domingo, 21 de agosto de 2022

O necessário e o excesso

Palestra apresentada no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor em 20 de agosto de 2022.

Marco Aurélio Gomes de Oliveira

“Desejo, necessidade, vontade

Necessidade, desejo, eh

Necessidade, vontade, eh

Necessidade.” 

“Comida”, Titãs.[1]

         A conhecida música do grupo “Titãs” chamada “Comida” termina falando em “necessidade”, depois de usar “desejo” e “vontade”. Tudo aquilo de que não se pode abrir mão de maneira alguma é necessário. Dessa forma, o que diz respeito à sobrevivência material do nosso corpo físico interessa-nos de maneira direta, principalmente respirar, comer, beber, poder banhar-se, vestir-se com dignidade e ter um teto onde dormir. Essas seriam as necessidades mais urgentes, imediatas, sem as quais seria muito difícil manter corpo e alma unidos. “Desejo” e “vontade”, palavras sinônimas, expressam na canção a expectativa de possuir ou alcançar alguma coisa que, na música, vai além das necessidades materiais mais urgentes porque, afinal de contas, as pessoas, de maneira geral, querem “viver”, no sentido pleno da palavra, e não apenas “existir”. Devemos perguntar-nos, porém, se boa parte das pessoas, neste momento político e econômico em que vive o Brasil – foco principal de nossa análise – e o mundo, podem ter acesso aos elementos mais básicos para viverem.

         Allan Kardec, em O livro dos Espíritos indaga aos Benfeitores Espirituais na pergunta 704 se, dando ao homem a necessidade de viver, Deus lhe facultou as maneiras de consegui-lo, ao que estes respondem positivamente, acrescentando que seria “essa a razão por que faz que a Terra produza de modo a proporcionar o necessário aos que a habitam, visto que só o necessário é útil.” [2] De cara ficamos sabendo, portanto, que o planeta reúne condições para produzir de modo a atender as necessidades básicas de todos. Por outro lado, também sabemos, por experiência própria ou por informações de terceiros (meios de comunicação, colégios, etc.) que nem todos tem acesso a este necessário, mínimo para a sobrevivência. Na questão 705 os Espíritos Superiores desdobram a idéia. Segundo eles, se a criatura humana se contentasse sempre com o necessário a Terra daria conta dessa demanda. “Se o que ela produz não lhe basta a todas as necessidades, é que ele emprega no supérfluo o que poderia ser aplicado no necessário (...) imprevidente não é a Natureza, é o homem que não sabe regrar o seu viver.” [3] “Supérfluo” é tudo aquilo que ultrapassa a medida do necessário, é o além da conta. Neste segundo momento, eles apontam um mau uso dos recursos em razão daquilo que poderia ser apontado como uma certa indisciplina no viver. O psicanalista, filósofo e sociólogo alemão Eric Fromm, em seu livro A revolução da esperança: Por uma tecnologia humanizada, faz-nos uma provocação interessante:

Já é tempo de começarmos a examinar todo o problema das necessidades subjetivas e verificar se sua existência é uma razão suficientemente válida para sua satisfação; de pôr em dúvida e examinar o princípio geralmente aceito da satisfação de todas as necessidades – embora nunca se indague sobre suas origens ou efeitos. [4]

         Quando ele fala em “necessidades subjetivas” refere-se àquelas que variam de pessoa para pessoa. Lança o questionamento sobre a validade absoluta dessas necessidades e se deveriam ser aceitas sempre. Por último, faz com que reflitamos sobre a origem dessas necessidades e seus resultados. Trocar de aparelhos de telefone celular todo ano é válido? E encher-se de calçados, já que temos apenas dois pés? Na questão 711, Allan Kardec quer saber se o uso dos bens da Terra é um direito de todos os homens e os Espíritos respondem que “esse direito é conseqüente da necessidade de viver.” [5] Também dizem que o gozo desses bens materiais são atrativos para “instigar o homem ao cumprimento da sua missão e para experimentá-lo por meio da tentação” [6], que esta serve para desenvolver sua razão e “preservá-lo dos excessos”. [7]Notem que os Espíritos aqui não estão dizendo que uns tem mais direitos sobre os bens da Terra do que outros. Pelo contrário. Todos devem dispor desses bens porque precisam sobreviver. Os bens da Terra abrem, à humanidade, possibilidades de potencializarem seu crescimento material e moral, desde que bem utilizados. Fornecem os elementos de que o ser humano precisa para melhorar seu entorno e criar facilidades para sua vida, que vão desde a roda até o smartphone. Ao mesmo tempo que são facilitadores, podem constituir-se, no entanto, em motivo de tropeço moral, pelo mau uso dos recursos. Allan Kardec diz que aquele que se alegra na pratica dos excessos de todo tipo para alcançar prazer abre mão da razão e demonstra a preponderância que a sua natureza animal ainda exerce sobre sua natureza espiritual.[8]

Há muita gente no Brasil que não vem tendo suas necessidades mais elementares atendidas. O DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos) informa-nos em sua página na internet que o salário mínimo necessário para o atendimento de uma família composta por quatro pessoas deveria ser de R$: 6.388,55 no mês de julho de 2022. Entretanto, o salário mínimo real é de R$: 1.212,00, cinco vezes menos que o necessário.[9] Quantos brasileiros ganham mensalmente o equivalente a esse valor apontado pelo DIEESE? 33 milhões de pessoas no Brasil ganham até um salário mínimo e, literalmente, dão nó em pingo d’água para sobreviver.  Estes “passaram a representar desde o ano passado (2021) a maior fatia da população ocupada na divisão por faixas de renda”.[10] Em outras palavras: na população ocupada – se é que dá pra chamar a informalidade de ocupação – a maioria dos brasileiros ganha no máximo um salário. De acordo com dados estatísticos do IBGE em 2019, esse salário mínimo necessário apontado pelo DIEESE passa longe de 90% dos trabalhadores brasileiros, quantidade de pessoas que ganha menos que R$: 3.500,00.[11] A consequência natural da maioria dos brasileiros ganharem abaixo do mínimo necessário é o endividamento e a inadimplência, ou seja, a pessoa não tem dinheiro para pagar a dívida e dá calote. De acordo com a pesquisa feita pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), “78% das famílias brasileiras estão endividadas, e 29% estão com contas atrasadas”. [12] Praticamente oito em cada dez famílias tem dívidas e três de dez estão com as contas atrasadas. Se o salário não é suficiente para pagar as contas, também não o é para cuidar da nutrição da maioria dos brasileiros e de seus familiares. Tem muita gente comendo menos que o necessário para sobreviver sem comprometer a própria saúde. “Em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer.” [13] Notem que é quase o mesmo número de pessoas que recebe até um salário mínimo. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), “mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990.” [14] Esse número representa 125 milhões de brasileiros!

         Do que podemos retirar desse momento da análise é que tem muita gente, mas muita mesmo, vivendo com recursos abaixo do necessário e pouquíssimas pessoas vivendo com o excesso. A pobreza e a miséria são fenômenos sociais. Originam-se num sistema econômico ou, se preferirem, numa forma de sociabilidade chamada “Capitalismo” que, para produzir o excesso de poucos se vale da miséria de muitos. Não se trata de um fenômeno da natureza. E se é um fenômeno social é, portanto, histórico, faz parte de um momento na trajetória humana – este que estamos vivendo – mas não quer dizer que vai perdurar para sempre. O que virá depois dele vai depender do futuro que queremos para nós e para o mundo, porque não dá para pensar o estar no mundo descolado dele, de onde retiramos os recursos para a nossa manutenção. Se o futuro será o colapso climático e ecológico do planeta provocado pela correria desenfreada da produção capitalista ou um arranjo social diferente que atenda às necessidades humanas e permita o desenvolvimento de suas potencialidades sem comprometer a saúde planetária, ainda está em aberto. Allan Kardec comenta, no capítulo sobre a “Lei de conservação” que “a natureza não pode ser responsável pelos defeitos da organização social, nem pelas consequências da ambição e do amor-próprio.” [15] Essa organização social adoecida, que nos colocou na borda do precipício climático não é natural.

         Os meios de comunicação no dia 28 de julho de 2022 noticiaram que batemos, nesta data, o “Dia da Sobrecarga da Terra”. Isso quer dizer que neste dia terminamos de gastar tudo aquilo que a natureza poderia produzir, espontaneamente, no período de um ano. A partir daí, entraríamos numa espécie de “cheque especial” do planeta, avançando no consumo de recursos que, mais adiante, farão falta para nós e para as gerações futuras (se reencarnarmos aqui...). Neste ritmo de consumo de recursos naturais, seriam necessárias 1,75 Terras, quase dois planetas, para suprir a procura de recursos de maneira sustentável.[16] Vocês devem estar pensando, e de maneira muito justa, para onde estão indo esses recursos, já que muitos de nós e a maioria da população brasileira, como vimos, anda carente deles. Terras são desmatadas para a criação de gado e a produção de alimentos, tanto para humanos quanto para a produção de ração animal. Os ecossistemas também são destruídos para a exploração da madeira das florestas e os recursos minerais do solo, como os metais que são usados tanto na construção civil quanto nos smartphones. A grande exploração da Terra objetiva, assim, neste momento histórico em que vivemos sob a sociabilidade capitalista, a produção de mercadorias. Não é por outro motivo que Karl Marx, filósofo alemão que, segundo o Espírito Joanna de Ângelis, foi um dos que produziu uma revolução nos conceitos e costumes, [17] resolveu começar o volume um de O Capital tratando da mercadoria. De acordo com ele, abrindo seu livro, “a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias, e a mercadoria individual, por sua vez, aparece como sua forma elementar.” [18] Apresenta-nos a mercadoria como um “objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer.” [19] Eis que, mais uma vez, topamos com a necessidade! A existência da mercadoria só tem sentido se ela serve para algo, se ela tem, portanto, valor de uso para quem a consome ou adquire.

         De que maneira essa coleção de mercadorias, que podemos observar em shoppings, supermercados e pela internet, é criada e se torna disponível para os potenciais consumidores? Para facilitar a explicação e a análise, suponhamos que um pequeno grupo de pessoas que possua recursos financeiros reúna-se e decida investir na criação de uma fábrica de telefones celulares. Para tanto, tomarão uma quantidade de dinheiro, 100 milhões de dólares e, com ela, comprarão 80 milhões em meios de produção (máquinas e matérias primas) e 20 milhões em força de trabalho. Numa parte do processo de trabalho, na metade dela, os trabalhadores produzirão o correspondente ao valor de sua força de trabalho, que equivale ao valor do seu salário, que no nosso exemplo totaliza os 20 milhões de dólares.

O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador trabalha além dos limites do trabalho necessário, custa-lhe, de certo, trabalho, dispêndio de força de trabalho, porém não cria valor algum para o próprio trabalhador. Ele gera mais-valor, que, para o capitalista, tem todo o charme de uma criação a partir do nada. A essa parte da jornada de trabalho denomino tempo de trabalho excedente, e ao trabalho nela despendido denomino mais-trabalho. [20]

         Se os trabalhadores realizam em produtos metade da jornada de trabalho para si e metade para os capitalistas donos da fábrica de celulares, já que o mais-valor é trabalho não pago embolsado pelos capitalistas, eles produziram um valor equivalente a 40 milhões de dólares quando são somadas as duas metades da jornada de trabalho. Uma vez que os celulares estejam prontos, precisam ser vendidos. Digamos que o processo de produção leve 4 meses e o processo de circulação leve outros 2 meses. A fábrica não vai parar de funcionar enquanto esses celulares não forem vendidos. Ao final de 4 meses, outra leva de celulares é produzida enquanto aquela é vendida. Uma parte daquele mais-valor – trabalho não pago – será usada no novo ciclo de produção de celulares. A outra parte vem do sistema de créditos.

O caráter inteiro da produção capitalista é determinado pela valorização do valor de capital adiantado, ou seja, em primeira instância, pela produção do máximo possível de mais-valor; em segundo lugar, porém, pela produção de capital, isto é, pela transformação de mais-valor em capital. A acumulação ou produção em escala ampliada, que aparece como meio para a produção sempre aumentada de mais-valor e, por conseguinte, para o enriquecimento do capitalista, como objetivo pessoal deste último, e que está incluída na tendência geral da produção capitalista, torna-se, por meio de seu desenvolvimento, (...) uma necessidade para cada capitalista individual. O aumento constante de seu capital passa a ser uma condição para a conservação desse mesmo capital. [21]

         Ou seja, para obter mais-valor dos trabalhadores – trabalho não pago – os capitalistas precisam repetir e ampliar a produção para vender cada vez mais celulares, conforme nosso exemplo, porque o mais-valor é realizado na venda, é aí que ele toma posse dos valores produzidos pelo trabalho não pago. É com esse mais-valor que ele enriquece. Então, só interessa aos empresários donos da fábrica de celulares fabricarem e venderem cada vez mais. Isso vale para tudo que é produzido para ser vendido no mercado. Os mais velhos devem lembrar-se que os produtos fabricados há algumas décadas atrás tinham um tempo de vida maior do que os atuais. Havia geladeiras que duravam vinte ou trinta anos. Hoje duram muito menos. É proposital. Se a geladeira dura menos, você precisa trocar ela com mais freqüência. E o que os fabricantes de geladeira mais querem é que isso aconteça. O nome disso é obsolescência programada.

Trata-se de uma estratégia de mercado focada em desenvolver produtos com falhas planejadas, ou recursos a menos, de modo a oferecer um modelo posterior com correções/mais funcionalidades, mas com outros problemas pré-fabricados. [22]

         Os fabricantes de celulares costumam lançar mão desse recurso, seja através de atualizações de programas que reduzem a performance dos aparelhos, ou deixando de fornecer atualizações para o bom funcionamento deles. Os fabricantes também procuram atrair consumidores oferecendo aparelhos com novas funcionalidades, como mais câmeras, telas maiores, etc. Isso tudo para vender mais, para repetir o processo de produção e consumo para realizar, cada vez mais, mais-valor.

Sobre a questão do consumo, o psicanalista Eric Fromm nos lembra que a “industria sabe que, pela publicidade, é capaz de criar necessidades e desejos que podem ser antecipadamente calculados”. [23] Todos devem lembrar-se das propagandas de cerveja veiculadas nos canais de TV, onde as ideias de saúde, juventude, alegria e amizade são associadas ao consumo da bebida alcoólica. Roupas, calçados, aparelhos eletrônicos e carros também são associados a idéia de status e poder. Eric Fromm nos apresenta aquela que seria a “liberdade do consumidor”. Segundo ele, “essa liberdade de conceder seus favores à sua mercadoria preferida cria um senso de potência. O homem que é humanamente impotente e se torna potente – como comprador e consumidor.” [24] Além disso,

O consumo compulsivo compensa a ansiedade. (...) a necessidade desse tipo de consumo origina-se no sentido de vazio interior, desesperança, confusão e tensão. ‘Absorvendo’ artigos de consumo, o indivíduo reafirma a si próprio que, por assim dizer, ‘ele é’. [25]

         Acrescenta, ainda, que “a maioria dos impulsos para o prazer, se forem compulsivos, incluindo o sexo, não é causada pelo desejo de prazer, mas pelo desejo de evitar a ansiedade.” [26]Portanto, atuam sobre as pessoas estimulando o consumo: a obsolescência programada dos produtos, a publicidade, que ajuda a criar necessidades fictícias, esse senso de potência dado pela liberdade de escolher, ainda que, essencialmente, essas mercadorias variem muito pouco em termos de formato e funcionalidades (microondas, por exemplo) e, por último, esse desejo de preencher os vazios existenciais através do consumo, numa tentativa de fuga da ansiedade provocada por uma existência alienada, já que muitas vezes fundada em escolhas artificiais, que não modificam substancialmente a vida. 

         Para alguns, a idéia de colocar limites à crescente produção de mercadorias choca-se com as palpáveis necessidades materias da maioria das pessoas. Aqueles que ganham – e muito – com essa expansão das atividades econômicas, com esse constante aumento na produção de mercadorias, sem se importarem com o futuro do planeta, também a defendem, não importando o dia de amanhã. De acordo com Eric Fromm,

A meta do crescimento econômico máximo é aceita como dogma, indubitavelmente devido à urgência das necessidades reais e também devido ao princípio semi-religioso do aumento ilimitado na produção como a meta da vida chamada “progresso”, a versão industrial do céu. [27]

         Uma ilimitada expansão das atividades econômicas que comprometa a habitabilidade do planeta Terra e ao mesmo tempo jogue para escanteio milhões de pessoas excluídas da sociedade de consumo, ou porque passam fome (828 milhões de pessoas em 2021), ou porque estejam muito próximo dela (2,3 bilhões de pessoas em insegurança alimentar em 2021), além do que não são donas do fruto do próprio trabalho nem dos meios de produção, é o anúncio de uma tempestade de consequências duríssimas para os excluídos. [28] Allan Kardec, na pergunta 717 questiona os Espíritos Superiores:

Que se há de pensar dos que açambarcam os bens da Terra para se proporcionarem o supérfluo, com prejuízo daqueles a quem falta o necessário?

“Olvidam a lei de Deus e terão que responder pelas privações que houverem causado aos outros.” [29]

         Na resposta à questão 806, os Espíritos dizem que a desigualdade das condições sociais não é uma lei da natureza, não foi criada por Deus, mas sim obra do homem. [30] Dessa forma, os causadores das desigualdades – os homens que exploram outros homens – são aqueles que provocam esse estado de privações materiais das maiorias e colocam a Terra no precipício do colapso climático, que já sentimos as consequências nas secas e chuvas frequentes. Os Espíritos dizem, na resposta à questão 719, que o desejo por bem-estar é natural. “Deus só proíbe o abuso, por ser contrário à conservação. Ele não condena o bem-estar, desde que não seja conseguido à custa de outrem e não venha a diminuir-vos nem as forças físicas, nem as morais.” [31] Desde que essa procura por bem-estar não cause prejuízo a outras pessoas ele é legítimo. Chama a atenção na resposta que os Espíritos sugerem que o empenho que alguém coloque na busca por esse bem-estar também pode ter consequências negativas para si mesmo. Boa parte das pessoas trabalha muito – a maioria delas – para poder receber o suficiente para manter corpo e alma unidos. Uma grande massa de desempregados ajuda a comprimir, a espremer os salários para baixo. O desespero da privação faz com que muita gente, para sobreviver, aceite realizar qualquer tipo de serviço por qualquer tipo de pagamento. Pagando menos salários, a quantidade de mais-valor (trabalho não pago) extraída dos trabalhadores é maior. Esse dinheiro a mais fica no bolso do capitalista. Falando sobre a jornada de trabalho, Karl Marx afirma:

Après moi le déluge! [Depois de mim, o dilúvio] é o lema de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a mínima consideração sobre a saúde e duração de vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)? [32]

         Não tem consideração com a vida do trabalhador nem com a manutenção do próprio planeta Terra. Importa-lhes, apenas, lucrar. O que vem depois não os interessa. Quando não conseguiram reunir, ainda, condições para viverem de rendimentos de ações de empresas, alguns desses capitalistas se jogam numa busca desenfreada e quase irracional para acumular bens, comprometendo a saúde física e mental. Vivem como se não fossem morrer e acabam morrendo como se não tivessem vivido. Aqui podem ser incluídos profissionais liberais de classe média que, embora se julguem economicamente próximos dos ricos, em realidade estão mais perto dos pobres, já que não podem deixar suas atividades remuneradas, seu trabalho, para viver de renda. Essa corrida insana faz lembrar a parábola do rico insensato, do evangelho de Lucas (12:16-21):

A terra de um homem rico deu uma grande colheita. E o homem pensou: ‘O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir outros maiores; e neles vou guardar todo o meu trigo, junto com meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: meu caro, você possui um bom estoque, uma reserva para muitos anos; descanse, coma e beba, alegre-se!’ Mas Deus lhe disse: ‘Louco! Nesta mesma noite você vai ter que devolver a sua vida. E as coisas que você preparou, para quem vão ficar?’ Assim acontece com quem junta tesouros para si mesmo, mas não é rico para Deus. [33]

         Infelizmente já tive oportunidade de ouvir – e é uma pena que não dê para “desouvir” – uma argumentação por parte de um espírita que procurava legitimar a fartura de poucos e a privação de muitos pela reencarnação. De acordo com ele, atacar as matrizes, as causas que promovem a desigualdade social de um certa maneira acabaria prejudicando os mecanismos de causa e efeito acionados na reencarnação. Não seriam criadas condições para que Espíritos culpados, comprometidos no erro, expiassem suas faltas em condições de privação. Levado à sério, esse argumento comprometeria qualquer tipo de auxílio que viesse a melhorar a situação dos que vivem em penúria matéria porque, afinal de contas, se estão passando por isso, as causas seriam justas. Para piorar, poderia ser estendido a todos aqueles que ficassem enfermos, porque, se estão doentes, isso há de ter uma causa que se não estiver nesta vida, estará em outra e, assim, lutar contra a doença e pela saúde o privaria de passar pela experiência que os sofrimentos advindos da enfermidade poderiam oferecer. É a negação de qualquer esforço de melhoria das condições de vida material das pessoas. É a negação dos esforços para transformar o planeta Terra num lugar melhor para todos. Por último, é indicativo de que, embora com o rótulo de espírita e do suposto comprometimento com o progresso, em realidade esse espírita – infelizmente representando de uma parcela importante de adeptos do Espiritismo que pensam mais ou menos parecido – age para defender o status quo, a manutenção da situação como ela está, e por tudo que já foi exposto, a situação não está boa.

         Allan Kardec, no segundo capítulo de O Evangelho segundo o Espiritismo tem um importante item que dá um caminho para vencer esses males provocados pelo egoísmo, que tomam forma no capitalismo. De acordo com ele,

a idéia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes consequências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. [34]

         Sabendo de onde veio, para onde vai e da realidade da vida invencível que se desdobra em dois mundos, o material e o espiritual, a criatura humana reúne condições de assumir um compromisso ético e moral consigo e com os demais, além de tomar para si uma atitude de respeito e cuidado pela casa planetária. Essa certeza fortalece as boas disposições para enfrentarmos as mudanças necessárias para a manutenção das condições do planeta e da vida material com dignidade de seus habitantes. Como diz a canção dos Titãs, que mencionei no início, as pessoas querem diversão, arte, balé... Também acredito que o mundo onde as pessoas possam ter atendidas suas necessidades “espirituais”, subjetivas, além do atendimento de suas necessidades materiais mais fundamentais, é o mundo onde o meio ambiente será respeitado e as coletividades serão as donas dos meios de produção e dos frutos do próprio trabalho.    



[1] LETRAS. Disponível em: https://www.letras.mus.br/titas/91453/ Último acesso em 11/8/22.

[2] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB,1995, p. 337 e 338.

[3] Idem, p. 338.

[4] FROMM, Eric. A revolução da esperança: Por uma tecnologia humanizada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984, p. 128.

[5] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit,. p. 340.

[6] Idem, p. 341.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] DIEESE. “Pesquisa nacional da Cesta Básica de Alimentos”. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html Último acesso em 11/8/22.

[10] G1. “Renda em queda e vida no aperto: os 'corres' dos brasileiros que não ganham nem 1 salário mínimo”. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/04/19/renda-em-queda-e-vida-no-aperto-os-corres-dos-brasileiros-que-nao-ganham-nem-1-salario-minimo.ghtml Último acesso em 11/8/22. Levantamento da LCA Consultores com base nos indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), que é feita trimestralmente pelo IBGE.

[11] UOL. “Calculadora de renda: 90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3.500; confira sua posição na lista”. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/12/13/calculadora-de-renda-90-brasileiros-ganham-menos-de-r-35-mil-confira-sua-posicao-lista.htm Último acesso em 11/8/22. Dados da Pnad Contínua - Rendimento de todas as fontes 2019, do IBGE.

[12] G1. “Endividamento e inadimplência são os maiores em 12 anos; 8 em cada 10 familias têm dívidas, aponta CNC”. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/08/08/endividamento-e-inadimplencia-sao-os-maiores-em-12-anos-8-em-cada-10-familias-tem-dividas-aponta-cnc.ghtml Último acesso em 11/8/22.

[13] OXFAM. “Fome avança no Brasil em 2022 e atinge 33,1 milhões de pessoas”. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em-2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/ Último acesso em 11/8/22.

[14] Idem.

[15] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit., p. 339.

[16] VEJA. “Sobrecarga da Terra: Humanos consumiram mais do que planeta pode produzir”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/sobrecarga-da-terra-humanos-consumiram-mais-do-que-planeta-pode-produzir/ Último acesso em 11/8/22.

[17] FRANCO, Divaldo Pereira. Dias gloriosos. Salvador: Livraria Espírita Alvorada Editora, 2010, p. 11. Disponível em: https://files.comunidades.net/portaldoespirito/Joanna_de_Angelis__Dias_Gloriosos.pdf Último acesso em 11/8/22.

[18] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 113.

[19] Idem.

[20] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital, op. cit., p. 293.

[21] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro II: o processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 158.

[22] GOGONI, Ricardo. “O que é obsolescência programada?”. Disponível em: https://tecnoblog.net/responde/o-que-e-obsolescencia-programada/ Último acesso em 10/8/22.

[23] FROMM, Eric. A revolução da esperança, op. cit., p. 128.

[24] Idem, p. 129.

[25] Idem.

[26] Idem, p. 130.

[27] FROMM, Eric. A revolução da esperança, op. cit., p. 139.

[28] NAÇÕES UNIDAS. “Fome cresce no mundo e atinge 9,8% da população global”. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/07/1794722#:~:text=O%20relat%C3%B3rio%20Estado%20da%20Seguran%C3%A7a,da%20pandemia%20de%20Covid%2D19 Último acesso em 11/8/22.

[29] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit., p. 342.

[30] Idem, p. 376.

[31] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit., p. 342 e 343.

[32] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital, op. cit., p. 342.

[33] BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 1331.

[34] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2004, p. 72.

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