O Bem e o Mal - O Livro dos Espíritos, perguntas 629 a 637. Rio de Janeiro, 12 de Abril de 2011.
O título da palestra, para nós, pode fazer com que tenhamos respostas prontas a essas questões. Elas podem parecer-nos óbvias. Ninguém, aqui presente, desencarnado ou encarnado, está destituído de conhecimentos prévios a respeito do assunto. Se perguntados sobre a definição de bem e mal, formularemos alguma, a partir daquilo que acreditamos ser um e outro. Temos, em comum, os que aqui nos encontramos, a cultura. Estamos situados historicamente e o conhecimento que guardamos, a respeito deste assunto da noite, bem como de outros, é originado, ou melhor, participa de nossa realidade de tempo e espaço. Influenciamos e somos influenciados. Ao renascermos, encontramos um sistema de valores de um lugar específico, mas que varia de um local para outro. Muitas vezes, em outras encarnações, participamos da construção deste sistema de valores. Não acredito, por exemplo, que sejamos “cristãos de primeira viagem”. Espíritas até podemos ser, já que a Doutrina Espírita é recente, historicamente falando.
Marilena Chauí, em sua obra “Convite à Filosofia”, conta-nos um pouco sobre Sócrates.
Percorrendo as praças e ruas de Atenas - contam Aristóteles e Platão -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir.
Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem?
As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se em duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem. [1]
Irritavam-se, ainda segundo a autora, porque confundiam valores morais com fatos constatáveis em sua vida cotidiana, como, por exemplo, a “bravura” de alguém numa guerra. Além disso, tomavam fatos normais da “vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes” [2], ou seja, é certo porque meu antepassado fez. Confundiam “fatos e valores, pois ignoravam as causas ou as razões por que valorizavam certas coisas.” [3] Os atenienses viviam repetindo valores morais sem qualquer reflexão crítica quanto à origem deles.
Allan Kardec, na questão 629, pede aos Espíritos Superiores uma definição de moral, ao que lhe respondem que “A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus.” [4] Bem proceder, para os Espíritos, é ter a capacidade de distinguir o bem do mal. Fundamenta-se no fazer o bem a todos, que eles consideram a lei de Deus. Identificar o que é certo e o que é errado a partir da necessidade de fazer o bem aos demais.
Essa moralidade está referenciada, ou seja, sabemos de onde vem. A lei de Deus nos foi resumida, por Jesus, naquela sentença “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.” [5] Da resposta dada acima pelos Espíritos, depreende-se que é um mal não praticar o bem. Perder a ocasião de fazer o bem é um erro que cometemos, quem sabe, diariamente. Nas menores ações do cotidiano, tempo oportunidades de testemunhar o Cristianismo, revivido pela Doutrina Espírita, que dizemos adotar. Nos pequenos cuidados com aqueles que nos cercam, naqueles colegas de trabalho, nas pessoas que nos prestam serviços e àquelas pessoas a quem servirmos. Por que mencionamos a reflexão de Sócrates no início? Porque a Doutrina Espírita nos convoca à crença fundamentada na razão. “Amai a Deus, mas sabendo porque o amais; crede nas suas promessas, mas sabendo porque acreditais nela,” [6] já nos falava José, espírito protetor em O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. Conhecer a origem do nosso conhecimento fortalece-o em nós. Consolidamos nossa escolha porque, mesmo reconhecendo-a situada historicamente (hoje, nos nossos dias, como na época de Jesus), pela razão, enxergamos nela possibilidades de redenção pessoal e, por consequência, social. Fazemos o bem e amamos a Deus porque sabemos os “bastidores da vida”, que se desdobra em ângulos que muita gente não acredita. O Espiritismo, através dos relatos de Espíritos em diferentes situações morais, depois de desencarnados, descortina-nos os resultados das ações morais escolhidas por estes. Felizes, se tiveram uma vida regrada pelo bem, infelizes, se pautados pelos sentimentos de egoísmo e orgulho.
O Codificador da Doutrina Espírita, na pergunta seguinte, procura aclarar o assunto, indagando aos Espíritos a maneira de se distinguir o bem do mal, ao que eles respondem, quase que repetindo a resposta da pergunta anterior. Informam-nos que “O bem é tudo o que é conforme à Lei de Deus; o mal, tudo que lhe é contrário. Assim, fazer o bem é proceder de acordo com a Lei de Deus. Fazer o mal é infringi-la.” [7] Mas, poderíamos nos perguntar, como distinguir o que é bem e o que é mal? Será que teríamos como? Este questionamento foi transmitido aos Espíritos codificadores, que responderam que “Sim, quando crê em Deus e o quer saber. Deus lhe deu a inteligência para distinguir um do outro.” [8]
Crer em Deus traz para o indivíduo responsabilidade ético-moral que faz com que se paute de acordo com a crença que esposa. Acreditar em Deus faz com que a criatura humana pense nos resultados futuros de suas ações, nesta e em outra vida. No caso da Doutrina Espírita, essa crença, como observamos, não é desprovida de razão. Não é vinda, unicamente, através de revelações. Ela se fundamenta, sim, na revelação mas, diferente das demais denominações religiosas, estas revelações são comprováveis. Os Espíritos explicaram o fenômeno das mesas girantes, na introdução de O Livro dos Espíritos, informando que eram eles mesmos, as almas dos homens desencarnados, aqueles que os provocavam. E isso foi comprovado, pois os Espíritos prestavam informações que eram checadas, posteriormente, tais como nomes, endereços enquanto vivos, parentescos, etc. Os Espíritos, ao proporem esta resposta, não estão preocupados com a eventual definição que daremos da idéia de bem, uma vez que nos reconhece legatários da tradição cristã que, na conhecida “regra de ouro”, coloca-nos a necessidade de fazermos aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem. Assinalo que este pensamento está formulado em diversas tradições e tempos, desde o “O que você não quer que lhe façam, não o faça aos demais”, atribuído à Confúcio, ou o “Nenhum de vocês é um fiel até que deseje ao seu semelhante aquilo que deseja para si mesmo” do Islã ou, por fim, o “Homem, aquilo que você não gosta, não o faça a seus semelhantes”[9], da tradição africana de Ba-Congo. Além disso, a exemplaridade de Jesus convoca-nos, igualmente, a copiar-lhe a conduta. Não por acaso os Espíritos da Codificação apontam-no como guia e modelo neste mesmo capítulo de O Livro dos Espíritos.
Distinguir o bem do mal, quando faltam a crença em Deus e o desejo de compreender, pode ser difícil. Essa dificuldade na definição de um e outro me fez recordar um clássico da literatura mundial, do escritor francês Victor Hugo, “Os Miseráveis”. Penso que ninguém deve desencarnar sem ler esta obra. É uma lição de humanidade. Conta-se a história de Jean Valjean, um homem que foi preso por roubar um pão, para alimentar seus sobrinhos, e fora condenado como criminoso comum, virando um trabalhador forçado. Na cadeia degrada-se, procura fugir diversas vezes, sem resultado. Dezenove anos escorrem na esteira do tempo quando ele é solto. Procura recomeçar, com dificuldades de domar suas feras interiores. Na obra, existe um personagem chamado Javert que pode lembrar muita gente que conhecemos. É um inspetor de Polícia, filho de uma cartomante com um homem que se encontrava nas galés (realizando trabalhos forçados). Nasceu numa prisão.
Esse homem era composto de dois sentimentos muito simples e relativamente muito bons, mas que ele tornava maus por exagerá-los; o respeito à autoridade e o ódio à rebelião. E a seu ver o roubo, o homicídio, todos os crimes, enfim, eram apenas formas de rebelião. Ele envolvia, em uma espécie de fé cega e profunda, todos os que tinham uma função no Estado, desde o primeiro-ministro até o guarda campestre, e cobria de desprezo, de aversão e de asco tudo o que tivesse, por uma vez, ultrapassado o limite legal do mal. Era absoluto e não admitia exceções. De um lado dizia: “O funcionário não se engana, o magistrado nunca está errado”. E, de outro lado: “Estes estão irremediavelmente perdidos. Nada de bom pode sair deles”. [10]
Este homem não acredita na mudança dos seres humanos para melhor, bem como cria na infalibilidade da lei e de seus homens. Um pobre convencido da eficiência da visão dos poderosos, e que trabalhava, porque não, na manutenção do status quo. A sua religião era a Lei. Fica fácil supor que ele perseguia a Jean Valjean. Num determinado momento da história, recebe ajuda daquele que considerava um perdido. Deve-lhe a vida!
Dever a vida a um malfeitor; aceitar essa dívida e reembolsá-la; achar-se contra a própria vontade, no mesmo nível de um foragido da justiça, e pagar-lhe um favor com outro favor; deixar que lhe dissessem: Vá embora, e por sua vez dizer: Está livre; sacrificar por motivos pessoais o dever, essa obrigação geral, e sentir nesses motivos pessoais algo de geral também, e talvez de superior (...)
Que fazer agora? Entregar Jean Valjean era errado; deixar Jean Valjean livre era errado. No primeiro caso, o homem da autoridade descia abaixo do homem preso; no segundo, um miserável ia mais alto que a lei e metia-lhe o pé por cima. (...)
Jean Valjean o desconcertava. Todos os axiomas que haviam sido o ponto de apoio de toda a sua vida desmoronavam diante desse homem. A generosidade de Jean Valjean para com ele, Javert, o oprimia. (...) Javert sentia que algo horrível penetrava em sua alma, a admiração por um bandido. Respeitar um bandido, seria possível? (...) Por mais que se debatesse, em seu íntimo reconhecia a sublimidade desse miserável. Isso era odioso.
Um malfeitor benfazejo, um miserável compassivo, meigo, prestativo, clemente, pagando com o bem o mal, perdoando a quem o odiava, preferindo a compaixão à vingança, preferindo até perder-se a perder seu inimigo, salvando quem nele batera, ajoelhado no alto da virtude, mais vizinho do anjo que do homem! Javert era obrigado a confessar a si mesmo que esse monstro existia! (...)
Era forçado a reconhecer que a bondade existia. Esse criminoso fora bom. E ele mesmo, coisa incrível, acabara de ser bondoso. (...)
Para Javert, o ideal não era ser humano, ser grande, sublime; era ser irrepreensível. [11]
Por dever-lhe a vida, soltou-o. Por isso o seu conflito. Não acreditava na redenção do Ser Humano. Descobriu-se em erro. Seu sistema de crenças, de valores, estava falido, diante dele. Algo destoou daquilo que ele acreditava. Aconteceu algo que não esperava. Receber lição de humanidade onde não julgava que fosse possível haver humanidade. Javert não suporta o dilema que se colocou em sua frente. As leis, as regras, são feitas pelos homens, com interesses específicos em situações específicas. Via de regra, interesses de classes sociais determinam essas regras do jogo. As Leis devem ser feitas para o homem, devem existir em função dos seres humanos enquanto coletividade, não para o atendimento de interesses específicos de classes específicas.
633. A regra do bem e do mal, que se poderia chamar de reciprocidade ou de solidariedade, é inaplicável ao proceder pessoal do homem para consigo mesmo. Achará ele, na lei natural, a regra desse proceder e um guia seguro?
“Quando comeis em excesso, verificais que isso vos faz mal. Pois bem, é Deus quem vos dá a medida daquilo de que necessitais. Quando excedeis dessa medida, sois punidos. Em tudo é assim. A lei natural traça para o homem o limite das suas necessidades. Se ele ultrapassa esse limite, é punido pelo sofrimento. Se atendesse sempre a voz que lhe diz - basta, evitaria a maior parte dos males, cuja culpa lança à Natureza.” [12]
O que é o necessário para nós? Qual a medida da necessidade? Onde termina o necessário e começa o supérfluo? Como estabelecer este limite honestamente para nós? Para estabelecê-lo, é necessário que hajamos com honestidade conosco mesmo, sem tentarmos criar recursos para burlar essa medida, tentando aliviar nossa barra. Tudo que é bom, que nos dá prazer - porque se o prazer fosse ruim não teria sido posto à nossa frente por Deus -, se utilizado em excesso é prejudicial. Que tenhamos o bom senso, no entanto, de entender que, quando digo isso, não me refiro ao vício em substâncias químicas, sejam elas o álcool, a maconha ou a cocaína. O excesso pode tirar-nos do roteiro, pode fazer com que esqueçamo-nos daquilo que viemos fazer aqui na Terra. Estamos aqui para transformarmo-nos em pessoas melhores, crescermos moralmente e intelectualmente. Resgatarmos os diversos erros que cometemos em outras existências. Não estamos a passeio. A vida nos oferece oportunidades de sermos úteis a cada minuto. Em qualquer tempo podemos ajudar, podemos ser úteis e podemos crescer. “Poxa, mas eu estou aqui, sentado, ouvindo a palestra, como posso ser útil agora?” Pode ser útil procurando raciocinar em cima do que é dito, refletir no que está sendo exposto, pensar maneiras de operacionalizar o que dizemos ou, simplesmente, direcionar um bom pensamento para alguém. Uma mensagem atribuída a Francisco Cândido Xavier é muito interessante, a respeito da questão do necessário e do supérfluo, que é tratada, também, em O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Uns queriam um emprego melhor; outros, só um emprego.
Uns queriam uma refeição mais farta; outros, só uma refeição.
Uns queriam uma vida mais amena; outros, apenas viver.
Uns queriam pais mais esclarecidos; outros, ter pais.
Uns queriam ter olhos claros; outros, enxergar.
Uns queriam ter voz bonita; outros, falar.
Uns queriam silêncio; outros, ouvir.
Uns queriam sapato novo; outros, ter pés.
Uns queriam um carro; outros, andar.
Uns queriam o supérfluo; outros, apenas o necessário. [13]
Às vezes nós temos tanto que nem percebemos o quanto temos, em se comparando com aqueles privados de quase tudo, até, às vezes, do direito de viverem.
Kardec, na questão 634, indaga aos Espíritos o porquê do mal estar na natureza das coisas, referindo-se ao mal moral. Questiona, então, se Deus não poderia ter criado a Humanidade em condições melhores. Na resposta, as Entidades Venerandas relembram-lhe algumas respostas de perguntas anteriores.
“(...) os Espíritos foram criados simples e ignorantes (115). Deus deixa que o homem escolha o caminho. Tanto pior para ele, se toma o caminho mau: mais longa será sua peregrinação. Se não existissem montanhas, não compreenderia o homem que se pode subir e descer; se não existissem rochas, não compreenderia que há corpos duros. É preciso que o Espírito ganhe experiência; é preciso, portanto, que conheça o bem e o mal. Eis por que se une ao corpo.” (119) [14]
Relembrando as condições iniciais do Espírito, no seu estado de simplicidade e ignorância, apontam-nos os Espíritos que Deus deixa-nos o mérito da escolha. Se escolhermos o bem, teremos nossas eternidades abreviadas, do contrário, serão maiores. Mas, o que é fundamental, chegaremos a destinação final. Só existe uma fatalidade no universo, que a Doutrina Espírita afirma: Seremos felizes, porque, um dia, seremos Espíritos puros. Chamaram-me a atenção os exemplos que se valeram os Espíritos em sua resposta. Se não fossem as montanhas, não compreenderíamos a possibilidade de subirmos e descermos. Se não houvesse as rochas, não compreenderíamos a existência de corpos duros. O saber pela experiência, pela experimentação. É preciso que o Espírito ganhe experiência. Diante da dificuldade, inventar-se, reinventar-se. Lembrei-me de um livro de História, Uma História da Guerra, de John Keegan. Recordei-me que muitos exércitos perderam combates porque não modificaram seus métodos de luta. Quando eles ganhavam os outros, eles procuravam repetir ao máximo suas estratégias e técnicas. Só que ficavam conhecidos e, diante de inovações, eram superados. Os problemas com que nos defrontamos são esses exércitos que lutam diferente, pedindo-nos posturas alternativas, para superar-lhes. Uma feliz vinheta da TV Futura diz que não são as respostas que movem o mundo, mas as perguntas. As questões que a vida nos coloca, que precisam ser respondidas. Ao realizar a pesquisa sobre as perseguições sofridas por alguns espíritas na cidade do Rio de Janeiro nos anos 1930 e 1950[15], tive contato com um livrinho de pesquisa, recomendado pela professora orientadora, Laura Antunes Maciel, chamado “A pesquisa em História” [16] onde as autoras citavam uma frase de Sócrates que pude testemunhar a validade: “Quando eu descobri todas as respostas da vida, mudaram-se as perguntas.” À medida que a pesquisa respondia as questões que eu havia me colocado para pesquisar, novas questões surgiam-me, abrindo novas possibilidades de pesquisas. Com a vida, concordando com Sócrates, é assim. A descoberta do antibiótico, ao passo do enorme benefício que nos trouxe no combate às bactérias nocivas ao nosso organismo, colocou-nos algumas questões: Como fazer, atualmente, com as bactérias super-resistentes? Como remediar os efeitos colaterais da medicação? E por aí a fora.
Pode causar estranheza quando, na resposta dos Espíritos, encontramos dito que é preciso que o homem conheça o bem e o mal, como se fazer o mal fosse uma necessidade para o crescimento. Se levarmos em conta que “o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor” [17] compreenderemos que, ao não fazer o bem, o homem estará, naturalmente, fazendo o mal. Aliás, em diversos momentos da Codificação é dito que é um mal não fazer o bem. Ora, o homem, na situação de suas primeiras encarnações, onde está adquirindo experiência, aprendendo ainda, em diversos momentos irá deixar de praticar o bem, na melhor das hipóteses. Isso quando não praticar o mal deliberadamente, ou, dito de outra forma, na intenção de prejudicar seu semelhante. Não conheço criança nenhuma que tenha aprendido a caminhar sem cair, nem alguém que tenha aprendido a andar de bicicleta sem levar tombo. Dos erros, extraímos lições, experiências, para que não tornemos a errar, ou a pecar, como falava Jesus.
Kardec, nos seus comentários afirma que
As condições de existência do homem mudam de acordo com os tempos e os lugares, do que lhe resultam necessidades diferentes e posições sociais apropriadas a essas necessidades. Pois que está na ordem das coisas, tal diversidade é conforme à lei de Deus, lei que não deixa de ser una quanto ao seu princípio. [18]
O homem organiza de diferentes maneiras a sua vida, de acordo com o tempo e o local em que vive. Refiro-me à estratificação social, bem como àquilo que considera necessário para manter-se. Comparando-se o modo de viver dos seres humanos na Terra, mesmo nos dias de hoje, é possível perceber a diversidade de formas e, inclusive, temporalidades, pelas permanências no tempo de costumes e práticas ancestrais. O que serviu em um tempo, deixa de se fazer necessário no futuro. Modifica-se, apesar dessas permanências, de acordo com as novas questões que a sociedade vai colocando-se, à medida que situações novas surjam desafiadoras. Os contatos humanos servem para operar essas mudanças. Incorporam-se costumes, maneiras de viver, antigas formas de organizar a vida são deixadas de lado.
Muitas vezes, algumas religiões que, posicionando-se contrárias ao Espiritismo, lançam mão de idéias inscritas em livros do Antigo Testamento Bíblico, que procuram legitimar a proibição da comunicação com os mortos, atribuída a Moisés. Sem adentrarmos nas questões de autenticidade histórica (se foi Moisés mesmo quem escreveu, que tipos de mudanças o texto pode ter sofrido no tempo, etc.), reflito: Se alguém lança mão de proibições, cuja origem situa-se a mais de 3.500 anos, num tempo e local totalmente diverso do nosso, portanto descontextualizadas, é que considera estes textos de lei legítimos, porque não, de aplicação geral para o nosso tempo. Dessa maneira, trago alguns trechos desta legislação, contida nos livros do Antigo Testamento, utilizados para responder a Laura Schlessinger, apresentadora de TV norte-americana que destratou os homossexuais:
a. Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levíticos 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?
b. Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?
(...)
d. Levíticos 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso?
e. Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 claramente afirma que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo mesmo?
(...)
g. Levíticos 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?[19]
Imaginem se tomamos estas recomendações, das tradições do Antigo Testamento, como atemporais, e as aplicamos na atualidade? Lamentavelmente, no mundo muçulmano, temos a instituição do apedrejamento, a lembrar-nos a brutalidade que existe em nós, mas não podemos ser condescendentes com os ocidentais e suas penas de morte, legítimas por lei ou não, bem como suas guerras contra o terrorismo.
636. São absolutos, para todos os homens, o bem e o mal?
“A lei de Deus é a mesma para todos; porém, o mal depende principalmente da vontade que se tenha de o praticar. O bem é sempre o bem e o mal é sempre o mal, qualquer que seja a posição do homem. Diferença só há quanto ao grau de responsabilidade.” [20]
Desenvolvendo o raciocínio da questão anterior, na pergunta 637 indaga sobre a culpa de um canibal, pelo fato de nutrir-se da carne humana, ao que os Espíritos reafirmam a importância da vontade no caso, acrescentando que “tanto mais culpado é o homem, quanto melhor sabe o que faz.” [21] Kardec, nos comentários que tece a respeito da questão, acrescenta que “a responsabilidade é proporcionada aos meios de que ele (o homem) dispõe para compreender o bem e o mal”.[22]
O mal, desta maneira, está ligado à intencionalidade. E não é dessa maneira que nosso sistema judiciário observa a questão, ao distinguir, por exemplo, o homicídio doloso (com a intenção de matar) do homicídio culposo (sem esta intenção)? Perdoem-me os juristas se simplifiquei a questão, mas tomando-a por este aspecto, simplesmente, é possível concluir que, aí, a justiça humana está em sintonia com a Justiça Divina. Pelo menos no papel. O homem que rouba para matar a fome de crianças, como Jean Valjean do livro de Victor Hugo, pode ser menos culpado que algum criminoso do colarinho branco, que age com cálculo e frieza. Ambos, no entanto, erraram, guardadas as devidas proporções. No entanto - e é a reflexão que quero deixar-, que tipo de sociedade é a nossa, cujos valores e necessidades fictícias, modelos de sucesso colocados como objetivo último da felicidade humana, fazem com que os endinheirados procurem atingir seus objetivos custe o que custar, acumulando cada vez mais? Será que a opulência de alguns não causa a miséria daqueles que roubam para matar a fome, no desespero? Isso, se não contarmos aqueles que, graças a Deus, não tem coragem de roubar, mas, lamentavelmente, morrem desnutridos...
[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ed. Ática, 2000, p. 436.
[2] Idem, p. 437.
[3] Idem.
[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro, FEB, 1996, p. 310.
[5] Mateus 22: 34 a 40.
[6] KARDEC. Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 306. Disponível em: http://www.kardec.com/litgratuita/evan_br.pdf Último acesso em 30 de Março de 2011.
[7] KARDEC. Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 310.
[8] Idem.
[9] FREIRE, Emerson. A regra de ouro. Disponível em: http://emeric.wordpress.com/2007/12/06/a-regra-de-ouro/ Último acesso em 30 de Março de 2011.
[10] HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo, Martin Claret, 2007, vol. 1, p. 182.
HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo, Martin Claret, 2007, p. 478-481.
[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 310-311.
[13] XAVIER. Francisco Cândido. Necessário e supérfluo. Disponível em: http://www.ideariumperpetuo.com/superfluo-necessario.htm Último acesso em 30 de Março de 2011.
[14] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 311.
[15] OLIVEIRA, Marco Aurélio Gomes. “Livres”, porém perseguidos: O cotidiano das relações entre espíritas e a Polícia na cidade do Rio de Janeiro (1930-1950). Rio de Janeiro, UFF, 2010.
[16] VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY,Maria Aun. A Pesquisa em História. São Paulo: Editora Ática, 2002, p.71.
[17] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro, FEB, 1996, p. 72.
[18] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 311.
[19] Lamentavelmente, não possuo a referência. Este texto eu copiei de uma comunidade do Orkut há anos atrás.
[20] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 312.
[21] Idem.
[22] Idem.