quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Sobre Serpa Pinto, viajante português do século XIX

A obra de Serpa Pinto, intitulada “Como eu atravessei a África, do Atlântico ao Mar Índico. Viagem de Benguela à Contra-Costa, através de regiões desconhecidas. Determinações geográficas e estudos etnográficos” possui 16 mapas e 183 gravuras feitas pelo autor, com 18 capítulos, divididos em dois volumes. Foi publicada em Londres, em 1881.

           

Na primeira parte da obra, agradece em primeiro lugar, a Sua Magestade D. Luiz I, por dívida de justiça e gratidão, já que ele assinou o decreto criando recursos para a primeira expedição científica portuguesa daquele século à África Central. Uma oportunidade e tanto de prender seu nome de soldado a esta empresa. Presta contas ao Conselheiro João D’ Andrade Corvo que, em 1877 propôs o nome dele na Comissão Permanente de Geografia, para fazer parte da expedição. Lembra de agradecer, também, a Sociedade Geográfica de Lisboa, na figura de dois de seus presidentes. Situa Henrique Moreland Stanley como amigo e conselheiro, agradecendo-lhe as lições. Não deixa de fora nem as Associações portuguesas no Brasil. Não se esquece do rei Leopoldo, da Bélgica, bem como a Sociedade Geográfica deste país, além da de Londres.

           

Seu livro é apresentado como a reprodução fiel do seu diário de viagem. A obra efetivamente possui essa organização, uma vez que faz a cronologia da viagem, escreve notas de observações, às vezes abrindo parênteses para narrar fatos curiosos ou que considera engraçados.

           

Para ele, a Europa, de uma maneira geral, e o homem que nunca viajou para os sertões do interior da África, não teria condições de compreender o que se sofre ali e quais as dificuldades a se vencer a cada instante. As narrativas de Livinsgtone e Stanley não dariam conta de mostrar o sofrimento dos viajantes africanos. Só um explorador poderia compreender as atribulações de um explorador. Faz questão de frisar que não à África ganhar dinheiro. Recebeu o pagamento (mesquinho, diz) de oficial do exército. Deixou tudo para a grande obra de estudo do continente desconhecido. Reiteradas vezes menciona as saudades da família e a vontade de desistir da empresa por causa dela.

Além desse discurso de autoridade (vencedor de dificuldades, foi e voltou), tenta mostrar-se destacado em habilidades e qualidades morais, na imagem que pinta de si de um bom atirador e a de austeridade moral. Um homem vendia um líquido que ele afirmava preservar aquele que o bebesse de ser atravessado por uma bala. Desafia Serpa Pinto a atirar na panela que continha o tal líquido, sem antes situa-la numa distância de oitenta passos, que acreditava o bastante para que não fosse atingida. A panela foi espatifada, segundo Serpa, junto com a moral do vendedor.

Quando se encontra na região do sova dos Ambuelas, este mandara os seus festejarem juntos com os de Serpa Pinto. Aos poucos, os homens foram retirando-se, permanecendo apenas as mulheres destes, para os “agradarem”. As filhas do sova ficaram em sua tenda, tentando-o aos “prazeres da carne”, ao que ele conta ter resistido porque elegera a austeridade na conduta, para dar exemplo para os que o acompanhavam.

Perto de chegar ao Zambeze, sua caravana já se encontrava sem comida. Mandava buscar em algumas regiões, mas os locais não vendiam. Aborrecido, reúne os seus e assaltam uma localidade que lhes negara a compra, provendo-se de alimentos e, depois, pagando-os com missangas e tecidos que, segundo ele, corresponderiam ao valor daquilo que “compraram à força”.

Em certos momentos da viagem, na contingência de ter que punir alguém, participantes ou não de sua caravana, diversas vezes os perdoou, para espanto de todos (espanto que faz questão de assinalar).

Descreve sua rotina. Diz que se levantava às 5 horas, tomava banho morno. Fala de sua banheira e de sua chaleira (que usava na sua higiene). Ao termino, seu criado guardava os objetos e lhe trazia seus cronômetros, termômetros e barômetros. Depois de seu chá verde, dava ordem de partida. Carregadores à frente, ele e os pombeiros atrás. Ao final do dia, fazia o boletim meteorológico. Depois da refeição, se o cansaço o impedia de caçar ou percorrer os arredores, passava o tempo escrevendo no diário. Acordava às 3 horas e ficava fumando até às 5 horas, pensando na família.

 

 

No Prólogo de sua obra descreve um pouco de sua trajetória, bem como os preparativos para a empresa. Ficando sabendo da intenção do governo de mandar uma expedição para a África Austral, procurou o Ministro das Colônias e, após algumas dificuldades de encontrá-lo, fora recebido por este com alguma secura, até que mencionou saber das intenções de uma expedição à África. O tratamento mudou e ele foi convidado a fazer a viagem.

O presidente da Comissão Central Permanente de Geografia informou-lhe que já havia pensado em outro oficial para o trabalho, Hermenegildo Capello. O assunto da expedição esfriou por um tempo, passando-se mesmo alguns meses, e tanto ele quanto Capello já não acreditavam mais na possibilidade de se concretizar até que a verba de 30 contos foi votada no Parlamento. Convocado, tinha um mês para preparar a expedição. Quando foram providenciar os materiais que precisariam, não encontraram nada pronto. Tiveram que encomendar todos os acessórios para a viagem.

Lendo as narrativas de outros exploradores, notou que não se ocupavam com os preparativos destas. Propôs-se, então, a escrever sobre isso, mencionando os objetos que foram úteis e quais não.

 

Segundo ele, o governo pretendia que estudassem as relações hidrográficas entre as bacias do Congo e do Zambeze, e os países compreendidos entre as colônias portuguesas de uma a outra costa da África Austral. Reconhece que a pretensão é maior que a capacidade de uma só expedição, bem como pelos poucos recursos disponíveis.

 

Em 06 de Agosto de 1877 chegam a Loanda. Preocupava-se com a bagagem, que já era grande e ainda seria aumentada com fazendas, missangas e outros gêneros que seriam moeda no sertão. Nos livros de viagens lera a dificuldade de se conseguir carregadores em bom número. Um problema que, aliás, viverá com muita regularidade.

Partiu, então, para o sul de Benguela, para tentar consegui-los. Como não confiava nas gentes com que acertaria, lembrou-se de pedir ao governador certo número de soldados, que fossem a escolta de vigia. Este mandou saber se havia nos regimentos quem os quisesse acompanhar, já que não sendo um serviço regular, não podia obrigá-los a irem.

Certas curiosidades sobre os carregadores lhe chamam a atenção. Os bihenos iam muito longe em suas andanças, mas só viajavam do Bihé ao interior. Só iam ao litoral quando queriam. Os bailundos alugam seus serviços entre a Costa e o Bihé, não indo ao interior para o leste, mas apenas ao norte.

Momentos houve, na viagem, que tinham mais cargas que carregadores. As vezes teve que abandonar cargas. Destruía o que não era levado, pois se deixasse os carregadores aproveitarem algo, teria problemas. Sempre haveria alguém deles doente, obrigando-o a abandonar cargas para se retirarem dali objetos para uso próprio, organizando um roubo permanente. Conselhos de Silva Porto, o velho sertanejo que o ajudava com sua experiência e logística, enviando-lhe algumas cargas, em certos momentos.

 

Busca fazer uma descrição de Benguela. Procura observar as construções, a organização das ruas e praças. Nota quais gêneros agrícolas são produzidos, particularmente se são europeus. Os principais produtos do comércio são a cera, o marfim, a borracha e a urzela (líquem que serve de corante) que chegam a cidade trazidos pelas caravanas do sertão, algumas dirigidas por agentes das casas comerciais, outras compostas por filhos da terra.

Descrevendo as localidades, acaba fazendo o juízo de valor dos naturais e, até, as vezes, de brancos já adaptados à região. Falando do exército das colônias, diz que este é mau, porque o preto seria mau soldado, ao passo que o português é bom. Entretanto, até os brancos que aí servem saem piores que os pretos. Deportados por crimes na Europa, confiam-lhes o posto de soldados. A segurança nas mãos de homens de passado duvidoso.

Considera a possibilidade da “degeneração” do branco europeu ao contato com o africano. Cita os Böers do Transvaal que, europeus de origem, em um século perderam tudo de civilização que trouxeram da Europa, sendo vencidos pelo elemento selvagem do meio em que viviam. Se são europeus pela cor e pela religião cristã, são bárbaros pelo costume.

 

No histórico que faz do Bihé também é possível depreender as maneiras como enxerga o africano. Para ele, os bihenos são pouco industriosos e pouco agricultores, sendo o trabalho feito pelas mulheres, que cultivam a terra. Os homens são dados a viajar. Vão traficar nos sertões marfim e escravos. As comitivas levam crianças com cargas proporcionais as suas forças. Apesar dessa qualidade, do hábito de viajarem, possuem grandes defeitos. Diz não conhecer outros que sejam tão viciados, depravados, cruéis e hipócritas.

Não possuiriam menor idéia de religião (como a entende Serpa). Não adoram o sol nem a lua, vivendo com seus feitiços e adivinhações. Parecem acreditar na imortalidade da alma ou na sua perturbação quando não cumprem certos preceitos em favor do morto.

Acredita que os africanos, ao contato com o europeu, possam modificar seus hábitos, civilizando-se.

 

A alimentação deste povo é quase toda vegetal. Raramente matam um boi. Vez ou outra um porco. Comem toda carne que encontram, preferindo-a em estado de putrefação. Não os considera positivamente canibais, apesar de comerem, de tempos a tempos, um bocado de homem cozido. Seria altamente ladrão, furtando sempre que lhe surgisse ocasião. Entretanto, fora de seu país, não roubaria e, como carregador, respeitaria a carga.


Procura atentar para os produtos europeus possíveis de cultivo na região, bem como características da população e formas de governo.

 

Alguns Quimbares que ele julgava semi-civilizados juntaram-se aos Quimbundos na disputa de restos mortais de um animal, para horror de Serpa Pinto, que comenta o fato. Às vezes pensa que é absurdo civilizar o negro na África. Acha que é preciso, para cada preto, a presença de um branco, para se realizar esse sonho de alguns espíritos elevados europeus, que acreditam nisso. Assim, se poderia equilibrar e vencer o elemento selvagem. A despeito de considerar a possibilidade de civilização dos africanos, as vezes duvida, pelo que se depreende.

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