28.
[16] Idem, p. 32.
[17] Idem, p. 36.
[18] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 1996, p.
19.
[19] Idem, p. 19 e 20.
[20] KARDEC, Allan. O livro dos Médiuns. Rio de Janeiro:
FEB, 1996, p. 292.
[21] KARDEC. A Gênese, op. cit., p. 20 e 21.
[22] Idem, p. 36, nota 1.
[23] Algumas cartas de Allan Kardec
estão disponíveis para pesquisa no Projeto Allan Kardec, da Universidade
Federal de Juiz de Fora, que está digitalizando e traduzindo o material. PROJETO
ALLAN KARDEC. Disponível em: https://projetokardec.ufjf.br/ Último acesso em
24/3/22.
[24] Kardec. A Gênese, op. cit., p. 36, nota 1.
[25] Idem, p. 44 e 45.
[26] Idem, p. 23.
[27] BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Ivo
Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 1376.
João 14:26.
[28] Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, op. cit., p. 146.
[29] "Polos da Terra são
atingidos por ondas de calor sem precedentes". Disponível em:
https://revistagalileu.globo.com/Um-So-Planeta/noticia/2022/03/polos-da-terra-sao-atingidos-por-ondas-de-calor-sem-precedentes.html
Último acesso em 24/3/22.
[30] "63% das áreas desmatadas
na Amazônia viram pasto para o gado, indica relatório alemão". Disponível
em: https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Sustentabilidade/noticia/2021/01/63-das-areas-desmatadas-na-amazonia-viram-pasto-para-o-gado-indica-relatorio-alemao.html
Último acesso em 24/3/22.
[31] "As Mudanças
Climáticas". Disponível em:
https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/reducao_de_impactos2/clima/mudancas_climaticas2/
Último acesso em 24/3/22.
[32] "Mais de 356.000 mortes
em 2019 foram relacionadas ao calor". Disponível em:
https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-08-20/mais-de-356000-mortes-em-2019-foram-relacionadas-ao-calor.html
Último acesso em 24/3/22.
[33] "Mudança climática ameaça
Índia a ter regiões inabitáveis". Disponível em:
https://veja.abril.com.br/mundo/mudanca-climatica-ameaca-india-a-ter-regioes-inabitaveis/
Último acesso em 24/3/22.
[34] IBGE. "Taxa Bruta de
Natalidade por mil habitantes – Brasil – 2000 a 2015". Disponível em:
https://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/taxas-brutas-de-natalidade.html
Último acesso em 24/3/22.
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