quarta-feira, 9 de julho de 2008

Hospital (Municipal / Geral) do Andaraí


Os servidores municipais que trabalhavam no Hospital do Andaraí foram lotados, no fim do mês passado (junho 2008) em outras unidades de saúde da Prefeitura. Todos sabemos do caráter político desta medida. Em 2005, foram denunciadas as condições sofríveis das unidades de saúde do município, acontecendo uma intervenção do governo federal que, dentre outras medidas, retomou para si os hospitais que foram municipalizados a uns anos atrás, dentre eles a unidade de que estamos falando. Como se a saúde nas outras esferas de poder (Estado e Governo Federal) estivessem em melhores condições. Quem viveu a transição, a experiência das duas gestões distintas, pode notar problemas em ambas, com algumas pequenas variações. Tanto nesta saída de servidores quanto na transição em si, não foram Lula ou César Maia os mais prejudicados. Foram a população que precisa dos serviços da unidade (que suspendeu cirurgias eletivas por conta da saída dos profissionais) e os servidores, pela abrupta necessidade de trocarem de local de trabalho, como se seres humanos não fossem dotados de sentimentos, não criassem laços com o local, como se fossem móveis que se colocam em caminhões de mudança e se levam para outros lugares.

Foi uma experiência incrível. Quando comecei, numa sexta-feira 13, do mês de junho de 2003, não imaginei que fosse me envolver tanto com o serviço, o lugar e as pessoas. Acreditava que teria uma relação impessoal, meramente profissional. O serviço, incialmente era desafiador. Lidar com a quantidade de prontuários do Arquivo Médico e os problemas inerentes ao serviço público em si (carência de materiais e espaço físico adequado) não foi nada fácil, pelo contrário, foi muito cansativo e até gerou prejuízos à saúde. Mas estas foram as marcas de um bom combate. Fazer parte da equipe do Arquivo Médico do Hospital do Andaraí foi importante na minha formação enquanto ser humano.

As cobranças do Luiz Carlos e da Lila muitas vezes foram mal toleradas, gerando até atritos. No entanto, com a convivência com eles, pudemos notar um sentimento que não é muito comum no serviço público: o compromisso com a tarefa. Luiz Carlos, famoso por seus rompantes de idéias e mudanças de móveis do lugar (foram tantas arrumações da sala que eu já perdi a conta - acho que até ele perdeu!) sempre se esforçou para oferecer um "serviço de excelência" (para usar da sua expressão). Tem a vantagem de contagiar os outros com o seu esforço, porque, diferente de outros chefes, coloca a mão na massa, ordena, mas participa na execução do labor. A Lila, com os seus boletins e prontuários para laudos, sempre se esforçou para ajudar as pessoas que procuravam o serviço, realizando suas investigações com dedicação. Trabalhar com a dona Rosa, a Marta, com sua língua afiada e sua fala aguda enriqueceu nosso olhar crítico com relação aos problemas existentes no âmbito do setor público. Todos estes foram pessoas maravilhosas e importantíssimas que, seguramente, estão marcadas e presentes para sempre em nossas vidas.

O trio da Rufolo, Ítalo, Leandro e Gustavo mostrou qualidade também, a despeito da caligrafia de alguns deles, que lembra bastante hieróglifos egípcios. A presença dos Aspiras, apesar da nossa pouca convivência, também será lembrada com carinho. As vezes, na tentativa de os deixar a vontade, provavelmente cometemos exageros nas brincadeiras (que eram muitas com todos)... os apelidos que ficaram são marcantes: Monstro, Monstrinho, Pachequito, Shrek, Já Morreu, Fraqueza, Bob Esponja (não falarei a quem se referiam eles).

A presença de Fabiana e do Luiz Alberto, num momento em que o Arquivo se ressentia da crise de 2005 foi importantíssima para que o nível de qualidade fosse mantido, a despeito de eventuais rítmos de trabalho diferente entre as pessoas. A Cristiane, com sua versatilidade no serviço, suas participações nos debates de idéias comuns no setor,  além de sua boa vontade em auxiliar a quem estava "atrapalhado" com o volume de serviços, fruto de sua amizade sempre presente, foi figura igualmente importante nesse concerto. O núcleo que deu origem a SLISH, Gabriel, Eduardo, Guerreiro e eu foi um grupo, dentro de outro, que funcionou de maneira peculiar. Houve entrosamento quase que de imediato entre as partes e uma amizade que se estenderá para sempre começou a nascer. Quatro mundos diferentes, quatro realidades distintas, diferenças respeitadas, discussões de alto nível intelectual (sobre os mais variados assuntos) foram a solda que uniu esse grupo, acrescido com qualidade pela Fabiana e o Luiz Alberto, legado de amizade que teremos para sempre.

A despedida não foi fácil... Acredito que havia uma tensão natural em todos nós, pensando como ela seria... no prédio onde trabalhávamos, numa quarta-feira, eu, Eduardo e Fabiana percorremos os setores nos despedindo daquelas pessoas com quem convivemos quase diariamente... pessoas que, inicialmente, tivemos dificuldades de relacionamento, mas que, com a convivência, fomos conhecendo e criando laços. Havia um traço de emoção em todos os rostos que cumprimentamos... recomendações de sucesso e felicidade no novo local de trabalho, que fôssemos visitar algumas vezes e até uma pequena refeição numa festa junina organizada pela Darquel (do ambulatório de Ginecologia) deram o tom destes instantes. Mas o principal foi a sensação do dever cumprido, de ter feito o melhor que estava ao nosso alcance para que o Hospital (e as pessoas) fosse promovido, ganhasse com o nosso suor.

É com nostalgia (porque as despedidas não são fáceis), mas é também com imensa alegria, por tudo aquilo que nos acrescentou, que nos lembramos do HGA ou HMA, de todos nós Hospital do Andaraí!

Uma Tragédia Francesa



No seu livro “Uma Tragédia Francesa”, Todorov nos apresenta a experiência de uma pequena cidade, localizada quase no centro geográfico da França, chamada Saint-Amand, na época da ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. Ela encontrava-se sob o poder, em 1944, da milícia ligada ao governo de Vichy (centro do governo da França ocupada). Setores da resistência começaram a se articular para tomar a cidade, aproveitando-se da data do desembarque das tropas Aliadas que estava em vias de ocorrer. Os resistentes obtiveram sucesso, mataram alguns milicianos e prenderam outros. A cidade festeja a libertação, mas a alegria inicial é sucedida pela preocupação. Eles perceberam que outras cidades não acompanharam o movimento e, diante de aviões alemães, que faziam o reconhecimento aéreo da região, resolveram bater em retirada, levando junto alguns reféns, um grupo composto por milicianos e algumas mulheres que tinham alguma relação com eles, destacando-se a esposa do secretário-geral da milícia de Saint-Amand, ausente dos acontecimentos.

A reação não se fez esperar. Com o retorno de Francis Bout de l’ An (o secretário-geral), precedido pelas tropas alemães que lhe abrem passagem, a repressão acontece. Pessoas são mortas, dentre os quais alguns resistentes armados e outros são presos. A vontade é de se arrasar a cidade, mas existem reféns dos dois lados. O prefeito da cidade, René Sadrin e alguns outros se articulam pela libertação dos reféns de ambas as partes e assumem o papel de negociadores. Com isso imaginavam poupar a cidade da ameaça de destruição que pairava no ar, por conta da atitude dos resistentes. Esse grupo de negociadores era visto com desconfiança pelos dois lados. As negociações não são fáceis porque as partes não possuem confiança uma na outra. Avanços e recuos se verificam, e os negociadores, que estavam constantemente colocando suas vidas em riscos nas estradas, começaram a ser tomados pelo cansaço e desânimo, mas enfim, conseguem cumprir seu objetivo. As mulheres que estavam como reféns dos resistentes são soltas e todos os reféns dos milicianos também.

De um lado, alguns setores da resistência entram em confronto com tropas alemãs e levam a pior, com alguns morrendo e outros sendo presos. No lado dos milicianos se verificam igualmente perdas, com a morte dos reféns do sexo masculino que se encontravam com os resistentes. Essas baixas são o gatilho para o extravasamento do ódio antisemita de Joseph Lécussan, chefe miliciano e depois subprefeito de Saint-Amand. Como todo “bom” antisemita, coloca a culpa do episódio nos judeus, que no seu entender financiavam a resistência. Organiza, então, a captura de grande número de judeus, mas muitos destes fogem avisados por funcionários da prefeitura simpatizantes da resistência. Decide-se pela morte e alguns destes são assassinados numa fazenda abandonada, dentro de poços sem uso.

A leitura de sua obra é fácil e agradável quando já se conhece os elementos que compuseram a história do período, como por exemplo, os diferentes grupos de resistentes que foram unindo-se no tempo. No entanto, para quem é pouco familiarizado com os matizes do evento, pode-se, com qualidade, contar com as explicações que o autor se preocupa em fornecer, como a trajetória de união desses diferentes grupos de resistentes, uma definição do que seriam os maquis e a descrição das milícias. Como se trata de uma história com muitos personagens, acredito que o leitor possa fazer anotações, tanto dos personagens quanto a respeito de suas filiações aos diferentes grupos (resistentes, milicianos e população civil). Podemos dizer que o livro é um pouco factual, sem querer, com isso, desmerecer seu trabalho porque, entremeando sua narrativa, Todorov faz análises, comentários e assume posicionamentos muito interessantes, porque podem ser considerados muito ousados ou mesmo comprometedores do trabalho. Estou falando dos julgamentos que ele faz dos personagens e suas ações, assunto que trataremos mais adiante.

O seu é um tema difícil para os franceses. Trata-se de uma ferida aberta, mal curada no seio de uma coletividade. É encarado mesmo como uma tragédia, conforme o nome que o autor escolhe para o seu livro. A maneira como se depara com o tema é sintomática dessa dificuldade de se lidar com esse passado. Todorov freqüentava, há vinte anos a região que fora palco dos acontecimentos que tratou na sua obra e nunca ouvira falar dele. Deparando-se com uma notícia no jornal, que dava conta desses eventos, começou, a partir daí, a fazer sondagens com as pessoas que o cercavam e, aos poucos, foi mapeando informações e materiais que começava a levantar. Ele usa como fontes o relato do prefeito da cidade na ocasião (acima citado), coletâneas com depoimentos, teve acesso a fotos, lista das vítimas, relatos de diferentes atores (desde resistentes até milicianos, passando pelas vítimas), estatísticas, semanários e diários regionais, trabalhos gerais (historiografia), entrevistas, documentos de arquivos departamentais e nacionais. 

Sua obra consegue abarcar os diferentes assuntos que são tratados pelos estudiosos do período, com a vantagem de nos mostrar a experiência de pessoas comuns, do povo, ao invés de homens de gabinete, numa história que não enxergaria somente as lideranças. O microcosmos de Saint-Amand, de certa forma, nos ajuda a compreender o período da ocupação alemã na França.

Assim, o primeiro assunto que nos chama a atenção é o caráter de guerra civil. A guerra contra os alemães dava-se num segundo plano. Eram franceses contra franceses que ocupavam a cena principal, com o detalhe: os homens que se combatiam eram da mesma cidade, muitas vezes vizinhos ou indivíduos que cresceram juntos, viveram experiências semelhantes, mas que naquela situação estavam em lados opostos. Milicianos e resistentes se odiavam mutuamente, desejavam e trabalhavam pela eliminação um do outro. O livro está repleto de situações onde a falta de experiência militar é evidente, de ambas as partes, afinal, não eram militares de carreira, eram civis, muitos jovens que nem sempre cerravam fileiras por questões ideológicas. A tentativa de fugir ao STO (Serviço de Trabalho Obrigatório) na Alemanha forneceu contingentes para os dois lados.

Na resistência, como foi mencionado, existiam diversos grupos que às vezes rivalizavam entre si e que, gradualmente, foram sendo unificados, existindo, como Todorov bem faz notar, disputas pela hegemonia nas ações. Grosso modo, ele divide-os em comunistas e não comunistas. Os primeiros conseguiram se apoderar das instâncias nacionais e os segundos conseguiram se fazer ouvir através dos representantes da França Livre, do exterior do país, com Charles de Gaulle. Concorreu, valorosamente, para a unificação dos grupos, a figura de Jean Moulin, que ajudou a resistência interna a se articular com a externa. É evidente que as filiações iniciais vão pesar na preferência dos indivíduos e mesmo o fato de terem uma causa comum não impedirá um maquis de roubar armas de outros, como demonstra o caso dos FTP, que nosso autor menciona.

Os milicianos são bem apresentados na obra como a polícia política e militar, originada do Serviço de Ordem Legionária (Legião era uma organização petainista de ex-combatentes). Estes declaram guerra aos resistentes, a quem prendem, torturam e matam, ou os entregam à Gestapo, que faz a mesma coisa.

A população civil é observada pelo nosso autor com duas atitudes. A primeira é a da passividade. Esperar o destino refugiada em si mesma, na resignação ou na indiferença. Às vezes retirando vantagens do sofrimento dos outros. A segunda é uma atitude dinâmica, do indivíduo que se mobiliza para socorrer a quem precisa. Na população civil temos, de maneira evidente, a idéia de massa cinzenta, de Pierre Laborie. Não é branca nem preta, mas as duas coisas ao mesmo tempo. Ora pendendo para um lado, ora para o outro, dependendo das circunstâncias. No livro, observa-se que Todorov chama a atenção dessa atitude ambígua na empolgação de alguns para punirem os milicianos, seja no momento em que a cidade é libertada pelos resistentes, seja no momento da chegada das tropas aliadas. Essas pessoas, com a sede de punição que demonstravam, pareciam querer marcar bem a posição de contrárias ao regime que caiu, para que os outros assim notassem, numa tentativa de apagar, conscientemente ou não, seu posicionamento anterior, de simpatia pela milícia, ou mesmo de indiferença. Essa população civil também sofreu as conseqüências das escolhas dos resistentes (os reféns que estes fizeram). Não só ai, mas durante o conflito maior (onde Saint-Amand estava inserida) que foi a Segunda Guerra Mundial, essa população arcou com a pesada carga de dores, com muitas cidades inteiramente destruídas e parcelas significativas da população dizimadas.

Dessa população civil, nesta obra, se destacam sem dúvidas as figuras dos negociadores, de um camponês pobre que deu guarida a um judeu fugitivo e as mães judias que se declararam sem filhos para preservarem suas crianças. As mães pagaram com a vida para que os seus filhos não fossem descobertos. O camponês colocou-se em risco (e a sua família) para dar proteção ao fugitivo. Naquela altura, quem escondesse um judeu e fosse pego sofria o mesmo que o fugitivo. Os negociadores se expuseram aos perigos de viagens desgastantes por estradas perigosas, cheias de milicianos ou resistentes armando emboscadas, com o objetivo de livrarem os reféns dos dois lados. Digno de nota é a figura de Bernard Delalande. Ele fora um dos negociadores que, depois de alcançado o objetivo a que se propunham, procurou ainda salvar outras vidas, como a de alguns judeus (o único dos negociadores que o fez) e, depois da guerra, ainda prestou depoimentos favoráveis a alguns milicianos.

 O sentimento antisemita, muitas vezes atrelado ao anticomunismo, estava presente nessa sociedade. Ele não eclode junto com os conflitos, é anterior a eles. É o que muitos autores chamam de “Vichy antes de Vichy”. No que respeita ao antisemitismo, temos como evidencia de sua presença anterior, o caso Dreyfus, do oficial judeu injustamente acusado de traição no final do século XIX. Outro elemento que invocamos é a presença da ação Francesa, organização que surgirá também no final do século XIX, de extrema direita, antisemita e xenófoba, que publicará um jornal para divulgar essas idéias. Além disso, o Estado de Vichy toma uma série de atitudes, que vão da publicação de leis claramente antisemitas até a realização de recenseamentos dos judeus, que serão fundamentais para a perseguição movida a esse grupo. 

O tratamento dispensado às mulheres também chama a atenção. As que se tornaram prisioneiras dos resistentes não eram criaturas ideologicamente ligadas à causa, antes eram namoradas dos milicianos. A preferência amorosa ao inimigo, naquele contexto de confronto masculino, já é, no entendimento de Todorov, um crime em si. Depois da libertação, com a caça às bruxas, as mulheres que tiveram casos com alemães, na França, sofreram humilhações, tinham suas cabeças raspadas para que ficassem marcadas e fossem reconhecidas nas ruas. Em Saint-Amand isso se passou também. Esse processo tem menos haver com o colaboracionismo. Diz respeito, segundo algumas correntes historiográficas, com a autonomia sexual que as mulheres ganharam nesse período. Pode ser um traço do conservadorismo anterior à ocupação alemã.

No seu livro, Todorov menciona que a alimentação era um problema para a população. Cada boa refeição os impressionava, o que é verificado nas memórias redigidas pouco depois dos eventos. Paradoxalmente, salta às nossas vistas a referência aos fazendeiros, que ganharam dinheiro com o aumento dos preços dos produtos da terra. São aqueles setores da população que, da dificuldade da vida dos outros, tentam auferir para si benefícios.

No seu prefácio, Todorov declara que o seu relato é exemplar. No epílogo, no subtítulo que leva o nome do livro, diz que a libertação é mais exemplar que excepcional. Sem dúvidas, conseguimos perceber que ele está trabalhando com os usos que se faz da memória, construindo pontes com as reflexões que produziu numa outra obra chamada “Los abusos de la memoria”, texto apresentado pela primeira vez no Congresso “História e memória dos crimes e genocídios nazistas” no ano de 1992, anterior a “Uma Tragédia Francesa”. Neste texto, defende a exemplaridade da memória, ao invés do seu uso literal. Com isso deseja que os eventos sejam comparados entre si e se verifiquem as semelhanças e as diferenças, a fim de que as experiências difíceis do passado não “ressurjam” no presente.

Falando de memória, se observa igualmente, no transcorrer de seu trabalho, o intenso diálogo que estabelece com ela, apresentando as disputas que os diferentes grupos sociais travam para terem as suas versões como a verdade dos fatos. A memória da resistência é comentada no epílogo, onde alguns tentam fazer com que a libertação de Saint-Amand datasse de 06/06/1944, no dia do desembarque dos aliados, o que pela leitura da obra verificamos ser falso. Quando o comandante François, chefe das FFI (Forças Francesas do Interior) discursa tentando colocar a culpa do desmantelamento de um grupo de resistentes pelos alemães em um informante, poderia estar querendo se justificar pela demora na reação dos resistentes aos avanços (que sabiam estarem ocorrendo) dos inimigos. Disputas pelo número de combatentes num ataque de resistentes em Clairins, onde os serviços de informações oficiais exageram o número para justificar a ausência das forças da ordem e os historiadores comunistas, para aumentar a importância do evento, fazem o mesmo. Os que participaram, contudo, estão de acordo com um número bem menor (70, enquanto que os dois outros falavam, respectivamente, em 700 a 800 e 200 indivíduos). Outros exemplos da disputa pela memória poderiam ser alinhados, porque a obra está repleta deles.

Ainda sobre memória, no epílogo, o autor consegue passar para os seus leitores o desconforto que o fato causou naqueles que o viveram. A rápida normalidade que a cidade alcança, logo depois da libertação incomodou. As pessoas tentaram voltar à normalidade de suas vidas bem depressa, buscando comportarem-se como se nunca tivessem sido simpatizantes da milícia, ou mesmo indiferentes. Fingem ter resistido sempre e recolhem privilégios para si. Nosso autor está se referindo a todo o tipo de pessoas, inclusive a homens públicos. Sobre estes, os que tiveram alguma participação no governo de Vichy, algum tempo depois lhes descobriram o passado, o que causou grande desconforto público na França como um todo. Ex-deportados e resistentes de Saint-Amand ficaram chocados com a “normalidade” da vida, depois do que passaram. Encontraram, muitas vezes, ex-inimigos nas comemorações da libertação, o que certamente lhes aumentou a carga de amargura. Um judeu sobrevivente do massacre dos poços de Guerry, Charles Krasmeisen, enlouqueceu e Georges Chaillaud, uma das lideranças dos resistentes, responsável pela ordem de execução dos milicianos reféns, comete suicídio. É difícil, diante dessas referências, não nos lembrarmos de Primo Lévi, que igualmente não suportou o peso da experiência difícil que viveu.

É notório também que está é uma história que impressionou bastante nosso autor. Logo no prefácio ele afirma que na medida em que avançava na sua investigação, tinha a impressão que tudo se encadeava com rigorosidade implacável. No epílogo, descreve esta mesma sensação de ligação entre os eventos. Aqui, no entanto, reconhece que isto é uma ilusão imposta pelo nosso olhar retrospectivo. Pela insistência do autor, com essa referência, tenho a impressão que ele realmente incorreu nesse pecado. Olhar para o passado, hoje, depois que as coisas aconteceram, evidentemente nos causa a certa impressão de encadeamento, porque estamos vendo tudo pronto. Contudo, as pessoas que estão vivendo a situação no momento não sabem exatamente se aquilo que estão fazendo vai realmente funcionar ou não. Estão no calor dos fatos, tem que fazer escolhas muitas vezes rápidas.  

Imagino que a atitude que mais cause polêmicas nessa obra de Todorov são os julgamentos que faz e as preferências que nosso autor assume. Defende que, apesar de algumas semelhanças de métodos, os maquis são diferentes dos milicianos, se posicionando a favor dos primeiros, pois estes defenderiam a democracia, ao passo que os segundos são representantes de um regime totalitário. Condena o comandante François (resistente), Francis Bout de l’ An (secretário-geral da milícia) pelo desprezo que eles têm pela vida humana, preferindo a defesa dos seus princípios, onde, na verdade, esconderiam suas misérias morais. Joseph Lécussan (chefe miliciano, depois subprefeito de Saint-Amand) é também condenado pelos crimes contra os judeus e mesmo o fato de permanecer boa parte do tempo embriagado não o isenta, porque isso não seria nada mais que uma escolha sua.

René Van Gaver e Daniel Blanchard (lideranças da resistência) já são vistos como indivíduos que alternaram erros e acertos. Erraram quando tomaram reféns, mas teriam acertado no momento que se empenharam pela libertação das mulheres reféns para salvarem a cidade e os outros reféns que estavam com os milicianos. Eles teriam agido movidos pelo que Todorov chama de ética da convicção, ao invés de se moverem pela ética da responsabilidade, que prevê os resultados das atitudes que se deseja tomar. Foram movidos pela idéia de que os filhos da pátria deveriam se empenhar pela libertação dela e com isso, para o autor, teriam contribuído para a imagem que a coletividade faria de si mesma, influenciando assim os comportamentos e trabalhando para o bem público. Acredito, contudo, que temos que ir devagar ai. Será que esse raciocínio não pode induzir aqueles que não resistiram, os indiferentes ou simpatizantes da milícia, a se assumirem como resistentes para ficarem bem vistos? Será que isso não reforçaria aquela memória imediatamente posterior a libertação da França, que de Gaulle foi grande responsável, de que todos os franceses resistiram desde sempre?

Todorov marca suas posições também quando defende que o assassinato dos reféns dos resistentes era inevitável, pelas circunstâncias que os envolviam no momento. Eles não tinham só uma alternativa. Ninguém tem somente uma alternativa. Não existe esse fatalismo. A escolha deles foi uma, num universo de possibilidades. Poderiam sim ter feito diferente e deixado os homens vivos. Se quisessem teriam inventado alguma maneira de fazê-lo, como inventaram a “melhor” maneira de matá-los, enforcados, sendo suspensos e soltos por eles mesmos. Não os deixaram vivos porque não quiseram e não porque lhes faltasse opções. O autor pode estar, aqui, assumindo a versão dos resistentes que participaram do fato.

A obra “Uma Tragédia Francesa”, de Todorov é, no meu entender, um trabalho importante que consegue dar conta, com qualidade, de nos trazer um pouco da difícil experiência do povo francês (particularmente da cidade de Saint-Amand) que foi a ocupação alemã e o regime do governo sediado em Vichy, com a vantagem para o público brasileiro de dispor de um livro em língua portuguesa. Seguramente, podemos dispor da exemplaridade desta experiência que o autor nos oferece para pensarmos questões como memória, resistência, colaboração e regimes autoritários. Provavelmente nos ajudará no nosso exercício de cidadania, aparelhando-nos para que outras tragédias semelhantes não aconteçam. Assim esperamos.

Bibliografia:

TODOROV, Tzvetan. Uma tragédia francesa. Rio de Janeiro, Record, 1997.


Os abusos da memória


Numa época como a que vivemos, onde existe um volume crescente de informações de todos os tipos, nem sempre transformadas em conhecimento, a preocupação com o passado é presente. Quantas vezes vemos tantas pessoas repetindo, por exemplo, que o Brasil não tem memória, que os eventos históricos e suas conseqüências são esquecidos pelas maiorias? Notamos que esse questionamento é formulado, com alguma freqüência, por pessoas que, de alguma maneira, se sentem lesadas por esse passado. Essa discussão sobre memória e esquecimento acontece em várias partes do mundo, não só aqui. Por isso, acredito na importância de estudos que analisem os usos que se fazem da memória, pois se trata de um tema instigante para o estudo da História, enquanto disciplina e, ao mesmo tempo, politizado, pelo encaminhamento que as pessoas ou grupos, com interesses no presente, pretendem impor-lhe.

A obra “Os Abusos da Memória”, de Tzvetan Todorov vem trazer contribuições pertinentes para esse debate. Leitura agradável, o autor deixa naqueles que lhe percorrem as páginas a vontade insaciada. Apresentado, numa primeira versão em um Congresso (História e memória dos crimes e genocídio nazista, organizado pela Fundação Auschwitz), acredito que, posteriormente, o texto tenha sido adensado. Como a leitura deixou-me boas impressões, pelo encaminhamento que o autor deu ao assunto, penso que poderia ter feito uma obra de maior fôlego, aprofundando os debates que fez, nem sempre de maneira declarada, com os historiadores que se debruçaram sobre o tema.

Todorov começa tratando da “memória ameaçada”. Para ele, seria uma característica dos regimes totalitários o controle ou a tentativa de supressão da memória, quando fosse conveniente para essas tiranias. Assim, a memória ganharia mais prestígio para os grupos que são inimigos desses regimes, porque as informações que dela seriam apuradas poderiam salvar vidas e mobilizar as pessoas contra esses poderes. Não é por acaso que os regimes de Hitler na Alemanha e de Stálin na URSS são utilizados para ilustrar os argumentos do autor. O autor defende ainda que o apreço pela memória e a condenação do esquecimento teriam se estendido além do contexto original, por conta da influência de escritores talentosos que viveram em países com regimes opressores. Isso pode nos ajudar a entender a preocupação atual com a memória.

O elogio incondicional da memória e a condenação do esquecimento são problemáticos, porque, em verdade, não existe antagonismo entre esses dois elementos diferentes. Todorov faz notar que a memória é seletiva, e nisso concordam com ele estudiosos no assunto, como Henry Rousso. Cabe ao historiador perceber o não dito, os silêncios, as omissões nos relatos de memórias que análise. Nem todos têm do que se orgulhar do seu passado. Deslizes, algumas falhas morais, informações que, de alguma maneira possam macular a honra, são deixados de lado. Contando a experiência de fazer um “filme histórico” (Jongos, Canlangos e Folias), a professora Martha Abreu, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense lembrou que uma pessoa que prestou depoimento para o filme pediu, depois de gravada, que uma parte de sua fala, que menciona a ocorrência de brigas, fosse retirada para que as pessoas que assistissem ao filme não imaginassem que esses eventos fossem presentes na sua localidade.

O autor destaca também o que seria um movimento de passagem da tradição para a modernidade. A partir do século XVIII na Europa, começaria a formar-se um tipo de sociedade que deixaria de reverenciar, de maneira incondicional, as tradições e o passado, voltando-se para o futuro. Assim, nas sociedades ocidentais, deixar-se-ia de se servir do passado como um meio de legitimação. Passar-se-ia de uma sociedade regida pela tradição, para uma sociedade dirigida pelo contrato, sendo o recurso ao passado substituído pelo consentimento da maioria.

Todorov posiciona-se pela modernidade. Para ele, o foro privilegiado para a resolução das questões de legitimidade é a atuação do indivíduo enquanto cidadão, pelo contrato social. Tenho a impressão, contudo, que a sua defesa da modernidade sugere um deslocamento homogêneo, partindo-se da tradição para o contrato, num processo que ocorreria com um só ritmo de maneira monolítica em todas as regiões. O autor analisará, aqui mesmo, casos bem atuais e até bastante numerosos onde as justificativas para as ações e reivindicações no presente são retiradas do passado. Penso também que a obra de E. P. Thompson (Costumes em Comum), que trata dos trabalhadores ingleses do século XVIII e parte do XIX que valorizavam fortemente a tradição e os usos costumeiros, é demonstrativa de que esse movimento sugerido por Todorov merece ser relativizado. 

Nessa altura do texto, não restam dúvidas de que o passado é indispensável. Agora, não significa com isso que o passado deva reger o presente. Ao contrário, é o presente que fará do passado o uso que desejar. Ninguém é independente do passado. A identidade atual e pessoal do indivíduo é construída pelas imagens que este possui do passado. Aqui, mais uma vez, nosso autor está afinado com estudiosos da memória, como Michael Pollak. Aliás, a memória estaria responsável não só por nossas convicções, como também por nossos sentimentos. Muito bem lembrado por Todorov o exemplo dos sérvios, que explicavam suas agressões contra os outros povos da Iugoslávia como uma desforra pelas agressões que sofreram no passado. Se todos os ofendidos se sentirem no direito de retribuir mal por mal, usando a “lei do olho por olho”, ficarão todos cegos. 

Nesse momento, nosso autor apresenta o núcleo de sua tese, os bons e os maus usos do passado. Uma maneira de fazer essa distinção consistiria em perguntar-nos sobre os resultados e pesar o bem e o mal dos atos fundados sobre a memória do passado, fazendo a opção pela paz e não pela guerra. Em outras palavras, é dar uma função social para esses usos do passado, fazendo com que eles, de alguma maneira, promovam um estado de bem estar para a coletividade humana.

Seriam, no entender de Todorov, duas as maneiras de ler um acontecimento recuperado pela memória: literalmente ou exemplarmente. Na literalidade, identificam-se as causas e conseqüências de um ato, descobrem-se os personagens envolvidos com o autor inicial dos sofrimentos e os acusam, estabelecendo uma contigüidade entre o ser que alguém foi um dia com o que se é no presente, estendendo as conseqüências do trauma inicial a todos os instantes da existência. Na exemplaridade, sem negar a singularidade do evento, decide-se utilizá-lo, depois de recuperado, como uma manifestação entre outras de uma categoria mais geral e se servem dele como um modelo para compreender situações novas. Abre-se a recordação à analogia e à generalização, constrói-se um exemplo e se extrai uma lição. O passado se converte em princípio de ação para o presente. O uso literal do passado converte em insuperável o acontecimento e submete o presente ao passado. O uso exemplar faz aproveitar as lições das injustiças vividas para lutar contra as de hoje. O indivíduo que não consegue desligar-se do doloroso impacto emocional que sofreu segue vivendo o passado ao invés de integrar-se no presente, e por isso merece ajuda.

O autor defende a exemplaridade, pois está alinhado com a modernidade. O passado, nessa maneira de enxergar, é ferramenta de construção e análise do presente com vistas ao futuro. Daria uma função útil à difícil experiência que se viveu, na medida em que se lança mão dela como referência no tempo presente. O uso literal é paralisante, muitas vezes até patológico, faz com que os grupos vivam em função do passado, esquecendo-se do presente. 

Ainda assim, e Todorov nos mostra isso, a exemplaridade é objeto de criticas. Defende-se que os eventos são singulares, únicos e que a vontade de compará-los com outros não representa outra coisa senão o desejo de os profanar ou atenuar-lhes a gravidade. Mas como dizer que um acontecimento é único se não se o compara com outros? Quando se pensa comparação está se pensando em semelhanças e diferenças. Esta preocupação com a exemplaridade é freqüente quando se trata do genocídio de judeus na Segunda Guerra Mundial. Se se busca no passado lições para o presente, é que se reconhece que estes possuem características comuns. Quando se pensa em singularidade o que acontece geralmente é a tentativa de dar-se uma qualidade superlativa ao evento, ou seja, que a experiência que se defende por singular teria sido a maior ou o pior crime da história humana, o que na verdade é um juízo de valor que não passa de uma comparação.

Todorov traz para suas análises as comparações entre os regimes de Stálin na URSS e o de Hitler na Alemanha e quais os que se posicionaram a favor ou contra essas comparações. Os que estariam contra seriam favoráveis à memória literal e os que se posicionaram a favor os que se identificam com a memória exemplar. Traz também o exemplo de David Rousset, que fora prisioneiro político dos nazistas e conseguira sobreviver, passando, em seguida a lutar contra os campos de concentração comunistas, reunindo e publicando informações a respeito destes. Se tivesse se inclinado para a memória literal, teria passado o resto da sua vida mergulhado no seu passado. Escolhendo a memória exemplar, usa o passado para atuar no presente, dentro de uma situação que ele conhece por comparação. As generalizações da memória exemplar não são ilimitadas. Ela não faz desaparecer a identidade dos fatos, só os relaciona entre si, estabelecendo semelhanças e diferenças. Nosso autor cita mais alguns que assumiram essa postura dinâmica. Outros, no entanto, que viveram experiências como prisioneiros nazistas e comunistas se negavam a combater os Gulags por princípios ideológicos. Transformados em negacionistas, eram mais perigosos que os que assumem presentemente essa postura, porque os campos soviéticos estavam em funcionamento naquele momento e a denúncia pública era única maneira de combatê-los.

O trabalho do historiador, para nosso autor, seria eleger alguns fatos mais destacados e significativos e relacioná-los entre si. Semelhante trabalho estaria voltado, não para a busca da verdade, mas para o bem. Mais uma vez, busca dar às informações sobre o passado um caráter social, pensando na sua boa utilização em prol do coletivo.

Na última parte do texto, a mais extensa, que discute o culto à memória, Todorov afirma que a França estaria inserida nele. Lá ocorreriam chamamentos constantes à vigilância e ao dever de guardar a memória, como uma espécie de militância desta. Tentando entender as razões desta intensa preocupação com o passado, ele aponta que isto poderia significar a saúde de um país pacífico, onde nada acontece, ou a nostalgia por uma época não mais existente, quando a França era uma potência mundial. Acrescentaria nessa enumeração dele a crise de perspectivas no presente e no futuro, que se vive atualmente em várias partes do mundo. Forçando uma generalização, as pessoas estão visualizando a realidade que vivem como estática, pronta e acabada, como se tudo que as certa não fosse resultado de elaborações e reelaborações constantes. Naturaliza-se, por exemplo, conquistas de direitos trabalhistas, como se estes tivessem existido desde sempre e não se corresse o risco de perdê-los. Acredita-se muito pouco, também, nas possibilidades de mudanças para melhor. As pessoas não se sentem capazes de realizações que ajudem a alterar suas vidas, não sentem confiança na atuação política que poderiam desempenhar na sociedade. Esperam que terceiros resolvam-lhes os problemas, tentam transferir suas responsabilidades de atuação no presente para outros. A nostalgia de que falamos pode estar associada à falta de perspectiva no futuro. Muitas vezes, quando se conversa com os mais idosos, estes sempre afirmam que “no meu tempo a situação era melhor”. Dificilmente o tempo atual é o melhor. E isto não afeta somente as pessoas idosas. Muitos jovens vivem hoje com a cabeça em uma época que não viveram. Por admirar algum momento do passado, estabelecem com este uma relação que os paralisa no presente. Deixam de viver o seu tempo e acreditam, muitas vezes, que conseguirão reeditar a experiência do passado que admiram nos dias atuais. Isso é particularmente visível com o Maio de 1968, realmente instigante, principalmente por conta do caráter global e quase sincrônico das atitudes tomadas e das bandeiras defendidas.  

A maioria das pessoas experimenta a necessidade de sentir seu pertencimento a um grupo para obter o reconhecimento de sua existência. O mundo contemporâneo caminha, no entender de Todorov, para uma maior homogeneidade e uniformidade e esse direcionamento prejudicaria as identidades tradicionais. A combinação das duas condições, da necessidade de uma identidade coletiva e a destruição das identidades tradicionais seria responsável, também, pelo novo culto à memória, pois, ao se constituir um passado comum, o indivíduo se beneficia do reconhecimento devido ao grupo com o qual se vincula. Acredito que nosso autor força um pouco quando fala da destruição das identidades tradicionais como um efeito da modernidade. Em vários locais, grupos que se organizam com base na tradição se valem da modernidade para sobreviverem. Quando menciono isso estou pensando no trabalho de um sociólogo argentino, Nestor Garcia Canclini, que na sua obra “Culturas Híbridas – Estratégias para entrar e sair da Modernidade” menciona exemplos de comunidades indígenas que sobreviviam com a venda do seu artesanato. As identidades tradicionais, muitas vezes, subsistem e se adaptam à modernidade.

Outra razão para se preocupar com o passado, aponta Todorov, é com o objetivo de se afastar das ameaças do presente. Os sujeitos buscam ocupar-se com a memória dos sofrimentos passados para exonerarem-se dos preocupantes sofrimentos da atualidade. O conhecimento que daí adviria não passaria de “perfumaria”, servindo somente à erudição egoísta ou à fuga doentia, ao invés de inserir o detentor desse conhecimento na dinâmica de sua vida, como um sujeito que interfere no mundo a sua volta, alguém capaz de identificar as mazelas semelhantes as que conhece e lhes dar combate. Nosso autor menciona os sérvios, que se recordariam das agressões sofridas por seus antepassados porque essa recordação lhes permitiria esquecer as agressões de que se converteram em culpados num momento seguinte. Penso que essa crítica pode ser estendida para os judeus de Israel, por tudo aquilo que fazem com os palestinos, inseridos numa “luta desigual”.

A última razão para o novo culto à memória, que Todorov traz à discussão é, no meu entender, o mais explosivo, porque carregada de polêmicas disputas políticas. Os seus praticantes asseguram a si alguns privilégios no seio da sociedade. Surpreende, à primeira vista, a necessidade que grupos ou pessoas experimentam de se reconhecerem no papel de vítimas passadas e o quererem representar no presente. Para Todorov, ninguém quer ser vítima, pelo contrário, querem ter sido, sem nunca sê-lo. Desejam para si o estatuto de vítimas.

Ter sido vítima dá direito a se queixar, a protestar, a pedir e, se existe vínculo, os demais se sentem obrigados a satisfazer as petições. O papel de vítima é vantajoso e é melhor seguir nele que receber uma reparação pelo dano, porque se conserva um privilégio permanente. Quanto maiores os danos passados, maiores os direitos no presente. Citamos, para ilustrar, o caso dos negros no Brasil que, na atualidade, tem reivindicado cotas para ingressarem nas universidades públicas. Está, quando adotada, não passa de uma medida paliativa, mas ao mesmo tempo excludente. Paliativa porque não resolve o problema maior, que é a qualidade do ensino público brasileiro, e excludente porque não contempla os brancos pobres, que também não são poucos. As cotas universitárias, no meu entender, deveriam ser vinculadas, exclusivamente aos alunos da escola pública, independente de sua cor de pele. A questão é mais sócio-econômica que étnica.

Outro ponto que merecer ser lembrado são as indenizações. Falarei ainda do Brasil. Pessoas que se sentem lesadas pela ditadura militar iniciada nos anos 60 do século passado ingressaram com ações na Justiça e obtiveram indenizações. Uma vereadora da cidade de São Paulo, a Sra. Claudete Alves, do PT, entrou com uma representação no Ministério Público Federal “propondo uma campanha a ser discutida nos tribunais onde os negros pedem uma indenização de 2 milhões de reais.” Essa indenização seria para cada negro do Brasil, pelos prejuízos causados pela escravidão. São tantos os problemas que podem ser levantados para se discutir essa proposta... Porque os cidadãos brasileiros de hoje terão que arcar com as despesas de danos provocados por homens do passado? Será que se trata do mesmo Estado daquela época? (vale para os dois casos citados) Será que essa parlamentar irá processar igualmente Portugal na Justiça? E como ela lidará com os africanos, os que escravizavam outros africanos para venderem? Como fará com a grande quantidade de pessoas que, mesmo “brancas” possuem ancestrais negros, o que é verificável através de exames genéticos? 

Às vezes os processos judiciais geram profundas contradições, como foi o caso dos julgamentos de Nuremberg, onde os representantes de Stálin participaram dos julgamentos dos colaboradores de Hitler, situação vergonhosa, na medida em que uns e outros eram culpados de crimes semelhantes.

Todorov conclui seu texto apontando a necessidade de se conservar viva a memória do passado, não para pedir uma indenização por dano sofrido, mas para que se esteja alerta frente a situações novas e análogas. Aqueles que conhecem o horror do passado teriam a obrigação de levantar suas vozes contra os horrores do presente, que as vezes estão situados muito perto de nós. Colocar, enfim, o passado a serviço do presente.

A organização de seu texto deixa visível a sua opção pelo que ele chama de memória exemplar, que tem uma função importante no presente. Ao mesmo tempo, quando trata da memória literal, que ele não considera que seja boa de utilizar, fica, nos seus leitores, a idéia de que os grupos ou pessoas que sofreram prejuízos no passado devem se valer da sua cidadania, do contrato social para fazerem valer suas reivindicações, atuação inserida no que entende por modernidade. Buscando o que desejam através da tradição, a impressão que se tem é que as eventuais conquistas sempre serão parciais, além dos riscos que se corre com o despertar de paixões sectárias. Considero esse encaminhamento que dá ao seu texto bastante positivo por tentar trazer esses grupos para o funcionamento do contrato social e da vida democrática. É uma maneira legítima de se conseguir as reivindicações que se pretende.

1 -  Disponível em: http://www.claudetealves.com.br/discursos/view.asp?id=251.

domingo, 6 de julho de 2008

Resenha sobre o filme "Desmundo"


Inspirado no romance de Ana Miranda de mesmo nome, Desmundo conta a história de uma jovem portuguesa, órfã, juntamente com outras, mandada para a América portuguesa colonial do século XVI, com o objetivo de desposarem os colonos.
Oribela e as demais órfãs são levadas para um lugar onde são oferecidas a seus pretendentes por uma intermediaria. A personagem principal, que se mostra muito religiosa, apresenta-se muito contrariada com a situação em que se encontra e, chegada a sua vez, quando em contato com aquele que a desposaria, dá-lhe uma cusparada no rosto, conseguindo a desistência do pretendente.
Em 1552, o padre Manoel da Nóbrega solicita ao rei de Portugal que envie a América colonial portuguesa órfãs de boa cepa ou, na falta destas, quaisquer outras mulheres brancas, para que os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor. No seu trabalho “Repensando a família patriarcal brasileira – notas para o estudo das formas de organização familiar no Brasil”, Mariza Corrêa demonstra essa falta de mulheres brancas, quando faz referência a miscigenação resultante do cruzamento entre brancos e índios, que em alguns lugares como São Paulo era significativa. Além disso, aos funcionários da Coroa portuguesa só excepcionalmente era permitido fazer-se acompanhar de suas famílias. Aponta também que essa falta não pode ser estendida a todo período colonial, nem a todas as regiões. O exemplo ainda de São Paulo é lembrado quando a autora diz que nessa região, em certas épocas, as mulheres livres mantiveram uma constante superioridade numérica sobre os homens livres. Vale destacar, no entanto, que o fato demonstrado pelo filme não se dava para qualquer homem, mas para aqueles que possuíam recursos.
Oribela, no entanto, desejosa que era de retornar a sua pátria, não consegue furtar-se ao matrimônio. Aparece-lhe um pretendente que a desposa e, quando seu marido, Francisco de Albuquerque, vai consumar o casamento através da união sexual esta lhe pede tolerância a fim de que se acostumasse com a presença do marido e, conseqüentemente, desenvolvesse uma relação de afeto.
O filme mostra a propriedade de Francisco de Albuquerque onde mora com a mãe e uma criança com problemas mentais. A mão de obra utilizada na fazenda consistia em índios capturados nas florestas. Estamos respirando o Antigo Regime nesse momento, e com aquele esquema de ordenação da sociedade, o trabalho braçal era mal visto, uma ocupação inferior. John Manuel Monteiro, na sua obra “Negros da terra, índios e bandeirantes nas origens de São Paulo” descreve-nos os assaltos que os colonos faziam a centenas de aldeias indígenas em várias regiões, trazendo milhares de índios de diversas sociedades para suas fazendas e sítios na condição de “serviços obrigatórios”. Chegou a formar-se um sistema de abastecimento de escravos indígenas, que foi inclusive estimulado pelas autoridades régias, em conluio com os colonos de São Vicente, Santos e Rio de Janeiro. O autor aponta que a principal função das expedições de apresamento residia na reprodução física da força de trabalho e não no abastecimento dos engenhos do litoral, embora alguns nativos tenham sido entregues aos senhores de engenho.
Um dos personagens do filme é um padre jesuíta que, num determinado momento, numa visita realizada à propriedade de Francisco de Albuquerque polemiza com este por conta da sua vontade manifesta de levar consigo alguns filhos de índios ainda crianças. Os jesuítas participaram, juntamente com os colonos, dos debates em torno da escravidão indígena. Ronald Raminelli em “Imagens da colonização – A representação do índio de Caminha a Vieira” mostra-nos que, por princípio, os religiosos defendiam a potencialidade dos índios para receber a conversão, ao contrário dos colonos que enfatizavam a inviabilidade da catequese e a adequação dos nativos para o trabalho escravo. John Manuel Monteiro, na sua obra já acima citada, diz que os jesuítas, contando com o apoio de poderosas forças nas colônias e nas metrópoles, conseguiram levar o problema das missões ao Governador do Brasil, ao rei Filipe IV e ao papa, de quem conseguiram a publicação de um breve em que se denunciavam as atividades dos preadores paulistas e paraguaios. A publicação deste não foi suficiente para coibir os paulistas, que voltam a atacar outras missões.
Temos também no filme um cristão-novo português no filme chamado Ximeno Dias, mercador que dentre outras atividades, participava do apresamento de índios. A América colonial portuguesa recebeu significativa quantidade de cristãos-novos.
Oribela faz uma tentativa de fuga após ser estuprada pelo seu marido, cuja tolerância com a espera que esta lhe solicitara foi perdida. Sai pelo mato Oribela e orientando-se sabe lá como, eis que topa com o mar, um prodígio para uma jovem que não conhecia direito a região! Lá aborda alguns homens que estavam na praia, pedindo-lhes que a levem de volta para Portugal. Seu marido nota-lhe a ausência e sai a sua procura, encontrando-a em situação de perigo, já que estava prestes a ser estuprada pelos homens, que são mortos por Francisco de Albuquerque.
Levada de volta à propriedade de seu esposo, fica acorrentada recebendo cuidados de uma índia que busca, inutilmente, comunicar-se com ela, por conta da barreira lingüística. Lembramos o trabalho de Tzevetan Todorov, “A conquista da América – a questão do outro”, onde, a respeito dessas dificuldades na comunicação, diz que aos gritos dos espanhóis que desembarcavam na península, os maias teriam respondido: “Ma c´ubah than, não compreendemos as suas palavras”. Os espanhóis entendem Yucatán, e decidem que é o nome da província.
Aos poucos, Oribela consegue reaver a confiança de seu marido, começa a perceber e se relacionar com seus parentes. O filme insinua uma relação incestuosa entre mãe e filho em alguns diálogos, e a presença da menina excepcional somada a falta de referências a respeito de seu pai são indicativos de que ela fosse filha de Francisco de Albuquerque. Suspeita que se afirma também no distanciamento que procura manter da cidade, passando boa parte do tempo em sua propriedade.
Em “Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial” Ronaldo Vainfas nos diz que a Inquisição seria recriada na Itália em 1542, pouco antes do início do Concílio de Trento, assumindo os mesmos objetivos da Contra-Reforma, quais sejam, conter o avanço do Protestantismo na Península, combater os saberes eruditos que extrapolavam os preceitos do Catolicismo e perseguir as manifestações da cultura e religiosidade populares irredutíveis aos dogmas da Igreja. Em Portugal, o Santo Ofício se organizou como tribunal eclesiástico diretamente subordinado à Monarquia. Possuía também uma conhecida obsessão anti-semita. A sistemática perseguição dos chamados cristãos-novos – judeus convertidos ao Cristianismo e suspeitos de “judaizar” em segredo – respondeu pela grande maioria dos réus processados e executados entre o último quartel do século XV e a segunda metade do XVIII.
Em certos casos, o Santo Ofício transformava atos sexuais ou moralidades cotidianas em matéria heretical, presumindo haver desvio de fé onde só existiam desejo, valores morais ou comportamentos sociais não condizentes com as regras éticas do Catolicismo.
Diante da aproximação do cristão-novo Ximeno Dias à propriedade de Francisco de Albuquerque, Oribela começa a demonstrar interesse por ele, no que se mostra correspondida. Oribela procura fazer com que Ximeno consiga-lhe colocar num navio de volta à Portugal. Ela foge da propriedade de Francisco e mantém-se escondida no estabelecimento do cristão-novo por algum tempo. Diante da suspeita que o marido manifesta da participação de Ximeno na acolhida de sua esposa vai ao encontro deles que fogem, mas são alcançados pelo marido na praia, protagonizando uma cena de desafio em armas, no qual o marido de Oribela leva a melhor, retornando com sua esposa. Na passagem de tempo do filme, Oribela está dando a luz a uma criança e, após isso, realizando os preparativos de uma mudança. Assim termina o filme!
Dos aspectos que nos chamaram a atenção negativamente não foram tantos, mas houveram. Apontamos a relativa autonomia de Oribela, demonstrada no filme pelo pedido de paciência ao marido para a primeira relação sexual e também a complacência deste no que respeita às duas tentativas de fuga. Algo que não ficou muito claro no filme foi a presença de autoridades naquela região. Ela é sugerida na cena da escolha das jovens pelos pretendentes, mas de forma muito obscura. Pontuamos também a facilidade de orientação espacial de Oribela, sua capacidade de, a despeito de não conhecer o lugar, orientar-se por ele tão bem a ponto de, na primeira fuga, conseguiu atingir o mar, com direito à esperança de um navio e tudo! Evidentemente forçamos a mão nas críticas, já quem o historiador ou o estudante de história é aquele “chato” que fica encontrando senões em tudo que analisa. Sabemos tratarem-se das famosas “licenças poéticas” que os autores se permitem, a fim de tornarem a história mais apresentável, suave talvez. 
Se gostamos de criticar, elogiar merecidamente também apreciamos. A novidade de assistir um filme nacional legendado foi interessante. O português usado, arcaico, traria dificuldades para o grande público, já que este não era um filme que se pretendia só para historiadores. Este conhece as dificuldades com os documentos redigidos dessa forma. Falado, o português arcaico ajudou a criar a atmosfera do filme, o ambiente onde os personagens se movimentavam. Ajudou-nos a “mergulhar” um pouco, melhor, ajudou-nos o esforço de imaginação histórico para aquela época, já que a reconstituição perfeita de épocas passadas, como é sabido por nós, não é realizável.
É um filme que não é facilmente encontrado em locadoras, talvez porque muitos não o considerem atrativo, já que ele pede do espectador informações, conhecimentos históricos em algumas referências que fazem os personagens em seus diálogos. Teorizamos a partir de agora. Quem sabe isso não possa ser uma ponta do “iceberg” que poderíamos chamar de “indiferença pelas memórias de um povo”? Vivemos, no entanto, e isso nos favorece, numa época onde o gosto pela história está ganhando terreno. A procura pelo curso nas Universidades aumentou, publicações mensais de revistas sobre o assunto, com boa aceitação pelo mercado, devem estimular-nos os esforços. Devem essas ferramentas, como o filme Desmundo, serem utilizadas na prática do ensino.
Desmundo vale a pipoca e o guaraná, porque abre janelas para a exploração de vários assuntos ligados à história mundial e, particularmente, à brasileira.

Ascensão social dos mercadores cristãos velhos



No presente trabalho buscaremos analisar a ascensão social dos mercadores cristãos velhos, do século XVI ao século XVIII em Portugal e na América portuguesa. Pensaremos, para isso, na abertura oferecida ou não por rei e nobreza, que controlavam a hierarquização social, além das estratégias de que lançaram mão para superar dificuldades no projeto que abraçaram. Assim, articularemos o trabalho de Daniela Buono Calainho sobre os agentes inquisitoriais no Brasil, bem como a análise de João Fragoso sobre a primeira elite senhorial do Rio de Janeiro. Contemplaremos também dois trabalhos de Fernanda Olival, o primeiro tratando das Companhias Pombalinas e a nobilitação no setecentos e o outro sobre juristas e mercadores, conscientes de que a autora, neste segundo trabalho, tem como foco de sua análise casos de cristão novos. Por fim, permeando nosso esforço, pretendemos trazer à discussão a abordagem de Norbert Elias sobre aqueles que ele denomina estabelecidos e os outsiders, além da reflexão de Edward Shils sobre suas noções de centro e periferia.

A sociedade em que viviam esses mercadores não é igualitária e nem tinha a intenção de o ser. Pertence ao Antigo Regime, profundamente hierarquizada, onde cada indivíduo tinha um lugar e um papel a cumprir. A mobilidade social não é fácil, mas não é impossível, como constataremos. As regras são ditadas pelos centros de poder, o rei, que deseja criar aliados, e a nobreza, que para preservar seus privilégios adquiridos, esforça-se pela manutenção da estrutura dessa sociedade, reforçando impedimentos à ascensão de demais grupos, mas almejando galgar outros níveis de privilégios cada vez mais altos. Os grupos mais poderosos se pensam superiores, como nos aponta Norbert Elias. A antiguidade de suas associações cria a coesão desses grupos. Mantendo afastados de si aqueles que não vivem à moda da nobreza, os que têm defeitos de sangue e mecânica, eles preservam sua identidade e afirmam a sua superioridade. João Fragoso nos lembra da origem do sistema de mercês, nas guerras de Reconquista contra muçulmanos na Península Ibérica na Baixa Idade Média, onde o rei concedia à aristocracia principalmente terras e privilégios pelos serviços prestados. Essas práticas se estendem ao além mar com a tomada de Ceuta em 1415. Quando conquistava, a Coroa concedia postos administrativos ou militares que poderiam proporcionar vantagens e vencimentos. Essas pessoas passam a ser uma parte do centro, assim se reconhecem. Adquirem qualidades, como nos mostra Edward Shils, que as qualificam para o exercício da autoridade.

Os mercadores buscavam tomar parte na sociedade, procuravam ascender, adquirir foros de nobreza, conseguir privilégios, como muitos dos homens de sua época ambicionaram. Os casos analisados pelos nossos autores referem-se evidentemente, àqueles que lançaram mão de estratégias das mais variadas para ascender socialmente, mas todas elas enquadradas nos dispositivos legais de sua época, criados por aqueles que detinham o poder. A documentação que foi objeto de estudos dos autores foi produzida pelos agentes de poder, pelos órgãos de administração e pelos postulantes à ascensão. Aqueles mercadores, ou outros indivíduos quaisquer, que por acaso não tinham interesses em adquirir mercês não figuram aqui. Era um sistema central de valores, para usar as idéias de Edward Shils, afirmado e seguido por essa elite, era o lugar onde os pretendentes a estabelecidos deveriam se enquadrar.

Uma das estratégias adotadas pelos mercadores foi a de se ligarem ao Santo Ofício, ocupando o cargo de Familiares. A inquisição sempre seguiu o desenvolvimento econômico. Os centros eram os locais que mais dispunham de Familiares. Não por acaso a maioria deles eram... comerciantes, com predominância no século XVIII. Para habilitarem-se o candidato a Familiar teria que dispor, segundo Daniela Calainho, de recursos que lhes facultasse viverem de forma abastarda, além de passarem por provas de sangue, já que o defeito mecânico era tolerado. As vantagens que apuravam, dentre outras, eram algumas isenções de impostos, um estímulo interessante, bem como a possibilidade, como nos informa Fernanda Olival, de mencionar a inscrição como Familiar do Santo Ofício ao pedirem habilitações na Mesa de Consciência e Ordem, pois era uma prova de ascendência limpa e status, diminuindo a marca negativa que envolvia a atividade comercial. Agora como estabelecidos, estigmatizavam os cristãos novos. Como Familiares, tentaram ofuscar, de alguma forma uma supremacia econômica atingida pela burguesia mercantil de origem judia. Daniela Calainho, no entanto, para não deixar de relativizar a questão, informa-nos que apesar de muitas vezes rejeitados pelo Santo Ofício, alguns de sangue impuro conseguiram se habilitar como Familiares através de tráfico de influência.

João Fragoso, o seu estudo, contempla os descendentes dos conquistadores participantes das expedições comandadas por Mem de Sá nas lutas contra os franceses e os índios tamoios. Estes ocupavam postos no senado da câmara, na elite administrativa e militar. Pelos serviços de seus antepassados e pelos seus, que continuavam prestando, essas pessoas adquiriram aquilo que Edward Shils chama de qualidades distintivas, que se fazem notar também nas ligações através do parentesco, via casamentos, que eles começaram a tecer logo cedo.

O rei concede mercês que afetava diretamente a economia da conquista, no Rio de Janeiro. Com isso, os mercadores de açúcar não eram iguais diante do mercado. Criaram-se mecanismos de acumulação que, mesmos realizados no mercado, são mediados pela política. Aqui também, nas vantagens comerciais, os critérios para adquiri-las eram sociais. Ter dinheiro e ser fidalgo ajuda mais que ser um bravo e valente soldado que tenha matado a muitos em algum combate. Os homens estudados por João Fragoso tiravam proveito do monopólio do mercado, valiam-se da sua posição de ministros (posto por eles ocupado muitas vezes) para arrematar bens por dívidas, além de usarem o acesso privilegiado que tinham à “poupança colonial” (arca dos órfãos, por exemplo), por conta do exercício de suas funções administrativas, para movimentarem esses recursos em benefício próprio, tomando “empréstimos”. Valiam-se da desigualdade da sociedade para abarcarem parte da riqueza produzida por esta e, ainda uma vez, ascender pelos serviços que poderiam prestar, melhor capitalizados. Norberto Elias informa-nos que a auto imagem dos estabelecidos se modela pela imagem dos seus melhores membros. Buscavam viver nobremente. Uma vez estabelecidos, fecham-se à entrada de elementos que não consideram de seu nível. O contato com um outsider pode contaminar, através dos defeitos que poderiam ser transmitidos, como os de sangue e o de mecânica. Os indivíduos que foram objeto da análise de João Fragoso não descuidaram da política de casamento nas suas uniões.

O trabalho de Fernanda Olival sobre as Companhias Pombalinas nos traz os homens que se aproveitaram da oportunidade aberta pelo rei de se verem livres de um defeito comum aos mercadores, o defeito mecânico. Através da compra de dez títulos, inicialmente da Companhia do Grão Pará e Maranhão, depois estendido a outras Companhias, o indivíduo que porventura almejasse hábitos de Ordens Militares ficaria dispensado desse defeito nas suas habilitações. Uma boa parte dos acionistas socorreu-se da compra desses títulos e ainda juntavam a certidão da aquisição quando solicitavam suas provanças, assim como entregavam também um exemplar do alvará régio de 10 de Fevereiro de 1757 impresso avulso.

A Mesa de Consciência e Ordens, os estabelecidos, não reage bem a esse alvará. Dos quatro pontos que considerava nebulosos sobre a questão, três deles pensavam a extensão do alvará. E a questão do defeito mecânico estava ali presente, afinal, os estabelecidos atribuem características ruins aos outsiders e além de tudo, são um grupo, conforme Norbert Elias. Depreciam os mercadores que buscavam ascender por esse e outros caminhos porque disputam poder, a fim de manterem sua superioridade social.

Quando Fernanda Olival analisa no seu trabalho os juristas e mercadores através de quatro processos de nobilitação percebemos alguns pontos que nos podem ser úteis, mesmo sabendo tratar-se de cristãos novos que, segundo os códigos da época, tinham defeito de sangue.

Através dos serviços prestados ao rei,na primeira metade do século XVI, os indivíduos estudados pela autora recebem cargos, hábitos de Ordens e mercês. Notamos que seus parentes seguiram-lhes a trajetória, inclusive ocupando cargos anteriormente preenchidos por eles. A política de casamentos estava presente aqui. Fidalgos de linhagem não consideravam tão mau negócio ligar-se ao sangue de um mercador de grosso trato. Faziam isso quando não iam lá muito bem de suas finanças e enquanto a questão da limpeza de sangue era tolerada.

Edward Shils nos mostra que a “apreciação da autoridade implica a apreciação das instituições através das quais a autoridade funciona e das suas regras” . Foi o que fizeram os indivíduos objeto de análise dos autores. Para ascenderem socialmente, tiveram que atuar conforme as regras ditadas pelas autoridades, o rei, simbolizando a maior delas, e dos nobres, que ocupavam as diferentes instâncias na administração, como a Mesa de Consciência e Ordens e o Desembargo do Paço. O primeiro desejava arregimentar aliados para si, os segundos criando obstáculos a ascensão social desses grupos nessa sociedade hierarquizada. Assim, fortaleciam o próprio poder, porque mantinham para si as possibilidades de ascender ainda mais, através dos serviços que poderiam prestar por conta da posição que já ocupavam e, ao mesmo tempo, segurando o fortalecimento do rei. Parece-me que aceitando essas regras impostas pelos estabelecidos a conseqüência natural disso é aceitar os estigmas de defeitos de sangue e mecânico que os estabelecidos, formuladores dessas regras, lhes impunham. Norbert Elias diz que “em termos das normas de seus opressores, eles se consideram deficientes, se vêem como tendo menos valor” .

Os indivíduos estudados por João Fragoso e por Fernanda Olival no seu trabalho sobre os juristas e mercadores valeram-se do histórico de serviços prestados à coroa por eles e por seus descendentes. Dentro dessas relações estabelecidas com o centro, ascenderam socialmente. Os Familiares do Santo Ofício estudados por Daniela Calainho e os mercadores acionistas da Companhia do Grão Pará e Maranhão valeram-se da abertura oferecida pela não consideração dos defeitos mecânicos. Isso, aliás, se aplica a todos os casos por nós analisados. Através de tráfico de influência ou mesmo por tolerância, indivíduos de sangue impuro conseguiram ser Familiares do Santo Ofício ou mesmo ocupar algum outro cargo mesmo dentro da Igreja Católica. Os autores fazem-nos ver também que viver À moda da nobreza era fundamental para os postulantes a títulos e privilégios, e os exemplos que arrolam mostram bem isso. Com Fernanda Olival e Daniela Calainho vemos que a acumulação de riquezas desses homens era rápida e, com isso, voltavam seus olhos para a possibilidade de ascenderem socialmente. E não deixaram de ser mercadores por isso. Com essas autoras vemos também que as regiões centrais do império português e de sua colônia americana se destacavam no que respeita a mobilidade social. 

Reforçamos que esses homens para chegarem onde pretendiam aceitaram e observaram as regras, crenças e valores dos governantes, como nos ajuda a entender Edward Shils. Valeram-se das oportunidades que lhes surgiram, prestando serviços à Coroa, mesmo que fossem financeiros. Acumularam riquezas, buscaram espelhar-se no modo de vida nobre, prosseguiram suas atividades comerciais, lançaram mão da política de casamentos e contavam com a flexibilização do centro no que respeita aos seus defeitos mecânicos. Mas só chegaram até onde lhes foi permitido pelo poder central que os permitiu ascender. Sempre tiveram a impressão das portas abertas, mas não transpuseram todas elas, afinal, ainda possuíam o defeito de sangue, além do que a nobreza obstaculizava a distribuição de benefícios, buscando preservá-los para si. A ascensão dos indivíduos que não possuem tradição é dificultada, porque os serviços prestados por seus antepassados também contam, o que muitas vezes não era o caso dos homens que estudamos. Essa impressão alimentava seus esforços na realização de atividades que lhes granjeasse méritos para receberem mercês, e o rei se beneficiava disso. Mas não receberam todas que desejavam, ou bem poucos conseguiram, porque a sociedade em que viveram esses mercadores não era igualitária e nem tinha a intenção de o ser.

1 - Shils, Edward. Centro e Periferia. DIFEL. pág. 57.

2 - Elias, Norbert; Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2000. pág. 28.

Bibliografia:
- Shils, Edward. Centro e Periferia. DIFEL
- Elias, Norbert; Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2000.
- Calainho, Daniela B.. Agentes da Fé. Bauru: Edusc, 206
- Fragoso, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi, 1: 45 – 122, 2000.
- Olival, Fernanda. Juristas e mercadores à conquista de honras. Revista de História Econômica e social, 4: 7 – 53, 2002.
- Olival, Fernanda. O Brasil e as Companhias Pombalinas e a nobilitação no terceiro quartel de setecentos. Anais da Universidade de Évora, 8 – 9: 73 – 97, 1998/1999.



A Revolução Francesa – A Convenção Jacobina e o Terror


O período entre Junho de 1793 e Julho de 1794 é considerado o mais violento da Revolução Francesa, onde a guilhotina não descansava muito, pois incessantemente separava do corpo cabeças das mais variadas origens sociais, membros do clero, nobreza, populares, inimigos da Revolução e até de revolucionários. 

A França agitava-se com ameaças internas, na figura dos movimentos federalistas que geravam um quadro de guerras civis ameaçadoras da unidade territorial e na dos movimentos populares, exasperados pela carestia provocada pelas medidas anteriormente adotadas. Ainda era presente a ameaça externa dos governantes por direito divino de outros países, nas tentativas de invasões do território francês.

O partido que vinha controlando a Convenção era a Gironda, composto por oradores parlamentares que representavam os grandes negócios, foi derrubado do poder através de um rápido golpe dos sans-culottes, um movimento de trabalhadores pobres, sobretudo urbanos ligados à Montanha, que era um grupo da pequena e média burguesia, que assumiu o poder.

No início do governo foram aprovadas leis de caráter popular visando os interesses dos camponeses. Regulavam a forma de venda dos bens dos emigrados, que poderiam ser divididos em pequenas parcelas para que os camponeses pudessem adquiri-los e a que suprimia definitivamente o regime feudal sem indenizações. Albert Soboul afirma que “a queda da gironda significava, para os camponeses, a libertação definitiva da terra”.

Votou-se uma Constituição em 24 de Junho de 1793. A Declaração dos Direitos que a precede vai mais longe que a de 1789 e afirma a felicidade como a meta de toda sociedade, colocando a assistência pública como sagrada.

O Comitê de Salvação Pública, cujas figuras de destaque eram Robespierre e Saint-Just, estava decidido a impulsionar vigorosamente a defesa nacional, que não separavam da defesa revolucionária. Para isso foi realizado o alistamento em massa, onde todos os cidadãos franceses estavam convocados e os jovens entre 18 e 25 anos, solteiros ou viúvos sem filhos, formariam a primeira requisição e partiriam logo. Apresentava-se, no entanto, o problema do abastecimento de alimentação e de material bélico para essas tropas.

Em Setembro os sans-culottes, liderados por membros da Comuna, fizeram uma manifestação na Convenção onde exigiam a detenção dos suspeitos, o expurgo nos Comitês Revolucionários encarregados de detê-los, a criação de um exército revolucionário e o tabelamento geral dos preços e dos salários. O Terror entrava na ordem do dia. 

Entra em marcha o terror no mês de Outubro de 1793, sob pressão do movimento popular. Maria Antonieta, rainha de França que permanecia presa e alguns girondinos morreram neste mês. Esse terror, muitas vezes, pela força das circunstâncias, revestiu-se de um aspecto social, taxando os ricos, organizando tropas revolucionárias, criando oficinas e hospícios. A prática da amálgama generalizava-se: a noção de complô aristocrático servia para unir no mesmo processo acusados sem relações entre si, mas julgados solidários em manobras contra a nação.

Foi instaurada a economia dirigida por conta das exigências de defesa nacional. Objetivava alimentar, vestir, equipar e armar os homens recrutados em massa e abastecer as populações das cidades. Limitava a liberdade de empresa, já que todas trabalhavam para a nação, controladas pelo Estado. Houve um tabelamento de preços estabelecendo o máximo geral de preços para os gêneros de primeira necessidade. Os salários também foram controlados através do máximo, o que irritava sobremaneira os operários.

Durante boa parte desse período empreendeu-se um esforço de descristianização, percebido numa série de atitudes como o Culto dos Mártires da Liberdade, a adoção do calendário revolucionário e a laicização dos comboios fúnebres e cemitérios, entre outras medidas. Tratava-se de um movimento orientado pelos interesses dos sans-culottes que foi freado pelo governo revolucionário, sendo um ponto de ruptura entre esses grupos.

Por volta dos meses de Março e Abril de 1794 ocorreu a queda das facções Cordeliers, grupos sans-culottes que podemos comparar com uma ultra-esquerda, e a dos Indulgentes, que contava com Danton (girondino) e algumas pessoas a ele ligadas. Esses dois grupos, em separado, foram julgados e condenados à guilhotina.

A Revolução alcançou a vitória contra o inimigo externo. O Comitê de Salvação Pública via-se aos poucos sem sustentação e dividido internamente, já que muitas medidas adotadas afrontavam os interesses de seus próprios participantes, como o controle da economia. Somado a isso os desentendimentos com o Comitê de Segurança Geral, insatisfeito por causa da criação, pelo primeiro, de um Departamento de Polícia, invadindo as suas atribuições e despertando uma desconfiança sobre um eventual preparo de uma ditadura pessoal de Robespierre. Por proposição dele, a Convenção decretara que o povo francês reconhecia a existência do Ser Supremo e da imortalidade da alma, atitude que desagradou os descristianizadores e ao mesmo tempo os cristãos. Numa festa de comemoração do Ser Supremo, presidida por Robespierre, a idéia de uma ditadura pessoal também é levantada.

Nesse ambiente de instabilidade, em 9 termidor (27 de Julho de 1794) a Convenção derruba Robespierre, num golpe bem articulado que não dava margem a muita reação, pondo fim ao Terror, que já era considerado desnecessário por parte de muitos e encerrando o governo revolucionário. No dia seguinte ele, Saint-Just e Couthon foram executados, o mesmo ocorrendo alguns dias depois com 87 membros da revolucionária Comuna de Paris.

Esse período marcado por muita violência foi inovador pelas idéias que apresentou de controle da economia e de uma assistência social promovida pelo Estado. Vale notar a influência bem próxima dos grupos geralmente excluídos do cenário de decisões, que conseguiram colocar algumas de suas reivindicações na prática, mas não todas. Conseguiu-se debelar a ameaça externa em um prazo pequeno, em que tiveram que formar um exército e preparar suprimentos para este. Ficou fragilizado porque se manteve apoiado no Terror, que passou a ser visto como desnecessário. Se não foi unânime na escolha de seus métodos isso se deve aos diferentes interesses em jogo naquele momento como em todos os períodos da História.

“A República só estará fundada quando a vontade soberana comprimir a minoria monárquica e reinar sobre a mesma por direito de conquista. É preciso governar com mão de ferro os que não podem ser governados pela justiça. É impossível que as leis revolucionárias sejam executadas se o próprio governo não for constituído revolucionariamente.”
Saint-Just


 “Se a força do governo popular na paz está na virtude, a força do governo popular na revolução está, ao mesmo tempo, na virtude e no terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem a qual a virtude é impotente. O terror nada mais é do que a justiça pronta, severa, inflexível; por conseguinte, emana da virtude, é menos um princípio particular do que uma conseqüência do princípio geral da democracia aplicado às necessidades mais ingentes da pátria.”
Robespierre

Cronologia:

24 de Junho de 1793: Votação pela Convenção da Constituição de 1793, nunca aplicada;

10 de Julho de 1793: A convenção renova o comitê de Salvação Pública;

10 de Agosto de 1793: Primeiro aniversário da queda da monarquia. Em quase toda a França são destruídos os sinais do feudalismo;

23 de Agosto de 1793: A Convocação em massa de todos os franceses;

5 de Setembro de 1793: O terror entra na ordem do dia;

5 de Outubro de 1793: Adoção do calendário revolucionário;

24 de Março de 1794: Todos os hebertistas são condenados à morte;

29 de Março de 1794: Prisão dos Indulgentes (entre eles Danton);

27 de Julho de 1794 (9 termidor): Queda de Robespierre e fim do terror.

Bibliografia:

Hobsbawm, Eric. A Era das Revoluções, Paz e Terra, RJ, 1982
Godechot, Jacques. A Revolução Francesa, Cronologia Comentada, Nova Fronteira, RJ, 1989
Sole, Jacques. A Revolução Francesa em Questões, Jorge Zahar Editor, RJ, 1988
Soboul, Albert. História da Revolução Francesa, Zahar Editores, RJ, 1974
Lefebvre, G. A Revolução Francesa, Ibrasa, RJ, 1966


Um abraço para todos os amigos


Antonio Carlos Rafael Barbosa é antropólogo formado pela Universidade Federal Fluminense. Produziu esta obra, que é resultado de uma dissertação de mestrado em Antropologia no programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF.

Trata deste assunto urgente, na medida em que o tráfico de drogas não é somente um problema regionalizado do Rio de Janeiro, mas algo que afeta toda a coletividade brasileira, já que encontramos o mesmo, ou parte de seu processo (cultivo, distribuição e venda) em boa parte do Brasil.

Assim, a compreensão do tráfico é um desafio sumamente importante para que se pensem formas eficazes de combatê-lo, não com medidas coercitivas que somente tratam dos efeitos deste, mas buscando, globalmente, os fatores propiciatórios para sua instalação. Dentre estes, poderíamos destacar os problemas sócio-econômicos como o desemprego e a ausência de políticas públicas que atendam as necessidades de saneamento básico, saúde e educação para as classes sociais menos favorecidas. 

Antonio Rafael, então, mergulha neste mundo acompanhando os relatos dos personagens que constroem esta realidade, começando do asfalto para o morro, passando a seguir pela realidade ignorada por muitos que é a prisão. 

O autor, a partir de um ousado viés etnográfico, procura entender por dentro um sistema de poder – o tráfico de drogas – lançando mão de informações de campo para constituir sua obra. Igualmente utiliza-se de informações publicadas nos órgãos de imprensa. Não perde também a oportunidade de informar que manteve no anonimato seus informantes. Os eventuais nomes que divulgue os toma das referências dos órgãos de divulgação.

Na sua apresentação da obra, refere-se primeiramente, a pertinência do assunto. O tráfico de drogas é uma problemática amplamente discutida, seja nas conversas informais de cidadãos comuns, preocupados com sua existência, seja pelos veículos da mídia, pelos políticos e governantes tratando das políticas de segurança pública. Assim, insere-se na questão procurando igualmente discuti-la, à luz dos conhecimentos da Antropologia.

Apresenta um questionamento que confessa não possuir resposta. Trata-se da necessidade ou não de o pesquisador já sair a campo informado a respeito do seu objeto de pesquisa. Apresenta, então, sua experiência pessoal, informando que a preparação teórica prévia serviu-lhe para selecionar aquilo que era de real importância.

Atirou-se ao trabalho começando sua investigação por meio de relações pessoais estabelecidas com usuários de drogas no asfalto. Através destes, pôde ampliar seu raio de ação, estendendo-se do tráfico que ocorre no asfalto ao que acontece nos morros e favelas. Faz questão de mencionar que houveram momentos que precisava confundir-se com seus informantes, porque sua identificação como pesquisador teria sido desastrosa.

Assim, organiza seu trabalho através de pequenas histórias, permeadas por comentários ou não, onde apresenta-nos este quase diário de campo, tratando desta que é uma realidade inquietante.

No seu capítulo primeiro, mostra-nos a “senha”, o indispensável para movimentar esta engrenagem: o dinheiro. Descreve depoimentos do Chefe de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, na segunda metade da década de 1990, onde este fala sobre o bairro de Ipanema e o modismo do verão à época – o apitaço – que era a forma de se avisar aos usuários de drogas sobre a presença da Polícia, onde compara essa atitude a dos garotos que soltam pipa no morro com o mesmo objetivo.

Descreve os nomes que os usuários dão às drogas e fala também das misturas que se fazem a estas com o objetivo de se aumentar a rentabilidade dos pontos de venda.

Apresenta-nos a figura do avião, o elemento intermediário entre o traficante e o consumidor, quando este não deseja o contato direto com o traficante ou o ponto de venda. Este corre o risco pelo consumidor e recebe como paga parte da droga ou dinheiro. Com este personagem, vem à cena a possibilidade da “volta”, a quebra de um acordo entre consumidor e o avião, onde este último trai a confiança do primeiro.

Antonio fala-nos também sobre o que se pode entender por conhecimento, conceito e contexto. Tratam, basicamente, da formação de juízo de valor sobre alguém e se este possui relações amplas com pessoas ligadas ao tráfico.

Um dado interessante apresentado dá conta de uma tentativa, realizada entre as décadas de 1980 e 1990 de se modificar os hábitos de consumo de drogas no Rio de Janeiro. Pretendia-se que os usuários consumissem mais cocaína e, para isso, baixaram-lhe o preço, aumentando o da maconha, praticamente equiparando-os.

O “contato de peso” é uma figura também descrita nesta obra. É alguém que fornece ao usuário uma quantidade maior de drogas de melhor qualidade.

O “respeito às fronteiras”, estabelecida pelos pontos de vendas de drogas, impede que novos “movimentos” nasçam próximos a estas áreas.

Ao delator, aquele que entrega os traficantes e seus pontos de venda à Polícia, é execrado. Quando cai nas mãos dos traficantes, o x-9, o “cagüete” sofre horrores e tem uma morte bárbara.

Sobre a iniciação no vício, o autor faz notar que, muitas vezes, se dá por intermédio de um grupo. Este é constituído por pessoas que, muitas vezes, só utilizam as drogas em determinadas ocasiões, quase sempre, festivas. E falando sobre festas, estabelece algumas ocorrência comuns como os excessos de variadas naturezas, o extraordinário, se manifestando nas transgressões das normas sociais e, finalmente, a comunhão que une os participantes.

Pontua as diferenças de tratamento que se nota quando se trata de viciados na favela, que são chamados de “elementos” (velho jargão policial), e aqueles, igualmente viciados, mas que lá não entram e que são chamados “cidadãos”.

Falando da dependência, faz notar uma gradação no uso das drogas, começando-se pelas ditas mais leves e partindo-se para as mais pesadas, apesar de alguns gostarem mais de umas que de outras, permanecendo consumindo as mesmas.

No subtítulo “A mercadoria” compara o fluxo do capital do usuário ao fluxo de sua necessidade por atender ao vicio. Aponta casos de pessoas que ingressaram no vício para acompanhar alguém a quem devotavam afeto, amor ou paixão e cita também alguns efeitos das drogas nos usuários, como a “falação” – vontade de falar que se perpetua – muito notada nos usuário de cocaína.

No capítulo segundo, o autor trata da “invenção de um problema”, onde sugere que o tráfico de drogas derive da raridade de determinada substância e da conseqüente dificuldade de se obter esta.

Faz alguns questionamentos que merecem ser observados, como este: “até onde um ‘mercado negro’ das drogas é desejado? É produzido pelo próprio mercado, é uma contraparte necessária ao seu funcionamento? Se nenhum ator da cena internacional pode dizer isso em sã consciência, podemos perguntar: e em ‘sã consistência’?¹”. O volume de capital que o tráfico de drogas movimenta é fabuloso. A droga passa por tantos intermediários que o seu preço final é astronômico.

O autor nos mostra o triste papel desempenhado pelo Brasil no mercado internacional das drogas, fornecendo éter e acetona (ilicitamente) aos cartéis colombianos, produtos necessários ao refino de cocaína. Cedemos espaço dentro de nossas fronteiras para plantação, servimos de rota para o tráfico que se dirige aos Estados Unidos da América e Europa e somos um dos melhores locais para se “lavar” o dinheiro desta atividade. Esta sombria movimentação financeira se dá em pequenas cidades na fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru.

No capítulo terceiro, o autor apresenta-nos a favela. O primeiro subtítulo, “a surrada teoria”, discute se a criminalidade está relacionada com a pobreza. Alguns apontam que não e tentam defender essa idéia. Dizem que, se fosse assim, a maioria dos pobres seriam criminosos, o que não é realidade. O porém é que os próprios “moradores da Baixada e dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro incluem entre as primeiras soluções para o problema da criminalidade o combate ao desemprego e aos baixos salários, duas realidades que conhecem muito bem”². A discussão, como vemos, está aberta.

Quando um desconhecido vai à favela fazer algo, é de bom alvitre procurar o pessoal do tráfico e informa-los de suas intenções, do contrário, corre-se o risco de ser abordado de uma maneira muito desagradável, com armas em sua direção.

Falando do “movimento novo” usa o relato de um traficante para descrever como é inaugurado um novo ponto de venda, as relações que precisam estabelecer com alguns contatos que lhe fornecem armas e drogas, geralmente um traficante também.

Com o passar do tempo, o esquema de aviso de perigo para os traficantes nas favelas modernizou-se. No início, eram pipas empinadas que, quando embicadas e recolhidas depressa, sinalizavam que a Polícia estava entrando. Depois disso, os fogos disparados pelos olheiros, que no início, tinham que ser acesos. Depois disso, em alguns lugares, passou-se a usar fogos eletrônicos, bastando para o acionamento apertar-se um botão.

Descreve o processo de “endolação”, embalagem das drogas, que chega a necessitar da divisão entre as drogas. Uma casa com um gerente de endolação para embalar-se cocaína e outra casa, nos mesmos moldes para maconha. 

A estrutura do movimento consiste nos olheiros ou fogueteiros, encarregados de avisar sobre os perigos, o vapor, responsável pela venda, o soldado, responsável pela segurança do vapor, pela da favela toda e pela segurança do “homem” o “cabeça” do movimento. Os gerentes, que controlam o fluxo das drogas e a distribuição dos homens, o braço-direito, o segundo na linha de comando e, finalmente, o homem, o dono do morro. Às vezes, pode acontecer de uma comunidade possuir mais de um dono. Isso, no entanto, é exceção.

A droga irriga o comércio interno da comunidade, na medida em que atrai para esta potenciais clientes para bares e mercearias, além de empregar moradores na endolação. As comunidades desenvolvem atividades para atrair consumidores. Consistem em bailes, festas, ensaios na quadra que atraem clientes para o tráfico e movimentam a economia de setores da favela.

Os motivos para ingressar no tráfico giram em torno dos seguintes temas: pobreza; simples prazer; revolta dentro de casa; o vício; falta de um emprego.

Algumas mulheres sentem-se atraídas pelos traficantes, procurando nestes destaque, status, respeito. Umas das principais causas de mortes nos morros são por causa das confusões envolvendo mulheres.

O autor aborda, também, a natureza das relações mantidas entre traficantes e moradores, que pode ser boa ou ruim. O tráfico, ainda, possui um poder judiciário próprio, na medida em que faz as leis e estabelece as penas, que podem variar de espancamento, expulsão da comunidade ou morte. E uma das leis impostas à comunidade, por exemplo, é a do silêncio. Ninguém nunca viu nada acontecer. O “alemão”, outro exemplo, é o inimigo de outra facção que quando cai em poder de um grupo rival, sofre bastante. Torturam e matam-no sem piedade. Antonio refere-se a um depoimento de alguém que sentia prazer, não em torturar, mas em matar. “Pega gosto” pelo assassinato.

O sentimento de religiosidade dos traficantes também é notado pelo autor. Estes possuem uma simpatia pelas religiões afro-brasileiras, A Umbanda e o Candomblé. Diz que eles se aconselham com os orixás e que estes estabelecem aquilo que devem fazer. Prestam culto a São Jorge, Exu, Cosme e Damião, santos ou entidades desse caldo de culturas que são as religiões afro-brasileiras.

Os motivos de distração dos traficantes, seus momentos de lazer, podem ser uns bailes funk ou uma viagem curta. E quando se fala em baile, lembra-se de música, e os raps, gênero musical por eles apreciado, podem fazer apologia do trafico ou trazer uma mensagem de paz.

E o mundo do crime? Será que os seus vários lados se tocam? Será que assalto a bancos, a carros-fortes ou seqüestros tem alguma relação com o tráfico de drogas? Uns pensam que sim, outros que não. As opiniões se dividem.

Quando são pegos pela Polícia, dependendo do traficante, sua fama, seu papel na área, sua cabeça tem um preço. A Polícia, melhor, sua “banda podre” procura, então, extorquir dinheiro dos traficantes para a liberação do comparsa. Essa extorsão chama-se “arrego” ou “mineira” e, geralmente, o preço é alto. Quando realmente prendem o traficante, usam a tortura para retirar-lhe informações. “Prende-se o sujeito e depois se descobre o que ele andou fazendo²”.

As batidas policiais nas favelas apresentam-se como fatos dramáticos para os moradores, porque os policiais, muitas vezes, abusam de seu poder, invadindo residências sem mandatos, prendendo arbitrariamente e, trocando tiros com os traficantes, as balas perdidas fazendo vítimas.

O autor termina este capítulo falando das ligações entre os grupos de traficantes da mesma facção, num esforço de mútua cooperação.

No capítulo quarto trata das prisões e a primeira frase do primeiro subtítulo diz: “Os comandos nascem dentro das prisões³”. Alianças são feitas aí dentro e levadas para fora das cadeias. Amizade é o que está na base dos comandos. A cobiça, o “olho grande” na área de alguém é motivo de discórdias entre as quadrilhas.

Os traficantes têm a obrigação de dar suporte aos que estão presos, muitas vezes os donos da área. Essa ajuda consiste em dinheiro, advogados ou até dar fuga a estes, já que o maior desejo de quem está preso é se ver livre. O autor encerra o capítulo com um depoimento de Flávio Negão, traficante já morto, onde ele diz que participam do tráfico pessoas que não aparecem e que seriam colarinhos brancos de todos os tipos.

Conclui seu trabalho fazendo um apanhado geral do livro, sempre estabelecendo ligações conceituais com a Antropologia e deixando à discussão sobre tão grave problema uma contribuição valorosa que acompanhamos até aqui, chamada “Um abraço para todos os amigos”.

Notas:
 RAFAEL, Antonio. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, EDUFF,1998.


1) pág. 74
2) pág.119
3) pág.139


O Anti - Semitismo e suas consequências


A temática da violência, porque imersa no nosso cotidiano, sempre me atraiu a atenção. Vestida de mil maneiras, ela encontra-se hoje marcando pessoas, física e psicologicamente. Muitos já a encaram com indiferença, enquanto não atingidos por ela. Alguns desejam resolve-la promovendo mais violência, esforço parecido com o de quem deseja apagar um incêndio usando, ao invés de água, gasolina. No entanto, vale refletir, quem não carrega dentro de si um pouco de violência?  

Acredito que um estudo sobre o anti-semitismo e suas conseqüências na Segunda Guerra Mundial pode servir para identificar a recorrência de certas práticas que sempre chocam pessoas com alguma sensibilidade. Os noticiários da grande imprensa, nos dias de hoje, tem invocado um sentimento de revanchismo no que se refere aos criminosos. Medidas como tortura e execução parecem válidas para instituições e populares. A imagem dos criminosos é super-dimensionada, passando estes a serem os grandes vilões da sociedade, enquanto que, por baixo dos panos, nos bastidores das decisões, as coletividades são roubadas por homens que usam como armas canetas. Não estou defendendo criminosos. Quero somente que as leis se cumpram. Não admito a demonização de ninguém. Os judeus, por largo tempo, mesmo não cometendo crime algum, foram vistos como ameaças e sofreram, forçando a comparação, um processo parecido de supervalorização da sua força, o que lhes daria, nas mentes que aceitaram essas idéias, um poder diabólico.

Uma outra reflexão que me motivou pesquisar este assunto, para efeito do trabalho de conclusão do curso sobre Segunda Guerra Mundial, foi a situação que vive o povo palestino. Tenho a impressão que esse povo, refugiado em sua própria terra, sob rígido controle (que chega mesmo as raias da violência física) do Estado de Israel, vive uma experiência de sofrimento que me traz à lembrança aquilo por que passaram muitos judeus, quando tiveram suas vidas encapsuladas nos guetos e rigidamente controladas por uma legislação perseguidora. Estou seguro que a vivência dos judeus, no contexto da Segunda Guerra, difere da experiência dos palestinos e da nossa, em contato com a violência do cotidiano. Mas é inegável que certas práticas parecem permanecer. Um estudo sobre anti-semitismo, portanto, reveste-se de importância e tem muito a oferecer aos homens de hoje que carregamos os prejuízos de ontem.

Através do trabalho de Pierre Sorlin, intitulado “O Anti-Semitismo Alemão” sabemos que os judeus chegaram na região do vale do Reno junto com os exércitos romanos. Em outras regiões, como a Renânia, a sua presença era quase tão antiga quanto a dos germanos. Ainda assim, os anti-semitas consideravam os judeus como estrangeiros, sem elementos de ligação com o solo germânico. 

Entre os séculos IX e XI, as comunidades judaicas espalharam-se significativamente. Apesar de alguns cultivarem o solo, um número maior dedicava-se ao artesanato e ao comércio, que era limitado para surgir concorrência, sendo que os comerciantes, fossem cristãos ou judeus, conjugavam esforços ao invés de competirem. As comunidades judaicas, ativas e detentoras de um notável conhecimento da Sagrada Escritura, tornaram-se motivo de preocupação para os cristãos, pois os judeus faziam prosélitos que resultaram em conversões. A Igreja assegurava a liberdade religiosa oficialmente. Alguns chefes eclesiásticos, no entanto, optavam pela violência. Conversões e batismos forçados entraram na pauta e foram praticados. 

Pelos fins do século X, os judeus começaram a se reunir todos num mesmo bairro, por uma questão de comodidade: pessoas que tinham interesses em comum e que desejavam permanecer perto umas das outras. O século XI foi um período de tensão. As expedições dos cruzados a Jerusalém provocaram uma verdadeira exaltação coletiva. Estes indivíduos sentiam-se numa missão que lhes permitia transgredir leis e tomar medidas que considerassem necessárias ao bem comum. Os cristãos acreditavam que a supressão, pela conversão ou extermínio, de todos os focos de resistência à fé era uma excelente obra religiosa. Boatos aparecem fazendo das comunidades judaicas cúmplices dos invasores que ameaçavam os países cristãos. Os bairros dos judeus foram pilhados em algumas cidades como Worms, Mogúncia e Colônia, e muitos judeus assassinados. Os pogroms apresentavam características recorrentes. Não se originavam de nenhum pretexto concreto. Quem agia eram sempre as pessoas humildes. Os que tinham melhores possibilidades financeiras desaprovavam, mas não intervinham. A religião virava pretexto: buscava-se a conversão do infiel. O interesse material, porém, estava sempre presente. Assim, as casas dos judeus foram saqueadas e as propriedades dos que morreram ou dos que fugiram eram vendidas. O ódio ao judeu reinava em toda a Europa e, apesar de ser proibido persegui-los, quando isso ocorria, não provocava indignação. 

A partir do século XII as comunidades judaicas tomaram consciência de que viviam em constante perigo, sob a ameaça de que as perseguições se repetissem. A situação política da região que viria a ser a Alemanha lhes favorecia, afinal, ali o poder era descentralizado e a questão judaica era uma oportunidade que os imperadores tinham para tentar intervir na região. As perseguições, além disso, na maioria das vezes, não eram generalizadas, o que permitia às comunidades fugirem das regiões que as perseguiam para outros locais. Tanto os imperadores quanto os senhores feudais jogavam com o medo dos judeus para tirarem proveito. Impunham-lhes condições rigorosas (pesados tributos muitas vezes) para permanecerem em certa localidade em troca da garantia de que não seriam massacrados. 

Temendo os motins populares, que se traduziam na pilhagem de seus estabelecimentos, os judeus estavam sempre em alerta para fugirem. A posse do dinheiro tornava-se uma necessidade, porque era a única coisa que podiam carregar facilmente. Por isso, os judeus começaram a trabalhar emprestando dinheiro a juros, muitas vezes elevados, porque não podiam contar com garantias sérias. Quando existiam muitos endividados numa região, os judeus eram daí expulsos.

Pelo século XII os judeus começaram a ser isolados do resto da população e de uma forma cada vez mais rigorosa. Foram segregados em bairros de péssimas condições e tiveram a liberdade destruída, sofrendo limitações de horários e dias para saírem do bairro onde moravam. As perseguições tinham um elemento comum: a fé. Os judeus deveriam aceitar o cristianismo ou desaparecerem. Acusações de que os judeus matavam os cristãos para usarem o seu sangue em rituais dos seus cultos e de que costumavam apunhalar hóstias consagradas surgiram, bem como a responsabilização por flagelos de doenças. A partir de então, começaram a atribuir aos judeus um poder maléfico.

A partir do século XVI os pogroms foram mais esporádicos e limitados. Os cristãos invadiam os bairros judeus, incendiavam as casas, saqueavam as lojas e retiravam-se. Havia vítimas, mas não se tratavam mais de massacres coletivos. A utilização de empréstimos tomados aos judeus crescera. Os soberanos, particularmente, precisavam bastante dos seus serviços. Só no terço final do século XIX os judeus tornaram-se, diante da lei, criaturas humanas no sentido pleno. A despeito disso, por que entre a existência de leis e o seu cumprimento existe uma distância, foram afastados do exercício de diversas funções, restando-lhes as profissões liberais, como o jornalismo, a política, o comércio e as agências financeiras, pouco consideradas pelos alemães.

No contexto da Revolução Francesa, territórios situados a margem esquerda do Reno foram anexados pela França. As classes dirigentes perceberam a situação de risco em que se encontravam. Os judeus sãos os primeiros a reclamar seus direitos, numa tentativa de alcançarem as vantagens dos seus irmãos que moravam no outro lado do Reno. Os alemães começaram a vislumbrar a necessidade de se criar uma unidade, baseada nos elementos comuns que dispunham: a língua e a história. Passavam a considerarem-se, assim, elementos de uma tradição única, que só podia manter-se mediante a eliminação de todas as impurezas. Consideravam que o judeu autêntico jamais se integraria na sociedade alemã. Foram feitos esforços no sentido de que os judeus renunciassem a sua fé. Aconteciam também movimentos de segregação, iniciativa que partira dos meios universitários, já que estes se consideravam responsáveis pela pureza da raça alemã. Em muitas universidades encontravam-se núcleos estudantis anti-semitas e massacres ocorreram, provocados e dirigidos por estudantes, no verão de 1819.

Em 1873, depois de uma grande fase de desenvolvimento econômico, houve uma grave crise financeira na Alemanha e os valores da Bolsa de Berlim colapsaram. Houve bancarrotas e escândalos financeiros envolvendo alguns judeus. Por terem colaborado no desenvolvimento industrial, tornaram-se símbolos do capitalismo apátrida e egoísta. Desencadeou-se uma violenta campanha anti-semita. Jornalistas difamadores vêem por detrás de todo escândalo a presença de um judeu.

No mesmo ano, um jornalista chamado Wilhelm Marr publicou uma obra intitulada “A Vitória do Judaísmo sobre a Germanidade”. A sua convicção de derrota apelava para os sentimentos de inveja e pintava um quadro sombrio de uma minoria que crescia cada vez mais em poder. O “inimigo” era agigantado e lhe conferiam poderes quase sobrenaturais. Em seis anos essa obra teve doze edições. No ano de 1879 fundou a “Liga dos Anti-Semitas”. Outros grupos surgiram, as vezes efêmeros, mas que não escondiam suas sinistras intenções, como a “União para o Extermínio dos Judeus”. Em fins do século XIX, o anti-semitismo estava caracterizado. Contava com jornalistas, intelectuais e professores, além da simpatia de agricultores descontentes e pequeno burgueses.

Adolf Hitler cresceu em um ambiente hostil aos judeus. Em Linz, onde viveu a infância, estes eram mal vistos. Consideravam-nos estrangeiros e exploradores do povo. No ano de 1907, aos dezoito anos de idade, foi para Viena, onde até pouco antes da Primeira Guerra um partido anti-semita dominou. Ai passou os anos decisivos da sua formação. Depois se transferiu, em 1913, para o berço do movimento nazista, Munique, na católica Baviera. O anti-semitismo não é uma infecção que se pega de uma só vez. É claro que Hitler já devia ter estereótipos em sua mente, produtos do ambiente e da educação da época, pois a uma antiga desconfiança adquirida em família, se junta um sentimento de profunda repulsa, que vai se tornando uma idéia fixa.

O ódio que desenvolveu não lhe fez montar nenhum programa anti-semita, servia para aumentar o orgulho de Hitler em pertencer ao povo alemão. Em Mein Kampf, no capítulo XI, traça um paralelo entre as virtudes do ariano e os vícios do judeu. Em 1926, posto em liberdade depois do fracasso do golpe de Munique, publica um segundo volume, com um tom diferente. Já se considerava o líder da Alemanha e traça as linhas mestras do seu programa. Os judeus foram apresentados como inspiradores da coalizão anti-germânica espalhada pelo mundo. Antes de chegar ao poder, Hitler não voltaria a abordar a questão. A ascensão ao cargo de Chanceler não provocou grandes mudanças. Ele fingia sempre considerar o anti-semitismo como um aspecto secundário da sua política. Defendia que na Alemanha não havia perseguição, mas defesa dos direitos do povo alemão. Buscava não chocar a opinião pública mundial. Pierre Sorlin acredita que ele não definira integralmente o objetivo de sua política judaica. Esse autor fala que, comparando-se os primeiros discursos com os de 1938 – 1939 e os do período da guerra, verifica-se que a perseguição passa a ser aceita.

Nos jornais alemães de 1928 encontravam-se nas primeiras páginas, nomes de personalidades israelitas. Desde o século XVIII vinha a Alemanha presenciando o aparecimento de muitos intelectuais judeus, mas raramente lhes dera esta atenção. Parecia que o fato de ser judeu não era mais um “crime”. Os estudantes citavam abertamente seus professores judeus. A integração parecia próxima. A guerra colocou os judeus ao lado dos outros cidadãos, pois estes participaram ativamente dos esforços para a tentativa da vitória. A República, que se seguiu a derrota militar, era favorável aos judeus. A aristocracia e a alta burguesia continuavam vivas, mas discretas. A sociedade se abriu aos judeus, que aproveitaram amplamente a situação.

Na política, que os alemães, segundo Sorlin, desprezavam, os judeus encontraram o caminho livre. A maioria dos grupos políticos, especialmente a social-democracia, recorria aos judeus. A rápida irrupção na sociedade e na vida política foi catastrófica para os judeus. Eles surgiram como os beneficiários da vitória dos aliados. Questionava-se se eles não teriam provocado a derrota, aliando-se aos inimigos. As condições de paz impostas pelos vencedores provocaram um choque e todos os que se aproveitaram do Tratado de Versalhes eram tidos por suspeitos. A República e a assimilação dos judeus estariam, assim, desde o início, intimamente ligadas e provocaram hostilidade.

As tentativas da estrema esquerda de conquistar o poder suscitou o seguinte raciocínio: a Revolução é promovida pelos judeus. Alguns revolucionários, como Rosa Luxemburgo, eram israelitas. O caráter internacional da Revolução chamou a atenção. Quem, senão os judeus, tem relações em toda a Europa? Os bons operários não são subversivos. Deve ter havido uma influência exterior. A classe operária é nacionalista, só o judeu é internacionalista. A relação entre judaísmo e comunismo internacionalista estava dada, apesar da atitude conservadora da maior parte dos israelitas. As massas acusavam os judeus de terem provocado a desordem. Nas memórias dos generais, publicadas entre as guerras, está presente a idéia de que os judeus arruinaram a Alemanha por dentro, através do internacionalismo.

O anti-semitismo alemão não morrera. A aparente integração dos judeus servia para agravá-lo. As reações anti-semíticas foram mais violentas que as do fim do século XIX. Brochuras anti-judaicas são publicadas, entre elas, “Os Protocolos dos Sábios de Sião”. Os alemães não sabiam que se tratava de um simples plágio de um panfleto escrito contra Napoleão III. Nesta obra, um judeu anônimo expunha um plano delirante de conquista mundial. Quando Hitler está no poder, o Ministério da Educação da Alemanha prescreveu este livro como compêndio escolar.

Desnorteados pela derrota, pela Revolução e pela inflação, os alemães procuravam uma referência para orientarem-se e acabaram voltando-se para a originalidade nacional. A Alemanha é um país diferente, que possui uma força que a vai levantar. Esta esperança é a raça. O temor de que o precioso sangue alemão fosse contaminado transformou-se em obsessão.

Todo movimento de extrema direita que se proclama “nacional”, deve, obrigatoriamente na República de Weimar, ser anti-judeu. O nazismo aí se enquadra. Muitos alemães provaram um vago sentimento de inquietude e de ódio ao judeu, apesar de, ao mesmo tempo, terem conhecido pessoalmente alguns israelitas, amigos seus, que não gostariam de ver nos guetos. 

Em 1935, o governo nazista promulgou a “Lei para a Defesa do Sangue e da Honra” (as “Leis de Nuremberg”) que proibia os casamentos e as relações extra-conjugais entre judeus e alemães não judeus (arianos), sob ameaça de severas penas, inclusive a morte. A justiça alemã considerava gravíssimo um “crime racial” porque os nazistas consideravam que este afetaria as gerações futuras e a pureza da raça alemã. A política oficial nazista era excluir radicalmente os judeus da vida econômica, social e cultural, e forçar sua expulsão do país. Cerca de quatrocentos decretos anti-judaicos foram impostos para isso. A partir de 1939, todos os judeus foram obrigados a adotar “Israel” e “Sara” como seus primeiros nomes. Essas leis anti-judaicas forma implantadas também fora da Alemanha à medida que esta anexava territórios e países, até o início da guerra em 1939.

Para Hitler, a história da humanidade era uma permanente luta entre as raças. O combate contra os judeus era justificado como uma necessidade biológica. Os discursos nazistas referiam-se aos judeus como “ratos”, “parasitas”, “bacilos”, “agentes de contaminação”. Um ideólogo do partido, Rosemberg, acreditava que o judeu representava na história o oposto metafísico do ariano. Quanto mais o judeu é humilhado, mais o ariano se sente exaltado. Os alemães mediam sua força e sua grandeza pela fraqueza dos judeus. Ele avaliava as vantagens que tinha ao compará-las com as privações impostas aos judeus.

Houve, no entanto, muitas oscilações na política anti-semita alemã entre 1933 e 1939 e havia conflitos na cúpula nazista sobre como combater os judeus, se através de leis e medidas burocráticas ou através da violência aberta. A Noite dos Cristais em 9 de novembro de 1938 foi uma vitória dos nazistas que eram favoráveis as medidas violentas. Utilizando como pretexto o assassinato de um funcionário da embaixada alemã em Paris por um jovem judeu, os nazistas organizaram um gigantesco ataque contra os judeus em toda a Alemanha. Lojas arrasadas, sinagogas destruídas, vinte a trinta mil judeus presos em campos de concentração, e 36 mortos.

Durante a Segunda Guerra Mundial a discriminação e a perseguição aos judeus foram implantadas nos países da Europa ocupados pela Alemanha nazista. As medidas e as conseqüências variaram de país a país. Os aliados ou neutros eram pressionados pela Alemanha a também adotar uma política de restrição contra os judeus.

Na Polônia, o processo de perseguição aos judeus foi rápido, violento e sem qualquer inibição legal. As comunidades judaicas lá não constituíam apenas o maior núcleo populacional judaico do mundo. Eram o principal centro cultural, religioso e político dos judeus, que sofreram violências e humilhações diárias. Milhares morreram durante a invasão do país. Os alemães objetivavam confinar todos os judeus na parte oriental do país. Em 26 de outubro de 1939, os judeus entre 14 e 60 anos foram obrigados a trabalhos forçados, depois proibidos de freqüentar cinemas e teatros, escolas e universidades, além de usar o transporte público. Foram excluídos das profissões liberais e da legislação social. Tiveram seus negócios expropriados. O uso de uma braçadeira branca com a estrela de David foi imposto a partir de 23 de novembro de 1939 e a estrela amarela a partir de 1° de setembro de 1941. Com esses distintivos eram facilmente identificados.

Na etapa de concentração dos guetos, o objetivo nazista era expulsar os judeus da Europa ocupada. Himmler desejava uma grande imigração dos judeus para a África ou outra colônia. Um dos planos era mandá-los para Madagascar, uma ilha no sudeste da África, mas o plano fracassou, por conta da hegemonia naval britânica nessa região. As deportações dos judeus alemães para a Polônia começaram em fevereiro de 1940, apesar de decidirem pela permanência dos judeus mestiços (com dois avós judeus e os cônjuges de casamentos mistos) para salvarem a “metade alemã do sangue”.

A fome nos guetos era crônica. A ração alimentar média era de 800 calorias, supridas pelas organizações judaicas de assistência. O gueto era fechado, sendo a saída excepcionalmente permitida. Os alemães criaram Conselhos Judaicos (Judenrat), que deveria fazer um recenseamento da população e servir de intermediário para a implementação das ordens alemãs. Os Conselhos cobravam impostos, ajudavam a maioria pobre e organizava os trabalhos forçados. Os nazistas estabeleceram, também, em cada gueto, uma polícia judaica e, para conseguirem voluntários, ofereciam vantagens como casa melhor e mais comida. Contra o Judenrat, considerado colaboracionista, parte dos moradores do gueto de Varsóvia criou Comissões de Casas, organizadas por edifícios, para ajudar os mais pobres que não estariam sendo devidamente auxiliados pelas instituições ligadas ao Conselho.

Em 22 de Junho de 1941, a Alemanha nazista invadiu a União Soviética. Com essa atitude, começou o extermínio em massa dos judeus europeus sob o domínio do nazismo, principalmente através de fuzilamentos realizados por unidades especiais que acompanhavam o exército alemão. Objetivavam libertar Moscou do jugo judeu-bochevista. Uma unidade do exército fez propaganda ideológica e preparou folhetos.

Em cada cidade aonde os alemães chegavam mandavam reunir os judeus e, após recenseá-los, sob o pretexto de que seriam “reassentados para trabalhar” em regiões pouco povoadas. O extermínio era escondido a todo o custo, até o final. Eram mortos com um tiro na nuca ou alinhados em fila, em locais próximos a trincheiras anti-tanques ou valas muitas vezes cavadas por eles próprios. Frequentemente eram obrigados a deitar nas covas e eram mortos em blocos.

O método de matar era tema de discussão entre os nazistas. Otto Ohlendorf, comandante do Einsantzgruppen A, usava o método de fuzilamento, ao invés do tiro na nuca em que o soldado ficava perto da vítima, o que poderia dar margem a tentativas de reação de quem se pretendia matar. Essa obsessão de encontrar uma maneira de matar em massa e de forma impessoal acabou desembocando na utilização dos caminhões / câmaras de gás móveis. Estes eram adaptados de forma que o escapamento ficasse voltado para dentro da carroceria e o gás fosse produzido pelo funcionamento do motor. A asfixia demorava 15 minutos. Ao abrir as portas do caminhão, os mortos tinham a face desfigurada e os corpos cobertos de fezes. Os nazistas obrigavam os judeus a retirarem os corpos e os enterrarem. O método foi abandonado porque o número diário de mortos estava aquém da pretensão nazista de matar milhões de judeus.

Os campos de extermínio eram seis, todos localizados na Polônia. Os campos de Sobibor, Belzec, Chelmno (Kulmhof) e Treblinka foram construídos para o extermínio. Auschwitz-Birkenau e Maydanek eram imensos complexos em que havia um campo de extermínio e também um campo onde foram instaladas indústrias que empregavam o trabalho forçado dos presos. Os judeus chegavam aos campos de trem vindos dos seus países de origem ou da Polônia, no caso dos que haviam sido deportados para este país entre 1939 e 1941. Todos os campos de extermínio, da mesma forma que os guetos, forma construídos em locais próximos de importantes entroncamentos ferroviários para facilitar as deportações. Nestes transportes, com vagões superlotados, morria elevado número de pessoas por falta de água e ventilação. Os trens eram hermeticamente fechados. Ao chegar aos campos de extermínio, os judeus eram levados para as câmaras de gás. Em Auschwitz e Maydanek uma parte dos que chegavam era selecionada para trabalhos forçados. Esse procedimento era feito por médicos, que decidiam quem ia viver e quem ia morrer.

Quando os judeus chegavam aos campos de extermínio, os nazistas mentiam-lhes sobre seu destino. As câmaras de gás eram disfarçadas de banheiros com chuveiros para desinfecção. Na ante-sala das câmaras, os alemães diziam aos judeus que estes iam tomar um banho. As vítimas se despiam e recebiam cabides numerados com a recomendação de não esquecer onde tinham deixado a roupa. Podiam receber também sabão. Muitas vezes eram obrigados a entrar com os braços levantados para ocupar menos espaço. Os guardas impediam conversas entre os presos do campo e os recém-chegados. Pretendiam que caminhassem sem pânico e em boa ordem para a câmara de gás.

Em Treblinka, utilizou-se monóxido de carbono nas câmaras de gás. A asfixia por esse gás podia demorar três horas e exigia o funcionamento de um motor. Foram feitas diversas experiências com vários tipos de gás e o que matava mais rápido era o Zyclon B (ácido prússico), um inseticida. Este gás matava as pessoas num intervalo de três a dez minutos. A operação de retirada dos cadáveres das câmaras de gás era feita por um comando de trabalho formado por judeus. Os nazistas não queriam lidar com os cadáveres. A retirada de três mil corpos podia durar seis horas. Os judeus dessa unidade recebiam certos “privilégios” no campo, como um barracão especial e um pouco mais de comida, e acreditavam que não seriam mortos devido a importância do seu trabalho. A cada três meses aproximadamente, os nazistas matavam esses judeus e faziam novas equipes.

Após a retirada dos cadáveres, eram extraídos os dentes de ouro. Depois eram queimados. A gordura que saia dos corpos era reaproveitada para alimentar o fogo dos crematórios, as cinzas como adubo, os ossos para a fabricação de produtos industriais. Os pertences dos mortos eram aproveitados.

Nos campos onde existiam empresas instaladas, a expectativa média de vida de um preso que trabalhava nestas fábricas era de três a seis meses. Nas minas de carvão que existiam perto do campo, a expectativa média de vida era de um mês. Quando os presos já estavam tão fracos que não podiam trabalhar, eram enviados para as câmaras de gás e substituídos pelos judeus recém-chegados das deportações.

Roney Cytrynowicz, no seu livro “Memória da Barbárie, a história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial”, chama a atenção para a figura de Adolf Eichmann, o encarregado de coordenar as deportações para o extermínio dos judeus, que seria o retrato do que a filósofa Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. O crime contra os judeus estava de tal forma imerso no cotidiano das pessoas que o genocídio foi realizado sem que se colocasse a questão de qualquer constrangimento ético. No nazismo, foi abolido o conceito de que matar inocentes é crime. Matar os judeus era a lei. Eichmann levou essa conduta ao extremo. Ordenou, de forma burocrática, a deportação para o extermínio de milhões de inocentes. Ele não se colocava qualquer sentimento de culpa, porque seu trabalho era sancionado pelo Estado e pela sociedade. Para ele, tratava-se de uma boa oportunidade de emprego e carreira.

Para que o extermínio funcionasse normalmente naquele Estado, era preciso que cada alemão continuasse a executar sua tarefa da mesma maneira rotineira com que sempre o fizera, estivesse ou não envolvido com o genocídio. A maioria das pessoas era indiferente ou omissa. Tanto os nazistas fanáticos quanto esses omissos foram indispensáveis para o nazismo realizar a matança. Durante a guerra, na Alemanha, certamente muitas pessoas sabiam ou suspeitavam do que acontecia nos campos de extermínio, mas o que importa é que nada no dia a dia as despertava para a responsabilidade os as levava a manifestar qualquer oposição ativa contra esses crimes, de tal forma que estavam institucionalizados.

Com relação aos médicos que trabalhavam em Auschwitz, o constrangimento moral era diluído pela idéia de que eles executavam “trabalho médico”. Era mesmo comum que além deles, os guardas recebessem visitas de suas famílias no fim de semana e havia casos de famílias de guardas que moravam em casa nos próprios campos. Segundo relato desses familiares, os médicos e guardas eram “pessoas amáveis e dedicadas à família”. Uma espécie de separação mental entre o “trabalho” e a família, que permitiu que matassem sem inibição.

 Em maio de 1944, organizações judaicas, como o Conselho Judaico Mundial, apelaram aos governos dos Estados Unidos e Grã-Bretanha para que bombardeassem o campo de extermínio de Auschwitz, ou ao menos a ligação ferroviária entre a Hungria e a Polônia por onde estavam passando mais de 180 mil judeus húngaros que seriam mortos nas câmaras de gás. Os apelos foram recusados. Alegou-se que esses ataques desviariam recursos militares importantes e colocariam em risco a vida de pilotos aliados. Os aliados defenderam durante toda a guerra a idéia de resgate apenas pela vitória. Nenhum esforço militar seria desviado para salvar os judeus. Recusaram-se a empreender ações isoladas de salvamento porque receavam que, uma vez que realizassem uma operação de resgate, as organizações judaicas pressionariam para que outros judeus também fossem salvos.

Mesmo conscientes da tragédia dos judeus, muitos governos colocaram restrições a sua entrada. Uma das únicas saídas possíveis dos judeus da Europa era tentar migrar para a Palestina, onde o movimento sionista construía as bases de um Estado judeu independente. A política britânica, porém, dificultou ao máximo esta imigração, atendo-se sempre às insuficientes cotas fixadas antes da guerra.

A posição do Papa Pio XII era de relativa conciliação com o regime nazista. Ele preferia Hitler à Stálin, de tão anti-comunista que era. Guardou silêncio sobre os crimes nazistas para não dificultar a luta da Alemanha com a União soviética. Não mencionou uma única vez de forma explícita o genocídio dos judeus, mesmo quando os nazistas deportavam os judeus de Roma em 1943. Os inúmeros exemplos de oposição de padres católicos e de Igrejas e Conventos que esconderam judeus por toda a Europa foram decisões locais, não de cúpula.

A despeito da violência do regime totalitário, as pessoas não são simples vítimas de um sistema ou governo. Elas participam, calam e se omitem. Houve casos na Alemanha de militares que se opuseram e foram transferidos, de esposas “arianas” que protestaram diante da prisão de seus maridos judeus e do bispo Von Galen, que protestou contra o extermínio dos “doentes mentais” e permaneceu na sua Igreja.

Vale lembrar que houve diferenças do comportamento da população em relação aos judeus nos diversos países dos quais eles foram deportados, o que mostra a existência de opções, independente da diferença no que se refere ao grau de controle alemão. Na Noruega, a população ajudou a esconder os judeus. O governo da Suécia, país neutro na guerra, ofereceu-lhes refúgio, salvando 930 pessoas. A Bélgica foi um dos países onde a resistência civil em favor dos judeus foi melhor organizada. Na Dinamarca, contudo, a população ofereceu a mais maciça resistência enfrentada pelos alemães contra as deportações. Mesmo ocupada pela Alemanha, manteve certa autonomia administrativa, por conta de sua neutralidade na guerra. Em 1942, o governo dinamarquês anunciou que renunciaria caso os alemães impusessem qualquer medida anti-semita. As autoridades do governo dinamarquês disseram também que se os nazistas tentassem impor o uso do distintivo amarelo aos judeus, o rei dinamarquês seria o primeiro a usá-lo. Em agosto de 1943, os alemães submeteram à Dinamarca um governo militar e iniciaram as deportações. A polícia dinamarquesa avisou aos alemães que estes não poderiam invadir as casas dos judeus. Foram deportados, então, os que abriram as portas quando os policiais da Gestapo bateram. Em outubro de 1943 a frota pesqueira dinamarquesa foi mobilizada para transportar para a Suécia 7906 judeus e alguns não-judeus casados com judeus. Foi a única operação de salvamento em que os judeus não tiveram que pagar pelo seu resgate. Mesmo na Itália de Mussolini, com decretos anti-judaicos, semelhantes aos da Alemanha, houve pouco rigor no cumprimento destes. O anti-semitismo ai não era forte.

Em 19 de abril de 1943, ocorreu o primeiro levante armado no interior da Europa ocupada pela Alemanha nazista. Foi a revolta do gueto de Varsóvia. Os combatentes judeus resistiram por quatro semanas até o gueto ser totalmente arrasado em 16 de maio de 1943. Houve revoltas também em vários guetos e em campos de extermínio, nestes, particularmente, realizadas pelos comandos que operavam as câmaras de gás quando perceberam que seu assassinato estava iminente com o fim das deportações para estes campos. Algumas dezenas de judeus conseguiram escapar para as florestas e sobreviveram à guerra.

É, sem dúvida, um assunto inesgotável, pelo número que publicações que ainda hoje faz gerar, bem como também por conta das discussões que alimenta. É uma memória que não pode ser apagada e nem deixada empoleirada em estantes. É viva, palpitante e curiosamente nos faz pensar em questões que são muito parecidas com as que vivemos nos dias que correm. Sabemos que os tempos são outros, mas é inegável que o mundo foi marcado pelos eventos desdobrados na Segunda Guerra Mundial. Que não se permita uma experiência de sofrimento semelhante para nenhum povo.

Bibliografia:

Sorlin, Pierre. O Anti-Semitismo Alemão. São Paulo, Editora Perspectiva, 1974.

Morais, Vamberto. Pequena História do Anti-Semitismo. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972.

Besançon, Alain. A Dor do Século: sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da Shoah. Lisboa, Quetzal Editores, 1999.

Cytrynowicz, Roney. Memória da Barbárie: a História do Genocídio dos Judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo, Nova Stella: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.