Os animais e o homem - O Livro dos Espíritos, perguntas 602 a 610. Rio de Janeiro, 8 de Fevereiro de 2011.
Dada à extensão do tema, no que diz respeito à quantidade de perguntas de O Livro dos Espíritos que o abordam, preferiu-se dividi-lo em duas partes. A fim de que não percamos a linha de raciocínio estabelecida na exposição do tema por Allan Kardec, farei comentários sobre a primeira parte.
Na primeira questão do assunto, a 592, os Espíritos são indagados quanto à linha de demarcação que separa os homens dos animais, no que diz respeito à inteligência. Na resposta à indagação, os Espíritos afirmam que o homem é um ser à parte e que a Natureza lhe ofereceu tudo, de maneira que ele pode, utilizando-se de sua inteligência, inventar tudo de que ele necessite para conservar-se. Afirmam, ainda, que o homem se reconhece pela faculdade de pensar em Deus. Existe, aliás, alguma notícia, nos meios acadêmicos, de que algum grupamento humano considerado “primitivo”, não tenha exercido a crença em Deus, ou em algum ente que lhe seja superior? Numa breve pesquisa que fiz, na internet, não encontrei nada a respeito.
No desenvolvimento da exposição, é apontado que os animais possuem instintos, mas que não obram apenas por ele. Utilizam-se de inteligência, ainda que limitada, a fim de satisfazerem a suas necessidades físicas. O desenvolvimento excepcional que demonstrem se dá por conta da influência do homem, que lhe pode ensinar certas coisas, limitadas, de acordo com suas capacidades. Um excelente exemplo disso é o adestramento de cães que, capacitados, muitas vezes, conduzem até os indivíduos cegos.
É apontado também que os animais possuem certa linguagem, não articulada em sílabas, evidentemente. Possuem meios de comunicação entre si, o que o fazem para o atendimento de suas necessidades de sobrevivência. Isso se dá, também, com a relativa liberdade de ação que dispõem, por não terem os mesmos deveres que os seres humanos. Pelo fato de demonstrarem relativa inteligência e, consequentemente, alguma liberdade, Kardec indaga aos Espíritos, na pergunta 597 se existe neles algum princípio independente da matéria, ao que os Espíritos afirmam-lhe que sim e que sobrevive a experiência da morte. Dizem-lhe que a distância que as almas dos homens da dos animais é equivalente a que medeia entre a alma dos homens e de Deus.
Mas... E depois da morte, o que se passaria com as almas dos animais? Conservariam a sua individualidade e a consciência de si mesmas? A individualidade, segundo os Espíritos, é mantida, mas a vida inteligente permaneceria em estado latente. Na questão 600 Kardec deseja saber se elas permaneceriam numa espécie de erraticidade, como a alma humana, no espaço de tempo que separa uma encarnação da outra. Respondem-lhe os Espíritos que elas permaneceriam sim num estado deste tipo, mas que não são Espíritos errantes, seres que pensam e obram por sua própria vontade. A consciência de si mesmos é o que constitui o atributo principal dos Espíritos, o que não ocorre com eles. Dessa maneira, após a morte, os animais seriam classificados pelos Espíritos incumbidos desta tarefa e utilizados quase imediatamente, não lhe dando tempo de estabelecerem relações com outras criaturas. Essa questão é discutida, também, em O Livro dos Médiuns, também de Allan Kardec, no capítulo que trata das evocações, no item 283 que fala da evocação dos animais.
36ª Pode evocar-se o Espírito de um animal?
“Depois da morte do animal, o princípio inteligente que nele havia se acha em estado latente e é logo utilizado, por certos Espíritos incumbidos disso, para animar novos seres, em os quais continua ele a obra de sua elaboração. Assim, no mundo dos Espíritos, não há, errantes, Espíritos de animais, porém unicamente Espíritos humanos. [1]
A questão da presença ou não de animais no mundo espiritual é controversa no âmbito do movimento espírita, uma vez que na literatura espírita, particularmente pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, em “Nosso Lar”, do Espírito André Luiz, relata-se a presença destes sendo aproveitados em algumas atividades. Em certa ocasião, Divaldo Pereira Franco esteve em determinada cidade brasileira para uma conferência e
ao ser recebido na casa que iria hospedá-lo, assustou-se com um cachorro grande, que lhe pulou no peito. A anfitriã percebeu-lhe a reação:
- O que foi, Divaldo?
Foi o cachorro, mas está tudo bem!
Que cachorro, Divaldo, aqui não tem cachorro nenhum!
- Tem sim, esse pastor aí!
- Divaldo, eu tive um cão da raça pastor alemão, mas ele morreu há um ano e meio!
E Divaldo concluiu: - era um cão espiritual! [2]
Entretanto, José Herculano Pires, no seu livro “Mediunidade (Vida e Comunicação)” nos diz que
Há casos impressionantes de materialização de animais em sessões experimentais. Há casos espontâneos de aparições de animais-fantasmas em vários relatos de viagens e de pesquisas psíquicas. Esses casos estimulam a idéia da mediunidade animal. As pessoas que se deixam impressionar por esses casos certamente não se lembraram de que as materializações são produzidas pelos espíritos, que tanto podem materializar uma figura humana, como um par de sapatos ou uma figura animal, Kardec nos dá, em O Livro dos Médiuns, excelente estudo sobre o laboratório do mundo invisível, em que todos esses casos são esclarecidos. [3]
Mas como seriam essas materializações de animais, mencionadas por Herculano Pires? Será que os animais mostravam-se dinâmicos, atuantes, com demonstrada autonomia no meio onde se encontravam? Ernesto Bozzano, pesquisador espírita italiano, desencarnado em 1943, no seu livro “Os animais tem alma?”, que trata de narrativa de casos por ele reunidos, ao se referir a aparição de um “cão desencarnado”, estudando as possibilidades explicativas do fenômeno, aponta que
dever-se-ia excluir a hipótese de uma projeção telepática por parte de um morto, visto que uma projeção dessa natureza provocaria a percepção alucinatória de uma forma de animal plasticamente inerte ou que se deslocaria automaticamente, mas nunca a de uma forma animal consciente do meio em que se acha. [4]
O caso mencionado pelo autor italiano passara-se numa casa com fama de assombrada, onde o narrador e outros membros de sua família observaram a presença de um pequeno cão branco em diversas situações, de maneira atuante, não automática. É compreensível que uma aparição, ou materialização, que não mostrasse dinamismo, que fosse estática, pudesse ser considerada como originada pelos Espíritos, capazes de operar com os fluidos. Agora, no caso supostamente ocorrido com Divaldo Franco e com o apontado por Bozzano em sua obra, é sugestivo acreditar que se tratou, efetivamente, de aparições do princípio inteligente dos animais, que aqui chamamos “alma dos animais” para nos facilitar a análise. Ele, no entanto, mostra-se bastante prudente quanto aos resultados de sua pesquisa quando afirma que
se conseguiu a demonstração necessária para provar a existência e a sobrevivência da psique animal. A hipótese em apreço não podia ser então considerada senão como cientificamente legítima, embora ainda apenas a título de hipótese de trabalho, esperando julgá-la como uma verdade definitivamente adquirida para a ciência quando o acúmulo dos fatos nos permita analisar a fundo este assunto tão importante. [5]
Como se observa, a questão não é simples. Não o foi para Bozzano, como não o era para Kardec que, na Revista Espírita de maio de 1865, diante de uma correspondência recebida que trazia uma narrativa desta natureza afirmou que “os fatos desse gênero não são ainda bastante numerosos, nem bastante averiguados para deles deduzir uma teoria afirmativa ou negativa.” [6] Assim, atenho-me à prudência de esperar desenvolvimento posterior do assunto, de acordo com a postura do Codificador ficando, a princípio, com o que é exposto na resposta da questão 600 de O Livro dos Espíritos.
Na questão 601, Kardec indaga aos Espíritos da codificação se os animais, assim como os homens, estão submetidos a uma lei progressiva, ao que eles respondem afirmativamente, informando ainda que, nos mundos superiores, onde os homens gozam de maior adiantamento, os animais também o são mais desenvolvidos, funcionando para as criaturas humanas como servidores inteligentes. Essa questão coincide com a 591, onde é perguntado se as plantas são de natureza mais perfeita, nos mundos superiores, quando os Espíritos respondem que “Tudo é mais perfeito.” [7] Ressaltam, no entanto, que as plantas são sempre plantas, os animais sempre animais e os homens sempre homens.
Os animais, segundo os Espíritos, progridem pela força das coisas, não por ato de suas próprias vontades. Por isso, não estão sujeitos à expiação. Poderiam, alguns, indagarem, o porquê dos sofrimentos dos animais. Léon Denis, em “O Problema do Ser, do Destino e da Dor” afirma que isso, para eles, já é um trabalho de evolução. Adquirem, desta forma, os primeiros rudimentos da consciência de si mesmos. [8] Arriscaria dizer que, nos seus esforços pela sobrevivência, nos seus contatos com outros animais e, principalmente, com as criaturas humanas, também desenvolver-se-iam de alguma maneira. Porém, no estágio atual em que nos encontramos não temos como quantificar esse desenvolvimento. Penso que isso pode ser possível no mundo espiritual, através da atuação dos Espíritos responsáveis pelo encaminhamento evolutivo dos animais.
Na questão 603 Kardec deseja saber se, nos mundos superiores, os animais conhecem a Deus, ao que os Espíritos informam-lhe que não, que para eles o homem é um deus, como antigamente os espíritos eram deuses para os homens. Penso que esta relação entre os homens e os animais, formulada pelos Espíritos, é extensiva a todos os tipos de mundos, uma vez que, como já vimos, é enorme a distância que separa os animais dos homens. Assim, para eles, os homens funcionariam como uma espécie de divindade. Acho isso plenamente observável em nossos animais de estimação, aqueles que foram, no tempo, domesticados. Já notaram a fidelidade canina? Tenho um cão, chamado Popó, que segue minha mãe como se fosse sua sombra. Se por acaso ele dorme e ela sai de perto, quando ele acorda, ele a segue e revista todos os cômodos da casa atrás dela, só parando quando a encontra. Quando minha mãe esteve internada, ele não entrava em casa quase, ficava na varanda de casa, às vezes no quintal, observando a rua, prestando atenção, aguardando-lhe o retorno. Quando ela volta da rua, é recebida com uma explosiva alegria e toda a delicadeza que um cachorro grande e desengonçado pode demonstrar. E com todas as conseqüências dessa alegria, traduzida em fortes esbarrões.
Não podemos chamar a 604 de O Livro dos Espíritos de uma pergunta. Trata-se de uma afirmação de Kardec, que acumula informações da questão 601 deduzindo-lhe conseqüências.
604. Pois que os animais, mesmo os aperfeiçoados, existentes nos mundos superiores, são sempre inferiores ao homem, segue-se que Deus criou seres intelectuais perpetuamente destinados à inferioridade, o que parece em desacordo com a unidade de vistas e de progresso que todas as suas obras revelam.
“Tudo em a Natureza se encadeia por elos que ainda não podeis apreender. Assim, as coisas aparentemente mais díspares tem pontos de contacto que o homem, no seu estado atual, nunca chegará a compreender. Por um esforço da inteligência poderá entrevê-los; mas, somente quando essa inteligência estive no máximo grau de desenvolvimento e liberta dos preconceitos do orgulho e da ignorância, logrará ver claro na obra de Deus. (...)” [9]
Encadeamentos na obra de Deus que não podemos apreender. Pontos de contato entre as coisas aparentemente mais díspares. Quando nos libertarmos dos preconceitos do orgulho e da ignorância. Estes preconceitos foram aqueles que alimentaram ódios raciais na época de Kardec e, lamentavelmente, na nossa. Foram aqueles que recusaram o estatuto de criaturas humanas, por muito tempo, aos negros, aos índios. Foram aqueles que movimentaram os nazistas comandados por Adolf Hitler no extermínio de judeus e eslavos. Os preconceitos que dividem as criaturas de Deus. Imaginem o terror que assalta aos preconceituosos a possibilidade de que, aqueles de quem eles tentam se diferenciar, são seus iguais... Então, além de terem que lidar com seus preconceitos raciais, com supostas superioridades dos brancos sobre os sujeitos de outra cor de pele, os homens da época de Kardec ainda receberam a “novidade” de existir, entre eles e os animais, sim, os animais, algum ponto de contato. Imagino que alguns, mesmo que se diziam espíritas, devem ter se arrepiado com isso.
No desdobramento da questão (604 a) ficamos sabendo que a inteligência é uma propriedade comum, um ponto de contato entre as almas dos homens e a dos animais, ainda que estes só possuam a inteligência da vida material. Não é novidade, porque essa reflexão retoma a resposta da questão 593, que fala da inteligência limitada deles. A novidade é estabelecer a relação entre ambas...
Nas questões 605 e 605 “a” Kardec, tentando cercar a questão por todos os lados e, quem sabe, para atender aqueles de alguma maneira simpáticos à teoria de que os seres humanos tivessem mais de uma alma, de acordo com as diferentes tendências psicológicas (intelectuais e emocionais) que trariam em si, formula o seguinte:
605. Considerando-se todos os pontos de contacto que existem entre o homem e os animais, não seria lícito pensar que o homem possui duas almas: a alma animal e a alma espírita e que, se esta última não existisse, só como o bruto poderia ele viver? Por outra: que o animal é um ser semelhante ao homem, tendo de menos a alma espírita? Dessa maneira de ver resultaria serem os bons e os maus instintos do homem efeito da predominância de uma ou outra dessas almas?
“Não, o homem não tem duas almas. O corpo, porém, tem seus instintos, resultantes da sensação peculiar aos órgãos. Dupla, no homem, só é a Natureza. Há nele a natureza animal e a natureza espiritual. Participa, pelo seu corpo, da natureza dos animais e de seus instintos. Por sua alma, participa da dos Espíritos. [10]
Essa possibilidade de mais de uma alma habitar o mesmo corpo vez que outra surge em O Livro dos Espíritos, o que me faz supor que era uma hipótese aceita correntemente por certo número de pessoas ou até, quem sabe, pelo o próprio Kardec. Evidentemente, se dele, modificou seu ponto de vista. Quem sabe uma História das idéias psicológicas na França do século XIX não poderia dar pistas para a questão da presença desta idéia? No desdobramento da pergunta, Kardec compreende que, além de nossas próprias imperfeições, das quais temos que nos livrar, temos ainda que lutar contra a influência da matéria. E os Espíritos ainda nos dizem que “quanto mais inferior é o Espírito, tanto mais apertados são os laços que o ligam à matéria.” [11] Imagino que, num calor “selvagem” que faz numa cidade como o Rio de Janeiro (escrevo isso em janeiro para apresentar em fevereiro, pleno verão), para muitas pessoas seja difícil resistir a se banhar na praia, largando responsabilidades maiores. A sobrevivência material coloca-nos necessidades que temos que atender. Essas necessidades tornam-se anormais quando exageradas por nós. Aí temos os casos, por exemplo, dos glutões e dos viciados em sexo. Como é difícil um regime. Como é difícil largar a gordura, o sal e o açúcar! Conta-se que Santo Agostinho, antes de sua conversão, teria dito: “Dai-me a castidade e a continência, mas não agora.” [12] Cada um de nós consegue fazer idéia deste tipo de luta, porque, afinal de contas, vivemo-las no nosso cotidiano.
As almas dos animais são constituídas pelo mesmo princípio inteligente que formou a dos homens, com a diferença de que nestes ele passou por uma elaboração que o coloca acima deles. A questão 607, no meu entendimento, é a chave para o assunto “Os animais e o homem”. Assim formula Kardec:
607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento?
“Numa série de existências que precedem o período a que chamais Humanidade.”
a) - Parece que, assim, se pode considerar a alma como tendo sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação, não?
“Já não dissemos que tudo em a Natureza se encadeia e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totalidade estais longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida, conforme acabamos de dizer. É, de certo modo, um trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos. (...) Acreditar que Deus haja feito, seja o que for, sem um fim, e criado seres inteligentes sem futuro, fora blasfemar da sua bondade, que se estende por sobre todas as suas criaturas. [13]
Falam, ainda, os Espíritos, que a humanização dos animais não se dá na Terra, via de regra, começando em mundo que lhe são ainda inferiores. Entretanto, aponta que isso pode acontecer aqui, não se constituindo isso uma regra, muito mais uma exceção. Eis que os animais evoluem até atingirem a condição humana! Não dá para medir o tempo que leva. Deve ser o tempo que levaremos para compreendermos e “vermos” a Deus. As encarnações em diferentes situações no reino animal seriam ensaios para a vida de Espírito. Deus não faria seres apenas para nos recrearem as vistas, para simplesmente nos servirem. Ao nos servirmo-nos deles, ao desempenharem tarefas, crescem, evoluem. Como? Não sei. A questão pede desenvolvimentos posteriores que, dificilmente, alcançaremos na Terra. “Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente (...)” [14] já nos falava Léon Denis na obra que citamos.
Esta questão, contudo, também não foi de fácil aceitação, mesmo por Kardec. Vital Cruvinel, num artigo na internet, faz interessante estudo do assunto, utilizando-se de passagens da Revista Espírita entre 1860 e 1865. Neste primeiro ano da série, no mês de março, ao estudar os Espíritos das pessoas vivas, Kardec questiona: “65. Pode aperfeiçoar-se ao ponto de se tornar um Espírito humano? - R. Ele o pode, mas depois de passar por muitas existências animais, seja no nosso planeta terrestre, seja em outros.” [15]
Cruvinel aponta que, nos meses seguintes, houve um recuo de posições, com outros artigos apontando para a idéia de que o homem é um ser a parte na criação. Entretanto, depois de dois anos sem publicar artigos sobre animais, Kardec publica dois, colocando um ponto de interrogação na questão.
Da perfeição dos seres criados
Revista Espírita, março de 1864
A questão dos animais pede alguns desenvolvimentos. Eles têm um princípio inteligente, isto é incontestável. De que natureza é esse princípio? Que relações tem com o do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo passando de uma espécie à outra? Qual é para ele o limite do progresso? Caminha paralelamente ao homem, ou bem é o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas espécies inferiores, para receber mais tarde novas faculdades e sofrer a transformação humana? São tantas questões que ficaram insolúveis até este dia, e se o véu que cobre esse mistério não foi ainda levantado pelos Espíritos, é que isso teria sido prematuro: o homem não está ainda maduro para receber tanta luz. [16]
No ano seguinte, Kardec já publica alguns artigos sustentando a idéia da ligação entre a alma humana e a animal, além de indicar os motivos “para que tal hipótese ainda não tivesse sido apresentada como verdadeira.” [17]
Manifestação do espírito dos animais
Revista Espírita, maio de 1865
Mas tudo não se detém em crer somente no progresso incessante do Espírito, embrião na matéria e se desenvolvendo ao passar pelo exame severo do mineral, do vegetal, do animal, para chegar à humanimalidade, onde somente começa a se ensaiar a alma que se encarnará, orgulhosa de sua tarefa, na humanidade. Existem entre essas diferentes fases laços importantes que é necessário conhecer e que eu chamarei períodos intermediários ou latentes; porque é aí que se operam as transformações sucessivas.
Alucinação nos animais
Revista Espírita, setembro de 1865
Essa questão toca preconceitos há muito tempo enraizados e que teria sido imprudente chocar de frente, e foi porque os Espíritos não o fizeram. A questão está iniciada hoje; ela se agita sobre pontos diferentes, mesmo fora do Espiritismo; os desencarnados nela tomam parte cada um segundo as suas idéias pessoais; ... sem adotar tal ou tal opinião, familiariza-se com a idéia de um ponto de contato entre a animalidade e a humanidade, e quando vier a solução definitiva, em qualquer sentido que ela ocorra, deverá se apoiar sobre os argumentos peremptórios que não deixarão nenhum lugar à dúvida; se a idéia é verdadeira, terá sido pressentida; se ela é falsa, é que se terá encontrado alguma coisa mais lógica para pôr no lugar. [18]
Assim, mesmo nesta questão, pendendo para a possibilidade da ligação das almas dos homens e dos animais, Kardec não fecha a questão. Isso será demonstrado quando tratar da metempsicose, nos comentários finais do capítulo, onde ele aponta as duas hipóteses. Como vimos, Léon Denis concorda com a possibilidade. Herculano Pires, na obra citada, entende que “a teoria doutrinária da criação dos Seres (...) revela o processo evolutivo a partir do reino mineral até o reino hominal.” [19] Bozzano acredita que
Uma das melhores definições compreensíveis sobre a natureza íntima dos processos evolutivos nas individualidades vivas foi ditada mediunicamente à lady Cathness, que a transcreve no seu livro Old truth in new light (Antiga verdade com nova luz). (...):
“O gás se mineraliza,
O mineral se vegetaliza,
O vegetal se humaniza,
O homem se diviniza.” [20]
Nesta questão, eu acompanho a preferência de Kardec (a ligação entre a alma dos animais e do homem), posicionamento compartilhado por Léon Denis, Ernesto Bozzano e Herculano Pires.
Na questão 608, Kardec indaga se o Espírito do homem tem, após a morte, consciência de suas existências anteriores ao período de humanidade, ao que os Espíritos codificadores respondem que não, uma vez que não é nesse período que lhes começa a vida de Espírito (quando possuem consciência de si mesmos). Afirmam mesmo ser difícil o lembrar-se das primeiras encarnações humanas, à semelhança do que se passaria conosco com episódios de nossa infância mais tenra.
Na pergunta 609 Kardec deseja saber se, uma vez na condição humana, o Espírito conserva traços do que era anteriormente, ou seja, do período que precede o da humanidade. Os Espíritos respondem-lhe que isso é “conforme a distância que medeie entre os dois períodos e o progresso realizado. Durante algumas gerações, pode ele conservar vestígios mais ou menos pronunciados do estado primitivo (...)” [21] Afirmam, ainda, que com o desenvolvimento do livre-arbítrio, estes vestígios vão desaparecendo. A resposta termina com uma importante reflexão, que nos pode servir diretamente, no entendimento de nossa atual condição evolutiva e dos esforços que devamos fazer para nos modificar para melhor. “Os primeiros progressos só muito lentamente se efetuam, porque ainda não tem a secundá-los a vontade. Vão em progressão mais rápida, à medida que o Espírito adquire mais perfeita consciência de si mesmo.” [22] Os progressos iniciais se dão mais lentamente, na medida em que a vontade se torne mais firme, orientada. A consciência de si mesmo faz com que a criatura humana desenvolva-se mais depressa. Eis que, até no capítulo que trata dos animais, temos a questão da necessidade do autoconhecimento para nosso progresso.
Kardec conclui o tema indagando:
610. Ter-se-ão enganado os Espíritos que disseram constituir o homem um ser à parte na ordem da criação?
“Não, mas a questão não fora desenvolvida. Demais, há coisas que só a seu tempo podem ser esclarecidas. O homem é, com efeito, um ser à parte, visto possuir faculdades que o distinguem de todos os outros e ter outro destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem conhecê-lo.” [23]
Não deixa de ser o homem, pelas capacidades que reúne em si, um ser à parte na criação. Somente que ele é “a parte” no momento atual. Anteriormente não era, quando nas fileiras dos princípios inteligentes que animavam corpos de animais. Na condição humana, pode vislumbrar o conhecimento de Deus.
Eis que, ao final, divido com vocês, minha conclusão. Partindo do princípio de que o princípio inteligente passa por diferentes elaborações, por diferentes experiências, até atingir a condição humana e de acordo com o que é dito nas questões 591, cuja resposta nos informa que nos mundos superiores as plantas também são mais perfeitas, e na questão 601, onde os Espíritos nos informam que os animais, nos mundos superiores são mais adiantados, eu permito-me uma suposição. O princípio inteligente, migrando através da evolução espiritual de um reino para outro (do mineral para o vegetal, do vegetal para o animal e do animal para a humanidade) passa, neste processo, pelo menos três vezes por todas as escalas evolutivas dos mundos. Passa, na condição vegetal, dos mundos primitivos até os mundos mais altos, no grau da hierarquia. Quando tem que tornar-se animal, volta aos mundos primitivos e retoma, novamente, o trabalho, até atingir, ainda uma vez, os mundos superiores, o que se repete quando se torna ser humano e tem que encarnar naqueles mundos primitivos. Essa dedução poderia, muito bem, ter sido feita por Kardec, a partir das respostas que obteve. Como ele foi prudente na questão das relações existentes entre as almas dos animais e a dos homens (ainda que, no meu entender, simpatizasse mais com ela), pode não ter arriscado formulá-la. Eu divido-a a título de hipótese, sem, ainda, querer reivindicar-lhe a paternidade, pois nestas andanças de movimento espírita penso ter escutado algo parecido com isso, que a releitura de O Livro dos Espíritos acabou por me sugerir. Prudentemente, e seguindo a recomendação kardequiana de prudência, espero o desenvolvimento posterior do assunto.
[1] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 1996, p. 368.
[2] Os animais no mundo espiritual. Disponível em: http://www.ippb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3892&catid=81 Último acesso em 19 de janeiro de 2011.
[3] PIRES, José Herculano. Mediunidade (Vida e Comunicação). São Paulo: EDICEL, 1984, p. 50. Disponível em: http://www.meiovirtual.net/cosmica/livros/herculano_pires/herculano_pires_mediunidade.pdf Último acesso em 19 de janeiro de 2011.
[4] BOZZANO, Ernesto. Os animais tem alma?, p. 105. Disponível em: http://www.aeradoespirito.net/Livros3/ErnestoBozzanoOsAnimaistemAlma.pdf Último acesso em 20 de janeiro de 2011.
[5] Idem, p. 150-151.
[6] KARDEC, Allan. “Perguntas e Problemas. Manifestações do Espírito dos animais.” Revista Espírita. Paris, maio de 1865, nº5, p. 2.
[7] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 293.
[8] DENIS, Léon. O Problema do Ser, do Destino e da Dor. Rio de Janeiro: FEB, 1999, p.381.
[9] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 297.
[10] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 298.
[11] Idem.
[12] Da luta Interior à paz da vida nova. Disponível em: http://www.agostinianos.org.br/visualizacao_de_cursos/pt-br/ver_noticia/54 Último acesso em 20 de janeiro de 2011.
[13] Idem, p. 300.
[14] Denis, Léon. Op. cit, p. 123.
[15] CRUVINEL, Vital. “Tudo se encadeia mais ainda.” Disponível em: http://decodificando-livro-espiritos.blogspot.com/2009/03/tudo-se-encadeia-mais-ainda.html#more Último acesso em 20 de janeiro de 2011.
[16] Idem.
[17] Idem.
[18] Idem.
[19] PÍRES, José Herculano. Op. cit., p. 48.
[20] BOZZANO, Ernesto. Op. cit., p. 154 - 155.
[21] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 301.
[22] Idem.
[23] Idem.