quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Fédon, de Platão

            Organizado como um diálogo, o Fédon, de Platão, trata de um assunto que faz parte (ou já fez) das cogitações de todo ser humano: a existência e sobrevivência da alma após a morte do corpo. Trazendo-nos aqueles que seriam os últimos instantes de Sócrates, Platão desenvolve seu argumento favorável a essa possibilidade, utilizando-se na figura de seu mestre, que nada escreveu. Estudiosos do tema vislumbrarão com mais clareza, no texto, em quais momentos teremos o pensamento de um ou outro. Em nossas análises, contudo, teremos em mente o famoso “só sei que nada sei” de Sócrates, uma postura intelectualmente mais aberta às possibilidades do conhecimento e de revisões de pontos de vista, portanto não dogmática, senhora de certezas absolutas. No texto, surgem momentos onde Sócrates defende algumas idéias com muita convicção, sendo, assim, um comportamento que não condiz muito com aquele que defende a “certeza da incerteza”. Dessa forma, teremos, em verdade, a “voz” de Platão na defesa de suas crenças.

            A obra começa a partir de um diálogo onde Equécrates solicita a Fédon que lhe narre os últimos momentos de Sócrates, uma vez que a ele estivera presente. A demora entre o julgamento e a execução chamam a atenção daquele que estava ansioso por informes. Em função de uma tradição local, o envio de um navio à cidade de Delos, não se podia executar ninguém, esperando-se pelo retorno deste. A primeira impressão que Fédon transmite a Equécrates era a do estado de espírito de Sócrates, que longe de estar angustiado pela situação, encontrava-se feliz, como se fosse, efetivamente, encontrar no além uma felicidade incomum. Por outro lado, os que estavam presentes oscilavam entre a alegria e a tristeza. Platão, aliás, não se inclui em sua narrativa, entre aqueles que vivenciaram o momento. Diz, através de Fédon, que estava doente. Não somos daqueles que duvidam da capacidade do ser humano em superar seus desafios, mantendo uma postura de coragem moral incomum em momentos críticos da existência. Não sabemos em que medida Platão exagera ou não nas tintas que usa para pintar o estado de ânimo de Sócrates nestes momentos decisivos. 

            As conversas com Sócrates desenrolam-se na prisão. Sabendo do retorno do navio considerado sagrado, no último dia seus amigos chegam para o encontro mais cedo. E o homem (idealizado por Platão?), pelo relato, parece que não perdia ocasião de discutir e ensinar algo. Uma vez livre dos grilhões que lhe atavam a perna, chama a atenção para uma relação que existiria entre o prazer e a dor, que não são simultâneos no homem, mas que se sucedem um ao outro. No caso, parece-nos que o prazer advém da ausência da dor, representado no alívio que se sente.

            Cebes, um dos presentes, recordando-se subitamente de que Sócrates vinha a algum tempo musicando os contos de Esopo, pergunta-lhe com que intenção o fazia, uma vez que várias pessoas o questionaram a respeito, inclusive um poeta chamado Eveno. Sócrates pede-lhe que responda ao poeta que não desejava lhe fazer concorrência e que fizera os versos em função de repetidos sonhos que o exortavam a compor músicas, tendo obedecido por escrúpulos religiosos e na intenção de desvendar seus significados. O desejo de atribuir significados aos sonhos não é exclusivo dos contemporâneos de Sócrates. Situações pouco racionais (sofrer perseguição de insetos gigantes), encontros com pessoas que morreram, sonhos com números (para quem gosta de jogos) que viram resultados em jogos do bicho, por exemplo, intrigam a muitos, ao ponto de termos publicações que pretendem tratar de significados de sonhos, como se isso pudesse ser catalogado e classificado mecanicamente.

            Sócrates pede, então, que transmitam essas informações a Eveno, além de um conselho bem intrigante: se ele for sábio, que lhe siga as pegadas o mais rápido que puder, mas sem fazer violência a si mesmo, porque não seria permitido. Cebes se dá conta do paradoxo e questiona de que maneira se pode seguir alguém que vai morrer e não fazer violência a si mesmo. Diante disso, Sócrates (ou Platão?) defende que existe, para todos, uma necessidade de viver e a vida seria uma espécie de prisão, de onde não seria permitido evadir-se. Os seres aí presos seriam de propriedade dos deuses. De que maneira se daria essa necessidade de viver e como demonstrar o “título de propriedade” dos deuses não é dito.

            Cebes acha estranha a facilidade com que os filósofos aceitam a morte, afinal, se os homem encontram-se sob a guarda das divindades, os homens sensatos deveriam se aborrecer com a morte, porque seriam privados da presença delas. Símias, outro presente ao diálogo, concorda com a observação e acrescenta que ela se dirige a Sócrates, que para ele, não parece se importar muito em abandoná-los. Sócrates defende que cometeria erro sim, ao não se irritar com a morte, se não possuísse a certeza[1] de que, depois dela, se encontrará ao lado dos deuses e de outros homens que já morreram. Acredita que existe algo após a morte que é melhor para os homens bons que para os maus, o que, de certa forma, condiz com certas tradições religiosas do pensamento grego, como os mistérios de Elêusis. A morte, assim, não o afastaria da presença dos deuses, os seus donos, segundo acredita.

            Aquele que se dedica à filosofia, segundo Sócrates, tem como preocupação central preparar-se para morrer, sendo, por isso, estranho que se irrite diante da morte. Afirma que ela não seria mais que a separação da alma do corpo, no que Símias, a princípio concorda. O filósofo deveria ter, no seu entendimento, uma postura de afastamento dos prazeres ditos corporais, que lhe facilitaria esse preparo. Entretanto, como mencionado em um momento do curso[2], em outra ocasião (na obra o Banquete) é apresentado um Sócrates que valoriza certos aspectos destes prazeres, como, por exemplo, o das boas vestimentas. Viver com o pensamento na morte não nos parece uma escolha acertada. Que se considere a morte como possibilidade de qualquer momento, sim, sem dúvidas. É a certeza que se tem. Começamos a morrer desde que somos gerados. Morremos um pouco todo dia. Essa preocupação com a morte que virá um dia não “engessaria” as pessoas, dificultando-lhes o viver? Quem estivesse presente ao diálogo e quisesse “provocar” Sócrates poderia questionar-lhe se a atitude de desejar a morte não seria uma espécie de rebeldia diante dos desígnios dos deuses, que o tem num corpo de carne. Se está vivo, é porque esses deuses quiseram assim.

            O corpo, na exposição de Sócrates, é apresentado como um empecilho na aquisição da sabedoria, uma vez que as sensações corporais são limitadas. Raciocinando, distante do corpo, a alma conseguiria apreender melhor aquilo que deseja. É trazia a cena, por Platão, a teoria das idéias, manifestada em formulações como: “O justo em si mesmo”, “o belo em si mesmo” e “o bom em si mesmo”. Este “em si” seria pensar cada uma destas coisas elas são, a realidade delas. Para a apreensão dessa realidade plena, em si mesma, seria necessário recorrer-se ao pensamento, sem o auxílio dos sentidos corporais. Dessa maneira, conseguir-se-ia maior sucesso. Só se consegue alcançar o conhecimento dos seres em si mesmo por intermédio da alma em si mesma. Para tanto, só conseguiremos quando a alma esteja apartada do corpo, quando ela existirá em si mesma, o que só é possível ocorrer depois da morte. A idéia da imortalidade da alma é necessária para sustentar esta teoria e, como veremos, no entendimento de Platão (pela fala de Sócrates) ela justifica essa sobrevivência da alma.

            Diante disso, Cebes apresenta sua primeira objeção. A alma, efetivamente, sobreviverá após a morte do corpo? Sobreviveria como uma individualidade pensante? Respondendo-lhe, Sócrates questiona se não é no Hades que se encontram as almas dos defuntos, sendo de lá que elas voltariam, renascendo. Assim, se dos mortos nascem os vivos, as almas devem ir para lá depois da morte. Interessante que o argumento não prova coisa alguma, partindo de uma concordância de Cebes, que seria um ponto comum nas idéias dos dois, apenas relembrada por Sócrates. É estranhável, partindo de alguém que há instantes atrás não considerava, ou não levou em conta, essa possibilidade. Esta idéia também remete a forma de pensar dos gregos de então, em termos de circularidade, onde uma coisa daria origem à outra e não um surgimento do nada, organizado linearmente. Para Sócrates, se algo não surgisse do seu contrário, em algum momento elas se imobilizariam em uma extremidade (pensando em termos lineares), deixando o outro extremo vazio. Recordo-me, neste momento, das idéias que se vendem sobre o fim do mundo. Evidentemente ocorrerá, porque é material. Mas parece haver certa ansiedade de se viver esse momento. Diversas vezes se disse que estava para acabar e não acabou. A virada para o ano 2000 certamente aterrorizou muita gente que, desde pequena escutava dos antigos que “a 2000 chegará, mas de 2000 não se passará”. Não é incomum que sejam mencionados casos de suicídio por conta disso. A mais recente notícia do fim do mundo daria conta de que este acabará em 2012, segundo um calendário Maia. Esquece-se, entretanto, que esta sociedade também pensava em termos de circularidade, ao final sucedendo-se um novo começo, não em termos de final absoluto, linear, como a mentalidade da grande maioria de nós está acostumada a organizar a vida.

            Aprender seria recordar-se, uma vez que em algum momento anterior teríamos aprendido aquilo que presentemente recordamos. Foi Cebes quem lembrou disso! Partindo dessa referência, Sócrates defende que se pode ter uma recordação de algo “ativada” através de uma imagem diferente, como por exemplo, a de um objeto que lembre uma pessoa. A recordação, assim, poderia partir de um semelhante como de um diferente. Os seres verdadeiros seriam as idéias eternas e os objetos materiais não seriam outra coisa senão a imitação pobre daquelas. Para se conhecer algo (relembrar) é necessário que se tenha conhecido as idéias em si antes de entrar no corpo. A despeito de serem muito criticadas, anteriormente, por suas limitações e possibilidades de gerar enganos, as sensações surgem-nos, agora, como o veículo necessário para se perceber as semelhanças dos objetos materiais, que estão à volta, com as idéias em si, apreendidas antes. Através dos sentidos, revivem-se os conhecimentos.

            Símias e Cebes dão-se por satisfeitos com a demonstração de que a alma existe antes do nascimento, mas o primeiro questiona se ela continua a existir depois da morte, uma vez que isso não fora provado ainda. Sócrates, então, retoma aquela idéia de que tudo o que vive nasce do que é morto, argumento aceito por ambos anteriormente e que, em última análise, não prova coisa alguma. Buscando aprofundar mais o assunto, adensando seu argumento, conduz sua reflexão deles quais seriam as coisas suscetíveis de decomposição e em quais isso não ocorreria. Os seres que se conservam imutáveis seriam aqueles não sujeitos à decomposição. Retomando a linha argumentativa da teoria das idéias, dela se utiliza para questionar se o belo em si, o igual em si, em última análise, a realidade em si mesmas, são passíveis de modificações. Cebes considera que se conservam da mesma maneira. Os seres dessa realidade (em si) só seriam captáveis pelo pensamento. Sócrates, então, propõem duas espécies de seres, uma visível e outra invisível, sendo que os primeiros não conservam sempre sua identidade, ao passo que os segundos sim. Seríamos constituídos de alma e corpo, a alma sendo invisível e o corpo visível. A alma, no seu entendimento, teria mais semelhança com o divino e o corpo com o mortal. Continua não provando nada, repassa, com pequenos desenvolvimentos, a argumentação já utilizada.

            Sócrates alonga-se ainda em considerações sobre como seria a realidade das almas boas ou más, trazendo a idéia da metempsicose, ou seja, da possibilidade da alma humana renascer em corpos de animais, de acordo com a vida que tenha levado no mundo. Pinta-nos com tintas tão vivas que parece ter visitado e conversado estas almas. Enquanto isso, Cebes e Símias conversam, tentando “digerir” aquilo que fora exposto até então, sendo Símias o primeiro a externar sua insatisfação com o exposto.

            Para ele, as provas não foram satisfatórias. Utilizando-se das imagens de uma lira e a harmonia, sugerindo que a harmonia é invisível, incorpórea e divina (como a alma), ao passo que a lira é corpórea, terrena, ligada, por semelhança, ao mortal. E quando a lira fosse destruída, o que seria da harmonia? A alma como harmonia, então, seria como a saúde do corpo, parte integrante deste. Cebes concorda que a alma exista antes do nascimento, mas não consegue admitir que depois da morte ela subsista. Admite que a alma seja mais durável que o corpo, entretanto, o corpo, cuja natureza é mais frágil, subsiste ainda por algum tempo depois do fenômeno da morte. A alma, durante a vida, renova sua vestimenta (o corpo) diversas vezes. Considera Cebes que na morte, com a última vestimenta, a alma possa ser destruída. Em outras palavras, pelo que apreendemos, acredita que em algum momento nestes renascimentos múltiplos, a alma também sofra desgaste e pereça no instante da morte do último corpo.

            Eis que Sócrates lhes responde. Propõe a Símias que modifique sua opinião, pois que este não poderia afirmar, ao mesmo tempo, que a harmonia existe antes dos elementos que a compõem, uma vez que antes admitira que a alma existia antes de nascer. Assim, ela não poderia ser um atributo do corpo. Adensando ainda mais sua defesa, Sócrates questiona que, se a alma é harmonia, como se explicaria a virtude e o vício que se encontram nas almas? Se fosse harmonia, elas seriam uniformes, para alguma das duas possibilidades (virtude ou vício), porque decorrentes do corpo, um efeito material. Simplesmente retórica. Novamente utiliza-se de noções anteriormente aceitas sem questionamento por parte de seus interlocutores, qual seja, o de que a alma existe antes do nascimento.

            Para responder Cebes, que deseja a demonstração da indestrutibilidade da alma, bem como sua imortalidade, Sócrates lança mão, com vigor, da teoria das idéias. A idéia em si não admite possuir naturezas contrárias (não pode ser pequeno e grande ao mesmo tempo). Em outros termos, as coisas não admitem ser o seu próprio contrário. Tomando essa referência, propõe uma série de questões a Cebes, colocando, como resposta, que o contrário da vida seria a morte. O que não admitiria a idéia da morte, para ele, seria imortal. Se a alma não admite a idéia de morte, logo é imortal. Se o imortal é indestrutível, a alma não poderia ser destruída. Assim, a alma sobreviveria ao fenômeno da morte. Novamente uma resposta retórica, que não traz nenhuma prova concreta, apenas desdobrando argumentos a partir da teoria das idéias.

            Como se relacionaria Platão, nos dias de hoje, com os relatos de quase-morte[3] onde pessoas descrevem o que seria o ambiente que visualizaram no “mundo dos espíritos”, ou aquelas de regressão de memória[4], onde o indivíduo lembrar-se-ia de detalhes de suas outras vidas? Como enxergaria a transcomunicação instrumental[5], que estuda as supostas comunicações dadas por aqueles que já teriam morrido através de aparelhos eletrônicos, como televisores, rádios e até telefones? Estes estudos, certamente, revestem-se (ou pretendem) um caráter mais científico em suas abordagens e metodologias para constatarem ou não a sobrevivência do espírito e a reencarnação. Será que usaria estas informações para tentar convencer os Símias e os Cebes modernos?  De nossa parte, a despeito de acreditarmos nisto, não ficaríamos convencidos com a argumentação proposta por Platão, através do discurso de Sócrates.

           

           



[1] E o só sei que nada sei?

[2] Evolução do Pensamento Filosófico e Científico, 2°/2009.

[3] Mais informações no site do Instituto de Pesquisas Projeciológicas e Bioenergéticas: http://www.ippb.org.br/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=2662. Acessado em 09/11/2009.

[4] Mais informações no site Fórum Espírita: http://www.forumespirita.net/fe/off-topic/entrevista-ao-dr-brian-weiss/ . Acessado em 09/11/2009.

[5]  Mais informações no site: Transcomunicação.net: http://www.transcomunicacao.net/ . Acessado em 09/11/2009.

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