Palestra
apresentada no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor em 20 de agosto de 2022.
Marco
Aurélio Gomes de Oliveira
“Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo, eh
Necessidade, vontade, eh
Necessidade.”
“Comida”,
Titãs.[1]
A conhecida música do grupo “Titãs”
chamada “Comida” termina falando em “necessidade”, depois de usar “desejo” e
“vontade”. Tudo aquilo de que não se pode abrir mão de maneira alguma é
necessário. Dessa forma, o que diz respeito à sobrevivência material do nosso
corpo físico interessa-nos de maneira direta, principalmente respirar, comer,
beber, poder banhar-se, vestir-se com dignidade e ter um teto onde dormir.
Essas seriam as necessidades mais urgentes, imediatas, sem as quais seria muito
difícil manter corpo e alma unidos. “Desejo” e “vontade”, palavras sinônimas,
expressam na canção a expectativa de possuir ou alcançar alguma coisa que, na
música, vai além das necessidades materiais mais urgentes porque, afinal de
contas, as pessoas, de maneira geral, querem “viver”, no sentido pleno da
palavra, e não apenas “existir”. Devemos perguntar-nos, porém, se boa parte das
pessoas, neste momento político e econômico em que vive o Brasil – foco
principal de nossa análise – e o mundo, podem ter acesso aos elementos mais
básicos para viverem.
Allan Kardec, em O livro dos Espíritos indaga aos Benfeitores Espirituais na
pergunta 704 se, dando ao homem a necessidade de viver, Deus lhe facultou as
maneiras de consegui-lo, ao que estes respondem positivamente, acrescentando
que seria “essa a razão por que faz que a
Terra produza de modo a proporcionar o necessário aos que a habitam, visto que
só o necessário é útil.” [2] De
cara ficamos sabendo, portanto, que o planeta reúne condições para produzir de
modo a atender as necessidades básicas de todos. Por outro lado, também
sabemos, por experiência própria ou por informações de terceiros (meios de
comunicação, colégios, etc.) que nem todos tem acesso a este necessário, mínimo
para a sobrevivência. Na questão 705 os Espíritos Superiores desdobram a idéia.
Segundo eles, se a criatura humana se contentasse sempre com o necessário a
Terra daria conta dessa demanda. “Se o
que ela produz não lhe basta a todas as necessidades, é que ele emprega no
supérfluo o que poderia ser aplicado no necessário (...) imprevidente não é a
Natureza, é o homem que não sabe regrar o seu viver.” [3]
“Supérfluo” é tudo aquilo que ultrapassa a medida do necessário, é o além da
conta. Neste segundo momento, eles apontam um mau uso dos recursos em razão
daquilo que poderia ser apontado como uma certa indisciplina no viver. O
psicanalista, filósofo e sociólogo alemão Eric Fromm, em seu livro A revolução da esperança: Por uma tecnologia
humanizada, faz-nos uma provocação interessante:
Já é tempo de
começarmos a examinar todo o problema das necessidades subjetivas e verificar
se sua existência é uma razão suficientemente válida para sua satisfação; de
pôr em dúvida e examinar o princípio geralmente aceito da satisfação de todas
as necessidades – embora nunca se indague sobre suas origens ou efeitos. [4]
Quando ele fala em “necessidades
subjetivas” refere-se àquelas que variam de pessoa para pessoa. Lança o
questionamento sobre a validade absoluta dessas necessidades e se deveriam ser
aceitas sempre. Por último, faz com que reflitamos sobre a origem dessas
necessidades e seus resultados. Trocar de aparelhos de telefone celular todo
ano é válido? E encher-se de calçados, já que temos apenas dois pés? Na questão
711, Allan Kardec quer saber se o uso dos bens da Terra é um direito de todos
os homens e os Espíritos respondem que “esse
direito é conseqüente da necessidade de viver.” [5]
Também dizem que o gozo desses bens materiais são atrativos para “instigar o homem ao cumprimento da sua
missão e para experimentá-lo por meio da tentação” [6],
que esta serve para desenvolver sua razão e “preservá-lo
dos excessos”. [7]Notem
que os Espíritos aqui não estão dizendo que uns tem mais direitos sobre os bens
da Terra do que outros. Pelo contrário. Todos devem dispor desses bens porque
precisam sobreviver. Os bens da Terra abrem, à humanidade, possibilidades de
potencializarem seu crescimento material e moral, desde que bem utilizados.
Fornecem os elementos de que o ser humano precisa para melhorar seu entorno e
criar facilidades para sua vida, que vão desde a roda até o smartphone. Ao
mesmo tempo que são facilitadores, podem constituir-se, no entanto, em motivo
de tropeço moral, pelo mau uso dos recursos. Allan Kardec diz que aquele que se
alegra na pratica dos excessos de todo tipo para alcançar prazer abre mão da
razão e demonstra a preponderância que a sua natureza animal ainda exerce sobre
sua natureza espiritual.[8]
Há
muita gente no Brasil que não vem tendo suas necessidades mais elementares
atendidas. O DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Econômicos) informa-nos em sua página na internet que o salário mínimo
necessário para o atendimento de uma família composta por quatro pessoas
deveria ser de R$: 6.388,55 no mês de julho de 2022. Entretanto, o salário
mínimo real é de R$: 1.212,00, cinco vezes menos que o necessário.[9]
Quantos brasileiros ganham mensalmente o equivalente a esse valor apontado pelo
DIEESE? 33 milhões de pessoas no Brasil ganham até um salário mínimo e,
literalmente, dão nó em pingo d’água para sobreviver. Estes “passaram
a representar desde o ano passado (2021) a maior fatia da população ocupada na
divisão por faixas de renda”.[10]
Em outras palavras: na população ocupada – se é que dá pra chamar a
informalidade de ocupação – a maioria dos brasileiros ganha no máximo um
salário. De acordo com dados estatísticos do IBGE em 2019, esse salário mínimo
necessário apontado pelo DIEESE passa longe de 90% dos trabalhadores
brasileiros, quantidade de pessoas que ganha menos que R$: 3.500,00.[11] A
consequência natural da maioria dos brasileiros ganharem abaixo do mínimo
necessário é o endividamento e a inadimplência, ou seja, a pessoa não tem
dinheiro para pagar a dívida e dá calote. De acordo com a pesquisa feita pela Confederação
Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), “78% das famílias brasileiras estão endividadas, e 29% estão com contas
atrasadas”. [12]
Praticamente oito em cada dez famílias tem dívidas e três de dez estão com as
contas atrasadas. Se o salário não é suficiente para pagar as contas, também
não o é para cuidar da nutrição da maioria dos brasileiros e de seus
familiares. Tem muita gente comendo menos que o necessário para sobreviver sem
comprometer a própria saúde. “Em 2022,
33,1 milhões de pessoas não têm o que comer.” [13] Notem
que é quase o mesmo número de pessoas que recebe até um salário mínimo. De
acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional (Rede PENSSAN), “mais da
metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em
algum grau – leve, moderado ou grave (fome). O país regrediu para um patamar
equivalente ao da década de 1990.” [14]
Esse número representa 125 milhões de brasileiros!
Do que podemos retirar desse momento da
análise é que tem muita gente, mas muita mesmo, vivendo com recursos abaixo do
necessário e pouquíssimas pessoas vivendo com o excesso. A pobreza e a miséria
são fenômenos sociais. Originam-se num sistema econômico ou, se preferirem,
numa forma de sociabilidade chamada “Capitalismo” que, para produzir o excesso
de poucos se vale da miséria de muitos. Não se trata de um fenômeno da
natureza. E se é um fenômeno social é, portanto, histórico, faz parte de um
momento na trajetória humana – este que estamos vivendo – mas não quer dizer
que vai perdurar para sempre. O que virá depois dele vai depender do futuro que
queremos para nós e para o mundo, porque não dá para pensar o estar no mundo
descolado dele, de onde retiramos os recursos para a nossa manutenção. Se o
futuro será o colapso climático e ecológico do planeta provocado pela correria
desenfreada da produção capitalista ou um arranjo social diferente que atenda
às necessidades humanas e permita o desenvolvimento de suas potencialidades sem
comprometer a saúde planetária, ainda está em aberto. Allan Kardec comenta, no
capítulo sobre a “Lei de conservação” que “a
natureza não pode ser responsável pelos defeitos da organização social, nem
pelas consequências da ambição e do amor-próprio.” [15] Essa
organização social adoecida, que nos colocou na borda do precipício climático
não é natural.
Os meios de comunicação no dia 28 de
julho de 2022 noticiaram que batemos, nesta data, o “Dia da Sobrecarga da
Terra”. Isso quer dizer que neste dia terminamos de gastar tudo aquilo que a
natureza poderia produzir, espontaneamente, no período de um ano. A partir daí,
entraríamos numa espécie de “cheque especial” do planeta, avançando no consumo
de recursos que, mais adiante, farão falta para nós e para as gerações futuras
(se reencarnarmos aqui...). Neste ritmo de consumo de recursos naturais, seriam
necessárias 1,75 Terras, quase dois planetas, para suprir a procura de recursos
de maneira sustentável.[16]
Vocês devem estar pensando, e de maneira muito justa, para onde estão indo
esses recursos, já que muitos de nós e a maioria da população brasileira, como
vimos, anda carente deles. Terras são desmatadas para a criação de gado e a
produção de alimentos, tanto para humanos quanto para a produção de ração
animal. Os ecossistemas também são destruídos para a exploração da madeira das
florestas e os recursos minerais do solo, como os metais que são usados tanto
na construção civil quanto nos smartphones. A grande exploração da Terra
objetiva, assim, neste momento histórico em que vivemos sob a sociabilidade
capitalista, a produção de mercadorias. Não é por outro motivo que Karl Marx, filósofo
alemão que, segundo o Espírito Joanna de Ângelis, foi um dos que produziu uma
revolução nos conceitos e costumes, [17]
resolveu começar o volume um de O Capital
tratando da mercadoria. De acordo com ele, abrindo seu livro, “a riqueza das sociedades onde reina o modo
de produção capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias, e a
mercadoria individual, por sua vez, aparece como sua forma elementar.” [18]
Apresenta-nos a mercadoria como um “objeto
externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas de um tipo qualquer.” [19]
Eis que, mais uma vez, topamos com a necessidade! A existência da mercadoria só
tem sentido se ela serve para algo, se ela tem, portanto, valor de uso para
quem a consome ou adquire.
De que maneira essa coleção de
mercadorias, que podemos observar em shoppings, supermercados e pela internet,
é criada e se torna disponível para os potenciais consumidores? Para facilitar
a explicação e a análise, suponhamos que um pequeno grupo de pessoas que possua
recursos financeiros reúna-se e decida investir na criação de uma fábrica de
telefones celulares. Para tanto, tomarão uma quantidade de dinheiro, 100
milhões de dólares e, com ela, comprarão 80 milhões em meios de produção
(máquinas e matérias primas) e 20 milhões em força de trabalho. Numa parte do
processo de trabalho, na metade dela, os trabalhadores produzirão o correspondente
ao valor de sua força de trabalho, que equivale ao valor do seu salário, que no
nosso exemplo totaliza os 20 milhões de dólares.
O segundo
período do processo de trabalho, em que o trabalhador trabalha além dos limites
do trabalho necessário, custa-lhe, de certo, trabalho, dispêndio de força de
trabalho, porém não cria valor algum para o próprio trabalhador. Ele gera
mais-valor, que, para o capitalista, tem todo o charme de uma criação a partir
do nada. A essa parte da jornada de trabalho denomino tempo de trabalho
excedente, e ao trabalho nela despendido denomino mais-trabalho. [20]
Se os trabalhadores realizam em produtos
metade da jornada de trabalho para si e metade para os capitalistas donos da
fábrica de celulares, já que o mais-valor é trabalho não pago embolsado pelos
capitalistas, eles produziram um valor equivalente a 40 milhões de dólares
quando são somadas as duas metades da jornada de trabalho. Uma vez que os
celulares estejam prontos, precisam ser vendidos. Digamos que o processo de
produção leve 4 meses e o processo de circulação leve outros 2 meses. A fábrica
não vai parar de funcionar enquanto esses celulares não forem vendidos. Ao
final de 4 meses, outra leva de celulares é produzida enquanto aquela é
vendida. Uma parte daquele mais-valor – trabalho não pago – será usada no novo
ciclo de produção de celulares. A outra parte vem do sistema de créditos.
O caráter
inteiro da produção capitalista é determinado pela valorização do valor de
capital adiantado, ou seja, em primeira instância, pela produção do máximo
possível de mais-valor; em segundo lugar, porém, pela produção de capital, isto
é, pela transformação de mais-valor em capital. A acumulação ou produção em
escala ampliada, que aparece como meio para a produção sempre aumentada de
mais-valor e, por conseguinte, para o enriquecimento do capitalista, como
objetivo pessoal deste último, e que está incluída na tendência geral da produção
capitalista, torna-se, por meio de seu desenvolvimento, (...) uma necessidade
para cada capitalista individual. O aumento constante de seu capital passa a
ser uma condição para a conservação desse mesmo capital. [21]
Ou seja, para obter mais-valor dos trabalhadores
– trabalho não pago – os capitalistas precisam repetir e ampliar a produção
para vender cada vez mais celulares, conforme nosso exemplo, porque o
mais-valor é realizado na venda, é aí que ele toma posse dos valores produzidos
pelo trabalho não pago. É com esse mais-valor que ele enriquece. Então, só
interessa aos empresários donos da fábrica de celulares fabricarem e venderem
cada vez mais. Isso vale para tudo que é produzido para ser vendido no mercado.
Os mais velhos devem lembrar-se que os produtos fabricados há algumas décadas
atrás tinham um tempo de vida maior do que os atuais. Havia geladeiras que
duravam vinte ou trinta anos. Hoje duram muito menos. É proposital. Se a
geladeira dura menos, você precisa trocar ela com mais freqüência. E o que os
fabricantes de geladeira mais querem é que isso aconteça. O nome disso é
obsolescência programada.
Trata-se de
uma estratégia de mercado focada em desenvolver produtos com falhas planejadas,
ou recursos a menos, de modo a oferecer um modelo posterior com correções/mais
funcionalidades, mas com outros problemas pré-fabricados. [22]
Os fabricantes de celulares costumam
lançar mão desse recurso, seja através de atualizações de programas que reduzem
a performance dos aparelhos, ou deixando de fornecer atualizações para o bom
funcionamento deles. Os fabricantes também procuram atrair consumidores
oferecendo aparelhos com novas funcionalidades, como mais câmeras, telas
maiores, etc. Isso tudo para vender mais, para repetir o processo de produção e
consumo para realizar, cada vez mais, mais-valor.
Sobre
a questão do consumo, o psicanalista Eric Fromm nos lembra que a “industria sabe que, pela publicidade, é
capaz de criar necessidades e desejos que podem ser antecipadamente calculados”.
[23]
Todos devem lembrar-se das propagandas de cerveja veiculadas nos canais de TV,
onde as ideias de saúde, juventude, alegria e amizade são associadas ao consumo
da bebida alcoólica. Roupas, calçados, aparelhos eletrônicos e carros também
são associados a idéia de status e poder. Eric Fromm nos apresenta aquela que
seria a “liberdade do consumidor”. Segundo ele, “essa liberdade de conceder seus favores à sua mercadoria preferida
cria um senso de potência. O homem que é humanamente impotente e se torna potente
– como comprador e consumidor.” [24]
Além disso,
O consumo
compulsivo compensa a ansiedade. (...) a necessidade desse tipo de consumo
origina-se no sentido de vazio interior, desesperança, confusão e tensão.
‘Absorvendo’ artigos de consumo, o indivíduo reafirma a si próprio que, por
assim dizer, ‘ele é’. [25]
Acrescenta, ainda, que “a maioria dos impulsos para o prazer, se
forem compulsivos, incluindo o sexo, não é causada pelo desejo de prazer, mas
pelo desejo de evitar a ansiedade.” [26]Portanto,
atuam sobre as pessoas estimulando o consumo: a obsolescência programada dos
produtos, a publicidade, que ajuda a criar necessidades fictícias, esse senso
de potência dado pela liberdade de escolher, ainda que, essencialmente, essas
mercadorias variem muito pouco em termos de formato e funcionalidades
(microondas, por exemplo) e, por último, esse desejo de preencher os vazios
existenciais através do consumo, numa tentativa de fuga da ansiedade provocada
por uma existência alienada, já que muitas vezes fundada em escolhas
artificiais, que não modificam substancialmente a vida.
Para alguns, a idéia de colocar limites
à crescente produção de mercadorias choca-se com as palpáveis necessidades
materias da maioria das pessoas. Aqueles que ganham – e muito – com essa
expansão das atividades econômicas, com esse constante aumento na produção de
mercadorias, sem se importarem com o futuro do planeta, também a defendem, não
importando o dia de amanhã. De acordo com Eric Fromm,
A meta do
crescimento econômico máximo é aceita como dogma, indubitavelmente devido à
urgência das necessidades reais e também devido ao princípio semi-religioso do
aumento ilimitado na produção como a meta da vida chamada “progresso”, a versão
industrial do céu. [27]
Uma ilimitada expansão das atividades
econômicas que comprometa a habitabilidade do planeta Terra e ao mesmo tempo
jogue para escanteio milhões de pessoas excluídas da sociedade de consumo, ou
porque passam fome (828 milhões de pessoas em 2021), ou porque estejam muito
próximo dela (2,3 bilhões de pessoas em insegurança alimentar em 2021), além do
que não são donas do fruto do próprio trabalho nem dos meios de produção, é o
anúncio de uma tempestade de consequências duríssimas para os excluídos. [28] Allan
Kardec, na pergunta 717 questiona os Espíritos Superiores:
Que se há de
pensar dos que açambarcam os bens da Terra para se proporcionarem o supérfluo,
com prejuízo daqueles a quem falta o necessário?
“Olvidam a lei
de Deus e terão que responder pelas privações que houverem causado aos outros.”
[29]
Na resposta à questão 806, os Espíritos
dizem que a desigualdade das condições sociais não é uma lei da natureza, não
foi criada por Deus, mas sim obra do homem. [30]
Dessa forma, os causadores das desigualdades – os homens que exploram outros
homens – são aqueles que provocam esse estado de privações materiais das
maiorias e colocam a Terra no precipício do colapso climático, que já sentimos
as consequências nas secas e chuvas frequentes. Os Espíritos dizem, na resposta
à questão 719, que o desejo por bem-estar é natural. “Deus só proíbe o abuso, por ser contrário à conservação. Ele não
condena o bem-estar, desde que não seja conseguido à custa de outrem e não
venha a diminuir-vos nem as forças físicas, nem as morais.” [31] Desde
que essa procura por bem-estar não cause prejuízo a outras pessoas ele é legítimo.
Chama a atenção na resposta que os Espíritos sugerem que o empenho que alguém
coloque na busca por esse bem-estar também pode ter consequências negativas
para si mesmo. Boa parte das pessoas trabalha muito – a maioria delas – para
poder receber o suficiente para manter corpo e alma unidos. Uma grande massa de
desempregados ajuda a comprimir, a espremer os salários para baixo. O desespero
da privação faz com que muita gente, para sobreviver, aceite realizar qualquer
tipo de serviço por qualquer tipo de pagamento. Pagando menos salários, a
quantidade de mais-valor (trabalho não pago) extraída dos trabalhadores é maior.
Esse dinheiro a mais fica no bolso do capitalista. Falando sobre a jornada de
trabalho, Karl Marx afirma:
Après moi le
déluge! [Depois de mim, o dilúvio] é o lema de todo capitalista e toda nação
capitalista. O capital não tem, por isso, a mínima consideração sobre a saúde e
duração de vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter
essa consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte
prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos
martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)? [32]
Não tem consideração com a vida do
trabalhador nem com a manutenção do próprio planeta Terra. Importa-lhes,
apenas, lucrar. O que vem depois não os interessa. Quando não conseguiram
reunir, ainda, condições para viverem de rendimentos de ações de empresas,
alguns desses capitalistas se jogam numa busca desenfreada e quase irracional
para acumular bens, comprometendo a saúde física e mental. Vivem como se não
fossem morrer e acabam morrendo como se não tivessem vivido. Aqui podem ser
incluídos profissionais liberais de classe média que, embora se julguem
economicamente próximos dos ricos, em realidade estão mais perto dos pobres, já
que não podem deixar suas atividades remuneradas, seu trabalho, para viver de
renda. Essa corrida insana faz lembrar a parábola do rico insensato, do
evangelho de Lucas (12:16-21):
A terra de um
homem rico deu uma grande colheita. E o homem pensou: ‘O que vou fazer? Não
tenho onde guardar minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou
derrubar meus celeiros e construir outros maiores; e neles vou guardar todo o
meu trigo, junto com meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: meu caro, você
possui um bom estoque, uma reserva para muitos anos; descanse, coma e beba,
alegre-se!’ Mas Deus lhe disse: ‘Louco! Nesta mesma noite você vai ter que
devolver a sua vida. E as coisas que você preparou, para quem vão ficar?’ Assim
acontece com quem junta tesouros para si mesmo, mas não é rico para Deus. [33]
Infelizmente já tive oportunidade de
ouvir – e é uma pena que não dê para “desouvir” – uma argumentação por parte de
um espírita que procurava legitimar a fartura de poucos e a privação de muitos
pela reencarnação. De acordo com ele, atacar as matrizes, as causas que
promovem a desigualdade social de um certa maneira acabaria prejudicando os
mecanismos de causa e efeito acionados na reencarnação. Não seriam criadas condições
para que Espíritos culpados, comprometidos no erro, expiassem suas faltas em
condições de privação. Levado à sério, esse argumento comprometeria qualquer
tipo de auxílio que viesse a melhorar a situação dos que vivem em penúria
matéria porque, afinal de contas, se estão passando por isso, as causas seriam
justas. Para piorar, poderia ser estendido a todos aqueles que ficassem
enfermos, porque, se estão doentes, isso há de ter uma causa que se não estiver
nesta vida, estará em outra e, assim, lutar contra a doença e pela saúde o
privaria de passar pela experiência que os sofrimentos advindos da enfermidade
poderiam oferecer. É a negação de qualquer esforço de melhoria das condições de
vida material das pessoas. É a negação dos esforços para transformar o planeta
Terra num lugar melhor para todos. Por último, é indicativo de que, embora com
o rótulo de espírita e do suposto comprometimento com o progresso, em realidade
esse espírita – infelizmente representando de uma parcela importante de adeptos
do Espiritismo que pensam mais ou menos parecido – age para defender o status
quo, a manutenção da situação como ela está, e por tudo que já foi exposto, a
situação não está boa.
Allan Kardec, no segundo capítulo de O
Evangelho segundo o Espiritismo tem um importante item que dá um caminho para vencer
esses males provocados pelo egoísmo, que tomam forma no capitalismo. De acordo
com ele,
a idéia clara
e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé
que acarreta enormes consequências sobre a moralização dos homens, porque muda
completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. Para
quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida
corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. [34]
Sabendo de onde veio, para onde vai e
da realidade da vida invencível que se desdobra em dois mundos, o material e o
espiritual, a criatura humana reúne condições de assumir um compromisso ético e
moral consigo e com os demais, além de tomar para si uma atitude de respeito e
cuidado pela casa planetária. Essa certeza fortalece as boas disposições para
enfrentarmos as mudanças necessárias para a manutenção das condições do planeta
e da vida material com dignidade de seus habitantes. Como diz a canção dos Titãs,
que mencionei no início, as pessoas querem diversão, arte, balé... Também
acredito que o mundo onde as pessoas possam ter atendidas suas necessidades
“espirituais”, subjetivas, além do atendimento de suas necessidades materiais
mais fundamentais, é o mundo onde o meio ambiente será respeitado e as
coletividades serão as donas dos meios de produção e dos frutos do próprio
trabalho.
[1] LETRAS. Disponível em: https://www.letras.mus.br/titas/91453/ Último acesso em 11/8/22.
[2] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro:
FEB,1995, p. 337 e 338.
[3] Idem, p. 338.
[4] FROMM, Eric. A revolução da esperança: Por uma tecnologia
humanizada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984, p. 128.
[5] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit,. p. 340.
[6] Idem, p. 341.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] DIEESE. “Pesquisa nacional da
Cesta Básica de Alimentos”. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html Último acesso em 11/8/22.
[10] G1. “Renda em queda e vida no
aperto: os 'corres' dos brasileiros que não ganham nem 1 salário mínimo”.
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/04/19/renda-em-queda-e-vida-no-aperto-os-corres-dos-brasileiros-que-nao-ganham-nem-1-salario-minimo.ghtml
Último acesso em 11/8/22.
Levantamento da LCA Consultores com base nos indicadores da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (PNAD), que é feita trimestralmente pelo IBGE.
[11] UOL. “Calculadora de renda:
90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3.500; confira sua posição na lista”.
Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/12/13/calculadora-de-renda-90-brasileiros-ganham-menos-de-r-35-mil-confira-sua-posicao-lista.htm
Último acesso em 11/8/22.
Dados da Pnad Contínua - Rendimento de todas as fontes 2019, do IBGE.
[12] G1. “Endividamento e
inadimplência são os maiores em 12 anos; 8 em cada 10 familias têm dívidas,
aponta CNC”. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/08/08/endividamento-e-inadimplencia-sao-os-maiores-em-12-anos-8-em-cada-10-familias-tem-dividas-aponta-cnc.ghtml Último acesso em 11/8/22.
[13] OXFAM. “Fome avança no Brasil
em 2022 e atinge 33,1 milhões de pessoas”. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em-2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/ Último acesso em 11/8/22.
[14] Idem.
[15] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit., p. 339.
[16] VEJA. “Sobrecarga da Terra:
Humanos consumiram mais do que planeta pode produzir”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/sobrecarga-da-terra-humanos-consumiram-mais-do-que-planeta-pode-produzir/ Último acesso em 11/8/22.
[17] FRANCO, Divaldo Pereira. Dias gloriosos. Salvador: Livraria
Espírita Alvorada Editora, 2010, p. 11. Disponível em: https://files.comunidades.net/portaldoespirito/Joanna_de_Angelis__Dias_Gloriosos.pdf Último acesso em 11/8/22.
[18] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política:
livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017, p.
113.
[19] Idem.
[20] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política:
livro I: o processo de produção do capital, op. cit., p. 293.
[21] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política:
livro II: o processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014,
p. 158.
[22] GOGONI, Ricardo. “O que é
obsolescência programada?”. Disponível em: https://tecnoblog.net/responde/o-que-e-obsolescencia-programada/ Último acesso em 10/8/22.
[23] FROMM, Eric. A revolução da esperança, op. cit., p.
128.
[24] Idem, p. 129.
[25] Idem.
[26] Idem, p. 130.
[27] FROMM, Eric. A revolução da esperança, op. cit., p.
139.
[28] NAÇÕES UNIDAS. “Fome cresce no
mundo e atinge 9,8% da população global”. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/07/1794722#:~:text=O%20relat%C3%B3rio%20Estado%20da%20Seguran%C3%A7a,da%20pandemia%20de%20Covid%2D19 Último acesso em 11/8/22.
[29] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit., p. 342.
[30] Idem, p. 376.
[31] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, op. cit., p. 342
e 343.
[32] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política:
livro I: o processo de produção do capital, op. cit., p. 342.
[33] BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Ivo
Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 1331.
[34] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio
de Janeiro: FEB, 2004, p. 72.