quinta-feira, 11 de agosto de 2022

O que é o Espiritismo

 


Palestra apresentada no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor em 9 de abril de 2022.

Marco Aurélio Gomes de Oliveira

         Quem não conhece alguém - ou não é a própria pessoa - que já teve algum tipo de contato com os Espíritos (pela visão, audição, ruído ou movimento de objetos) e tem uma história para contar sobre isso? Desde que o mundo é mundo, desde que a criatura humana se entende por gente, essas histórias existem. Começamos a ter contato com elas a partir do momento em que as pessoas do passado resolveram deixar registros materiais - escritos, pintados, esculpidos, transmitidos oralmente e, depois, registrados em papel - de seus pensamentos e de suas vivências. Muita gente com essa capacidade de entrar em contato com os Espíritos, que no passado podem ter sido tomados como "deuses", valeu-se de sua posição para exercer dominação sobre os demais. Outros, podem ter simulado essa capacidade. Assim, nem todos esses registros devem ser a expressão da verdade, mas certamente são indicadores de que a morte sempre foi um objeto de reflexões e de que, em meio ao que pode ter sido inventado por alguém interessado em destaque e poder, existam relatos reais.

         Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, conta-nos, em suas Obras Póstumas que em 1854 ouviu falar, pela primeira vez, nas mesas girantes. "Já sabe da singular propriedade que se acaba de descobrir no Magnetismo? Parece que já não são somente as pessoas que se podem magnetizar, mas também as mesas, conseguindo que elas girem e caminhem à vontade"[1], disse-lhe o senhor Fortier. Kardec não se espantou porque, para ele, o fluido magnético, "que é uma espécie de eletricidade, pode perfeitamente atuar sobre os corpos inertes e fazer que eles se movam."[2] Pouco tempo depois, a mesma pessoa o encontra e o informa que as mesas não somente se moviam como falavam. "Só acreditarei quando o vir e quando me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir (...)".[3] Kardec, então, ignorava a causa do movimento das mesas que expunha uma manifestação de inteligência. Um ano depois, em 1855, encontrou-se com um amigo que, por primeira vez, falou-lhe na intervenção dos Espíritos no fenômeno e contou-lhe coisas consideradas por ele tão surpreendentes que, longe de o convencerem, aumentaram-lhe as dúvidas. Em maio desse mesmo ano teve notícias desse mesmo fenômeno vindas de uma pessoa instruída, fria e calma, que falou-lhe num tom sem entusiasmo. Não era uma pessoa que se mostrasse empolgada porque deslumbrada. Pelo contrário. Foi convidado a participar de uma reunião. Ali, pela primeira vez presenciou o fenômeno.

Minhas ideias estavam longe de precisar-se, mas havia ali um fato que necessariamente decorria de uma causa. Eu entrevia, naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos, qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo.[4]

         Allan Kardec conta-nos que eram numerosas essas reuniões e nelas eram admitidos todos os que solicitassem permissão para assisti-las.

Eram geralmente frívolos os assuntos tratados. Os assistentes se ocupavam, principalmente, de coisas respeitantes à vida material, ao futuro, numa palavra, de coisas que nada tinham de realmente sério; a curiosidade e o divertimento eram os móveis capitais de todos. [5]

         Nessas reuniões começou seus estudos sérios de Espiritismo. Relata-nos que nunca elaborava teorias preconcebidas,

observava cuidadosamente, comparava, deduzia consequências; dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão.[6]

         Entendeu que os Espíritos, não sendo outra coisa senão as almas dos homens que já viveram, "não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal."[7] Kardec afirma que essa certeza o preservou de acreditar na infalibilidade dos Espíritos e o impediu de formular teorias precipitadas. É importante destacar isso porque, no dias atuais, muita gente abre mão do bom senso e da razão para acreditar de maneira cega naquilo que os Espíritos dizem por intermédio dos médiuns, muitas vezes por simpatia por estes mesmos médiuns. Em O que é o Espiritismo, Kardec recorda-nos que os Espíritos são "o reflexo do mundo corporal; neles se encontram os mesmos vícios e as mesmas virtudes; há entre eles sábios, ignorantes e charlatães, prudentes e levianos, filósofos, raciocinadores, sistemáticos".[8] Ainda no mesmo livro, Kardec nos diz que aquele que esperasse receber todas as informações prontas dos Espíritos, aquele que, de braços cruzados e sentado, aguardasse que estes lhe trouxessem todas as descobertas e invenções, estaria em erro. Afirma que Deus quer que trabalhemos e raciocinemos e que, através do nosso esforço, alcancemos o conhecimento. O Espiritismo, que é uma ciência de observação - não percam isso de vista, ciência de observação - objetiva estudar os Espíritos, a fim de que fiquemos sabendo "o que seremos um dia". [9] E em sendo uma ciência de observação, diz Kardec, não é "uma arte de adivinhar e especular". [10] Estuda-se para conhecer o estado dos Espíritos no mundo invisível, as relações que estabelecem conosco, a ação oculta deles sobre o mundo material e não para tirar vantagens materiais. Olhamos para eles para refletir no que somos hoje e no que viremos a ser. Olhamos para eles a fim de refletir sobre o nosso presente e o nosso futuro, individual e coletivo.

         Para ideias novas, palavras novas. Allan Kardec evita usar as palavras "espiritualista" e "espiritualismo" porque estas já tinham significados bem conhecidos. Todo aquele que acredita que exista em nós alguma coisa além da matéria é espiritualista. O católico e o protestante, por exemplo, se enquadram aí. Porém, diferente dos espíritas, uma boa parte deles não acredita que seja possível que os Espíritos se manifestem e entrem em contato conosco. Assim, "Espiritismo" e "espírita" foram palavras criadas por Allan Kardec para dar conta daqueles que acreditam na existência dos Espíritos e em suas manifestações.        [11]

         Ao estudarmos a obra de Allan Kardec percebemos, de sua parte, certo receio em dizer que o Espiritismo é uma religião. Numa definição que apresenta logo no início de O que é o Espiritismo, ele apresenta o Espiritismo como "uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os Espíritos; como Filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações". [12] A partir do esforço de observação e análise do fenômeno da manifestação dos Espíritos, decorreria, tanto do fenômeno em si (que atesta a sobrevivência da alma à morte) quanto do conjunto dos ensinamentos dos Espíritos, uma filosofia de consequências morais. No mesmo livro, Kardec afirma a proximidade entre a ideia de religião e o Espiritismo, porque este concordaria com seus fundamentos dela.

(...) os Espíritos proclamam um Deus único, soberanamente justo e bom; eles dizem que o homem é livre e responsável por seus atos, recompensado ou punido pelo bem ou pelo mal que houver feito; colocam acima de todas as virtudes a caridade evangélica e a seguinte regra sublime ensinada pelo Cristo: fazer aos outros como queremos que nos seja feito.

Não serão estes os fundamentos da religião? [13]

         O receio de Kardec na definição do Espiritismo como religião tem a ver com a ideia comum que se faz dela, associando-a a cultos, rituais, paramentos e sacerdotes, tudo aquilo que o Espiritismo não tem. Ele deixa clara sua posição na Revista Espírita de dezembro de 1868.

Por que, pois, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Pela razão de que não há senão uma palavra para expressar duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; que ela desperta, exclusivamente, uma idéia de forma, e que o Espiritismo não a tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria nele senão uma nova edição, uma variante, querendo-se, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com um cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo, e dos abusos contra os quais a opinião é freqüentemente levantada. [14]

         Já que são as almas dos homens que já viveram que se manifestam, como saber se o que dizem os Espíritos sobre a vida e sobre as realidades do mundo espiritual é ou não correto? Em O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec propôs um método: o controle universal do ensino dos Espíritos. Não se pode impedir que os Espíritos se manifestem. Se os que se consideram inimigos do Espiritismo tentassem proibir sua prática, não teriam sucesso; se mandassem prender os médiuns de uma cidade ou país, eles receberiam suas comunicações nas cadeias, enquanto que, em outras partes do mundo, onde existissem médiuns - conscientes ou não de suas mediunidades – os Espíritos continuariam se comunicando com a humanidade. Fossem mesmo todos os médiuns exterminados - se isso fosse possível, porque todos somos, de acordo com O livro dos médiuns, mais ou menos médiuns - poderia ser provocada uma breve interrupção nas comunicações, mas... Como todo dia nasce gente, todo dia nasce médium. E as comunicações seriam restabelecidas. Notem que quero demonstrar que a mediunidade está disseminada pelo mundo: onde há gente, há médium. Assim, os Espíritos manifestam-se por toda a parte. Comunicar-se com eles não é privilégio de quem quer que seja. Como eles são as almas dos homens que já morreram e entre os encarnados há os sábios e os fanfarrões, entre os Espíritos também; Se existisse apenas um médium, este poderia ser enganado por algum Espírito interessado apenas em se divertir com a cara de alguém. Agora, é muito mais difícil enganar um enorme conjunto de pessoas que recebem comunicações de Espíritos diferentes em vários pontos diferentes do mundo. Allan Kardec diz que "nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo (...) milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios."[15] Ou seja: aquilo que é dito de maneira igual em diferentes pontos do planeta por diferentes médiuns e diferentes Espíritos é um indicador de verdade. Se o que é falado por algum Espírito numa cidadezinha do Sul do Brasil, concorda com o que é ensinado por outro Espírito em outra cidadezinha do México e, assim por diante, estamos diante de um conhecimento que merece ser considerado por nós. Essa verificação universal, diz Kardec, "constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade." [16] Kardec ainda diz que "não será a opinião de um homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos" [17], e quando ele escreve isso também faz referência a si mesmo. Vale para ele e para qualquer um. Qualquer um!

         O Espiritismo possui cinco princípios básicos que são abordados nas obras de Allan Kardec e nas dos demais autores: 1º) Existência de Deus; 2º) Imortalidade da alma; 3º) Comunicabilidade dos Espíritos; 4º) Reencarnação e 5º) Pluralidade dos mundos habitados. A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, que eles, através de seus ensinamentos, acrescentam os princípios que regem as relações entre encarnados e desencarnados.

         O Espiritismo, diz Allan Kardec em A Gênese, possui duplo caráter: "participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica."[18] Ele não é o resultado da mente de Kardec, o fruto do trabalho de um único homem. Os ensinamentos que reúne o Espiritismo, que dão conta do estado em que se encontram os Espíritos no mundo invisível e das consequências morais das ações humanas, foram recebidos dos Espíritos. Mas aqueles que receberam esses ensinamentos não eram seres irracionais, passivos, que tivessem aberto mão da razão. Aqueles que os receberam não estavam

dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põe sobre os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e a iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem. [19]

         Notem que os Espíritos nos envolvem, à nós que estamos encarnados, na elaboração da Doutrina Espírita. E faz todo o sentido, porque os Espíritos, no mundo invisível, participam da humanidade! São parte dela! Hoje, aqui estamos nós encarnados e muitos deles lá, no mundo espiritual, desencarnados; amanhã, seremos nós os desencarnados e muitos deles serão os encarnados! Os Espíritos verdadeiramente sérios e comprometidos com a verdade nos aconselham o exame das comunicações espirituais que recebamos. O Espírito Erasto, em O livro dos Médiuns, faz a Kardec recomendação muito sensata nesse sentido.

Na dúvida, abstém-te (...) Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expedida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e bom-senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.[20]

         A verdade se impõe. Se a recusamos aqui, ela é dita em várias outras partes por diferentes Espíritos através de diferentes médiuns e o controle universal do ensino dos Espíritos a promove e a consolida. A mentira costuma ter feitos imediatos e destruidores, que podem comprometer o trabalho e a imagem dos médiuns e da própria doutrina na opinião pública. Percebam, por estas citações, que há, por parte de Allan Kardec e dos Espíritos sérios um constante chamamento à razão e a responsabilidade pessoal na análise daquilo que é trazido pelos Espíritos. Nada deve ser aceito cegamente dos Espíritos! Em O livro dos Médiuns, não há nenhuma parte onde se diga que se deve acolher tudo que os Espíritos digam como verdade, como também não há qualquer parte que trate de médiuns perfeitos... Porque estes não existem, nem nunca existiram! Não é a pretensa "autoridade" moral do médium que é garantia de verdade de qualquer comunicação espiritual! Nesse sentido, toda idolatria de médiuns é improdutiva e prejudicial àqueles que idolatram e, de uma certa forma, prejudicial também à doutrina, porque demonstra, àqueles que não são espíritas, como também aos adversários da doutrina, que seus adeptos estão abrindo mão da razão e do bom senso. E ao fazerem isso estão deixando de lado, por desconhecimento ou distração, exatamente o que um dos seus principais organizadores - Allan Kardec - e os Espíritos cujos ensinamentos ele reuniu, recomendaram.

         Ainda no que diz respeito à participação dos encarnados na estruturação da Doutrina Espírita, Kardec nos traz um exemplo no primeiro capítulo de A Gênese, aliás, um capítulo fundamental para as reflexões dos espíritas. Eles nos conta que, no mundo dos Espíritos, ocorre um fenômeno do qual muita gente não fazia ideia até então: há Espíritos que não se consideram mortos. Os Espíritos Superiores, que conhecem perfeitamente essa realidade, não foram até Kardec e lhe disseram: "Olha, Kardec: existem Espíritos que não sabem que morreram, se julgam encarnados e mantém todos os seus costumes e vícios." O que eles fizeram?

Provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que observássemos. (...) A multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía uma das fases da vida espiritual; pode-se então estudar todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação.[21]

         Decorrendo da observação, percebemos aqui que os Espíritos inferiores, em condições de sofrimento moral e ignorância, também concorrem, com suas experiências de vida material (quando encarnados) e no mundo espiritual, para a construção do edifício da Doutrina Espírita. O grande e o pequeno participam com sua parcela na elaboração e desenvolvimento do Espiritismo. O Espiritismo é obra da humanidade dos dois lados da vida! Quando os Espíritos comunicam-se nas reuniões mediúnicas chamadas de desobsessão ou de esclarecimentos e dialogam com os encarnados, estes muitas vezes pensam que estão ali para beneficiar aqueles irmãos em condição de sofrimento. Sem dúvidas que esse contato, supervisionado pelos Espíritos Bons, traz benefícios para aqueles Espíritos em sofrimento. Porém, os encarnados se beneficiam enormemente com a presença deles, para além da ajuda da palavra e da solidariedade que lhes emprestam: estes Espíritos, ao trazerem suas dores e lutas, ensinam aos encarnados aquilo que eles podem vir a ser, caso não emendem sua conduta e retifiquem seus caminhos morais.

         Allan Kardec, na nota de rodapé do item 45 de A Gênese reflete sobre seu papel na elaboração da Doutrina Espírita. Apresenta-se como "um observador atento, que estuda os fatos para lhes descobrir a causa e tirar-lhes as consequências." [22] Como fez isso? Afirma ter comparado todos os ensinamentos que conseguiu reunir - ele trocava cartas com outros espíritas[23] - e depois coordenou o conjunto.

Em suma, estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações, sem atribuirmos aos nossos trabalhos o valor maior do que o de uma obra filosófica deduzida da observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe da doutrina, nem procurarmos impor as nossas ideias a quem quer que seja.[24]

         Demonstrada a necessidade de participação dos encarnados na elaboração da Doutrina Espírita, recolhendo, observando, analisando, comparando e tirando conclusões dos ensinamentos dos Espíritos e, apoiando-se em fatos, verifica-se que ela tem que ser progressiva, como toda ciência de observação. Dessa forma, é aliada da ciência.

Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. [25]

         Não há livros sagrados no Espiritismo. Aberto ao progresso da ciência, e portanto, progressista, Kardec ficaria muito espantado se alguém sacralizasse ou santificasse seus livros, impedindo ou inibindo, com isso, a análise deles à luz das descobertas dos diferentes ramos da produção do conhecimento ao longo do tempo. É importante destacar essa relação de proximidade do Espiritismo com a ciência, seus métodos, a racionalidade e valorizá-los porque vivemos, no Brasil, tempos de burrice irracionalidade empoderada e orgulhosa, que se manifesta nos negacionismos daqueles que são contra vacinas (e a favor das doenças), daqueles que negam as mudanças climáticas provocadas pelas ações dos homens ricos (o que é fartamente documentado pelos cientistas) e daqueles, até, que chegam ao ponto de negar a forma esférica da Terra (não é uma esfera perfeita, porque achatada nos polos).

         O conhecimento das relações que podem ser estabelecidas entre encarnados e desencarnados traz uma série de consequências morais para nós, encarnados. Allan Kardec diz que esse conhecimento "não pode deixar de acarretar, generalizando-se, profunda modificação nos costumes, caráter, hábitos, assim como nas crenças que tão grande influência exerceu sobre as relações sociais."[26] Trazendo de volta a mensagem dos que atravessaram a morte, o Espiritismo nos revela a vida vitoriosa que se faz presente em toda a parte. O evangelho de João registra a promessa da vinda do Consolador, "que vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito". [27] O Espiritismo, nos diz Kardec, "realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na Terra; atrai para os verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança." [28]

         Saber que a vida continua e que nossas ações no presente gerarão efeitos futuros traz, para nós, a responsabilidade de emendarmos nossa conduta pelo mais alto padrão de moral. Sabendo disso, já não se pode viver como se vivia antes, como todos. Viver tentando passar por cima dos outros, para se dar bem a qualquer custo, já não deve ser para nós e para ninguém, porque estaremos nos comprometendo pela soma de erros cometidos e com aqueles que fizermos mal por causa de nossa ganância. Explorar o trabalho dos outros para enriquecermos? O papel do ambicioso que esgota os outros pelo trabalho não cabe mais. E, para além de não caber-lhe mais, tem que colocar-se o dever moral de dar combate incessante a essa forma de sociabilidade dominante chamada capitalismo que transforma tudo em mercadoria e torna cada vez mais difícil a vida de bilhões de pessoas. O espírita deverá ser aquele que se conduz retamente, com o dever moral de caminhar no mundo erguendo aqueles que não aguentaram o peso das próprias provas e/ou que foram esmagados pela ganância dos outros e deixados de lado, descartados, como vidas sem importância.

         A indiferença com a forma de sociabilidade capitalista reforça a miséria e sofrimento para a maioria das pessoas. As favelas que conheço aqui no Rio de Janeiro aumentaram de tamanho no decorrer da minha própria existência de quarenta e um anos. Um outro futuro e uma outra forma de sociabilidade devem ser pensados e construídos, que não mais comportem a exploração do homem pelo homem e o descarte destes como coisas indesejáveis. Essa nova sociabilidade também deve assumir outro tipo de relação com o meio ambiente que não seja a da lógica da destruição. Estamos neste planeta e a ele voltaremos, se a nossa conduta nos permitir e não formos tão nocivos que nossa presença atrapalhe a maioria. Que tipo de planeta vamos encontrar? Há poucos dias, na segunda quinzena de março de 2022, "Estações meteorológicas registraram na sexta-feira (18) uma marca 40º C acima do normal em partes da Antártida e 30ºC acima da média no Ártico, segundo a agência de notícias Associated Press (AP)." [29] A intervenção humana atrás de lucro a qualquer custo tem provocado o aquecimento global, gerado pelos gases de efeito estufa. Além disso, ainda temos o desmatamento das florestas por queimadas para a implantação de pastos ou para o plantio de soja e outras culturas voltadas à exportação.[30] Temos, ainda a poluição dos oceanos, que colocam em risco a existência de vários animais. Tudo isso está afetando o clima do planeta, concorrendo para sua deterioração. Os períodos de seca estão mais prolongados; as chuvas, quando vem, cada vez mais concentradas e fortes, provocando alagamentos.[31] Ondas de calor estão provocando cada vez mais mortes de idosos.[32] Com as mudanças climáticas, algumas regiões do planeta podem tornar-se inabitáveis, tanto pelo aumento dos oceanos quanto pelo calor extremo.[33] Sozinhos, isolados, pouco podemos fazer para lutar contra isso. Importa pensarmos nessas questões agora, qualquer que seja a nossa idade. Os mais jovens tem anos pela frente; os mais velhos, com menos tempo, a seu turno reencarnarão neste mesmo planeta. Se nada mudar na defesa do meio ambiente, se todos nós, presentes a esta reunião, desencarnarmos em, no máximo, oitenta anos, as condições climáticas do planeta serão muito piores do que as atuais. Imaginando que passemos em torno de oitenta a cento e vinte anos no mundo espiritual, reencarnando, suponhamos, em 2222, será que encontraremos ainda a floresta Amazônica de pé? Será que na região do Rio de Janeiro encontraremos um deserto, pela falta de chuvas? Será que reencarnaremos ainda no Brasil, que vem diminuindo os índices de natalidade? [34] Invocando o método de análise de Kardec, há que se observar se existem médiuns cujos Espíritos comunicantes minimizem ou ocultem esses problemas de exploração do homem pelo homem e os de natureza climática. O capítulo 19 de O livro dos Médiuns, que trata "Do papel dos médiuns nas comunicações espíritas" certamente pode indicar caminhos para o entendimento desta questão. É urgente que nos organizemos coletivamente e participemos ativamente do trabalho por essas mudanças necessárias.

         Com o Espiritismo, aprendemos que o futuro será construído no presente. Que tipo de futuro temos construído, individual e coletivamente falando? Será um futuro tranquilo, bacana, um tempo de realizações positivas onde poderemos desenvolver plenamente nossas capacidades, ou será num mundo ainda repleto de problemas e ainda mais graves dos que aqueles que estamos enfrentando agora? Recordem-se que ainda paira sobre nossas cabeças a ameaça de um conflito nuclear por causa da Guerra contra a Ucrânia. Os desencarnados não assumirão nossas responsabilidades: a humanidade desencarnada, que é comprometida com o bem - porque existem aqueles que não o são tanto "aqui" quanto "lá" - certamente nos ajudarão com suas energias e inspirações, mas o trabalho fundamental está sob a responsabilidade daqueles que estão encarnados. Conosco estão as possibilidades materiais de lutarmos pela salvação material do planeta e ela, certamente, não se dará sob um ambiente de opressões e explorações.

         O preconceito racial e a homofobia, repugnantes sob qualquer ponto de vista, devem ser repudiados pelos espíritas. Somos todos Espíritos encarnados. Possuímos um corpo transitório e reencarnaremos em outras condições, adequadas e necessárias ao nosso progresso moral. Agir de maneira preconceituosa contra pessoas de outras etnias e contra pessoas de orientação LGBTQIA+ é faltar com o dever de fraternidade e respeito para com essas pessoas, além de cometer crime previsto no Código Penal, crime que deve ser denunciado e de maneira alguma tolerado. Além disso, com o conhecimento da reencarnação, pode-se descobrir no próximo - objeto do preconceito - um parente, um amigo ou um irmão de outras reencarnações. E, por nossa vez, muito provavelmente reencarnaremos em outras etnias e com gênero ou orientação sexual diversa da atual.

         O Espiritismo pode parecer a alguns como um chamamento individual à mudança e a transformação pessoais. Entretanto, ninguém é uma ilha e só nos transformamos verdadeiramente quando nos comprometemos com a transformação de todos, com a melhoria para todos. O próximo não é cenário para nossas realizações evolutivas, para fazermos selfies enquanto distribuimos a caridade material; o próximo é nosso irmão, nosso igual que, se porventura, encontra-se hoje em dificuldades, amanhã poderá ser a mão a nos socorrer. Não é alguém que deve permanecer abaixo de mim numa relação desigual de subordinação velada. É alguém que participará, ao nosso lado, da transformação do mundo num lugar acolhedor para quem se compromete com a coletividade e, por isso, pensa coletivamente. Só conseguiremos criar o reino de Deus em nós quando nos dispormos a torná-lo real para todos.



[1] KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 265.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem, p. 267.

[5] Idem, p. 268.

[6] idem.

[7] Idem, p. 269.

[8] KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1999, p. 107.

[9] Idem, p. 109.

[10] Idem.

[11] Ver: KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo, op. cit., p. 66 a 68 e KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 13.

[12] KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo, op. cit., p. 50.

[13] Idem, p. 128.

[14] KARDEC, Allan. “O Espiritismo é uma religião?”. Revista Espírita. Paris, Dezembro 1868, n° 12, p. 5.

[15] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2004, p. 28.

[16] Idem, p. 32.

[17] Idem, p. 36.

[18] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 1996, p. 19.

[19] Idem, p. 19 e 20.

[20] KARDEC, Allan. O livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 1996, p. 292.

[21] KARDEC. A Gênese, op. cit., p. 20 e 21.

[22] Idem, p. 36, nota 1.

[23] Algumas cartas de Allan Kardec estão disponíveis para pesquisa no Projeto Allan Kardec, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que está digitalizando e traduzindo o material. PROJETO ALLAN KARDEC. Disponível em: https://projetokardec.ufjf.br/ Último acesso em 24/3/22.

[24] Kardec. A Gênese, op. cit., p. 36, nota 1.

[25] Idem, p. 44 e 45.

[26] Idem, p. 23.

[27] BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 1376. João 14:26.

[28] Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, op. cit., p. 146.

[29] "Polos da Terra são atingidos por ondas de calor sem precedentes". Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Um-So-Planeta/noticia/2022/03/polos-da-terra-sao-atingidos-por-ondas-de-calor-sem-precedentes.html Último acesso em 24/3/22.

[30] "63% das áreas desmatadas na Amazônia viram pasto para o gado, indica relatório alemão". Disponível em: https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Sustentabilidade/noticia/2021/01/63-das-areas-desmatadas-na-amazonia-viram-pasto-para-o-gado-indica-relatorio-alemao.html Último acesso em 24/3/22.

[31] "As Mudanças Climáticas". Disponível em: https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/reducao_de_impactos2/clima/mudancas_climaticas2/ Último acesso em 24/3/22.

[32] "Mais de 356.000 mortes em 2019 foram relacionadas ao calor". Disponível em: https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-08-20/mais-de-356000-mortes-em-2019-foram-relacionadas-ao-calor.html Último acesso em 24/3/22.

[33] "Mudança climática ameaça Índia a ter regiões inabitáveis". Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/mudanca-climatica-ameaca-india-a-ter-regioes-inabitaveis/ Último acesso em 24/3/22.

[34] IBGE. "Taxa Bruta de Natalidade por mil habitantes – Brasil – 2000 a 2015". Disponível em: https://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/taxas-brutas-de-natalidade.html Último acesso em 24/3/22.


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