domingo, 6 de julho de 2008

Um abraço para todos os amigos


Antonio Carlos Rafael Barbosa é antropólogo formado pela Universidade Federal Fluminense. Produziu esta obra, que é resultado de uma dissertação de mestrado em Antropologia no programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF.

Trata deste assunto urgente, na medida em que o tráfico de drogas não é somente um problema regionalizado do Rio de Janeiro, mas algo que afeta toda a coletividade brasileira, já que encontramos o mesmo, ou parte de seu processo (cultivo, distribuição e venda) em boa parte do Brasil.

Assim, a compreensão do tráfico é um desafio sumamente importante para que se pensem formas eficazes de combatê-lo, não com medidas coercitivas que somente tratam dos efeitos deste, mas buscando, globalmente, os fatores propiciatórios para sua instalação. Dentre estes, poderíamos destacar os problemas sócio-econômicos como o desemprego e a ausência de políticas públicas que atendam as necessidades de saneamento básico, saúde e educação para as classes sociais menos favorecidas. 

Antonio Rafael, então, mergulha neste mundo acompanhando os relatos dos personagens que constroem esta realidade, começando do asfalto para o morro, passando a seguir pela realidade ignorada por muitos que é a prisão. 

O autor, a partir de um ousado viés etnográfico, procura entender por dentro um sistema de poder – o tráfico de drogas – lançando mão de informações de campo para constituir sua obra. Igualmente utiliza-se de informações publicadas nos órgãos de imprensa. Não perde também a oportunidade de informar que manteve no anonimato seus informantes. Os eventuais nomes que divulgue os toma das referências dos órgãos de divulgação.

Na sua apresentação da obra, refere-se primeiramente, a pertinência do assunto. O tráfico de drogas é uma problemática amplamente discutida, seja nas conversas informais de cidadãos comuns, preocupados com sua existência, seja pelos veículos da mídia, pelos políticos e governantes tratando das políticas de segurança pública. Assim, insere-se na questão procurando igualmente discuti-la, à luz dos conhecimentos da Antropologia.

Apresenta um questionamento que confessa não possuir resposta. Trata-se da necessidade ou não de o pesquisador já sair a campo informado a respeito do seu objeto de pesquisa. Apresenta, então, sua experiência pessoal, informando que a preparação teórica prévia serviu-lhe para selecionar aquilo que era de real importância.

Atirou-se ao trabalho começando sua investigação por meio de relações pessoais estabelecidas com usuários de drogas no asfalto. Através destes, pôde ampliar seu raio de ação, estendendo-se do tráfico que ocorre no asfalto ao que acontece nos morros e favelas. Faz questão de mencionar que houveram momentos que precisava confundir-se com seus informantes, porque sua identificação como pesquisador teria sido desastrosa.

Assim, organiza seu trabalho através de pequenas histórias, permeadas por comentários ou não, onde apresenta-nos este quase diário de campo, tratando desta que é uma realidade inquietante.

No seu capítulo primeiro, mostra-nos a “senha”, o indispensável para movimentar esta engrenagem: o dinheiro. Descreve depoimentos do Chefe de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, na segunda metade da década de 1990, onde este fala sobre o bairro de Ipanema e o modismo do verão à época – o apitaço – que era a forma de se avisar aos usuários de drogas sobre a presença da Polícia, onde compara essa atitude a dos garotos que soltam pipa no morro com o mesmo objetivo.

Descreve os nomes que os usuários dão às drogas e fala também das misturas que se fazem a estas com o objetivo de se aumentar a rentabilidade dos pontos de venda.

Apresenta-nos a figura do avião, o elemento intermediário entre o traficante e o consumidor, quando este não deseja o contato direto com o traficante ou o ponto de venda. Este corre o risco pelo consumidor e recebe como paga parte da droga ou dinheiro. Com este personagem, vem à cena a possibilidade da “volta”, a quebra de um acordo entre consumidor e o avião, onde este último trai a confiança do primeiro.

Antonio fala-nos também sobre o que se pode entender por conhecimento, conceito e contexto. Tratam, basicamente, da formação de juízo de valor sobre alguém e se este possui relações amplas com pessoas ligadas ao tráfico.

Um dado interessante apresentado dá conta de uma tentativa, realizada entre as décadas de 1980 e 1990 de se modificar os hábitos de consumo de drogas no Rio de Janeiro. Pretendia-se que os usuários consumissem mais cocaína e, para isso, baixaram-lhe o preço, aumentando o da maconha, praticamente equiparando-os.

O “contato de peso” é uma figura também descrita nesta obra. É alguém que fornece ao usuário uma quantidade maior de drogas de melhor qualidade.

O “respeito às fronteiras”, estabelecida pelos pontos de vendas de drogas, impede que novos “movimentos” nasçam próximos a estas áreas.

Ao delator, aquele que entrega os traficantes e seus pontos de venda à Polícia, é execrado. Quando cai nas mãos dos traficantes, o x-9, o “cagüete” sofre horrores e tem uma morte bárbara.

Sobre a iniciação no vício, o autor faz notar que, muitas vezes, se dá por intermédio de um grupo. Este é constituído por pessoas que, muitas vezes, só utilizam as drogas em determinadas ocasiões, quase sempre, festivas. E falando sobre festas, estabelece algumas ocorrência comuns como os excessos de variadas naturezas, o extraordinário, se manifestando nas transgressões das normas sociais e, finalmente, a comunhão que une os participantes.

Pontua as diferenças de tratamento que se nota quando se trata de viciados na favela, que são chamados de “elementos” (velho jargão policial), e aqueles, igualmente viciados, mas que lá não entram e que são chamados “cidadãos”.

Falando da dependência, faz notar uma gradação no uso das drogas, começando-se pelas ditas mais leves e partindo-se para as mais pesadas, apesar de alguns gostarem mais de umas que de outras, permanecendo consumindo as mesmas.

No subtítulo “A mercadoria” compara o fluxo do capital do usuário ao fluxo de sua necessidade por atender ao vicio. Aponta casos de pessoas que ingressaram no vício para acompanhar alguém a quem devotavam afeto, amor ou paixão e cita também alguns efeitos das drogas nos usuários, como a “falação” – vontade de falar que se perpetua – muito notada nos usuário de cocaína.

No capítulo segundo, o autor trata da “invenção de um problema”, onde sugere que o tráfico de drogas derive da raridade de determinada substância e da conseqüente dificuldade de se obter esta.

Faz alguns questionamentos que merecem ser observados, como este: “até onde um ‘mercado negro’ das drogas é desejado? É produzido pelo próprio mercado, é uma contraparte necessária ao seu funcionamento? Se nenhum ator da cena internacional pode dizer isso em sã consciência, podemos perguntar: e em ‘sã consistência’?¹”. O volume de capital que o tráfico de drogas movimenta é fabuloso. A droga passa por tantos intermediários que o seu preço final é astronômico.

O autor nos mostra o triste papel desempenhado pelo Brasil no mercado internacional das drogas, fornecendo éter e acetona (ilicitamente) aos cartéis colombianos, produtos necessários ao refino de cocaína. Cedemos espaço dentro de nossas fronteiras para plantação, servimos de rota para o tráfico que se dirige aos Estados Unidos da América e Europa e somos um dos melhores locais para se “lavar” o dinheiro desta atividade. Esta sombria movimentação financeira se dá em pequenas cidades na fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru.

No capítulo terceiro, o autor apresenta-nos a favela. O primeiro subtítulo, “a surrada teoria”, discute se a criminalidade está relacionada com a pobreza. Alguns apontam que não e tentam defender essa idéia. Dizem que, se fosse assim, a maioria dos pobres seriam criminosos, o que não é realidade. O porém é que os próprios “moradores da Baixada e dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro incluem entre as primeiras soluções para o problema da criminalidade o combate ao desemprego e aos baixos salários, duas realidades que conhecem muito bem”². A discussão, como vemos, está aberta.

Quando um desconhecido vai à favela fazer algo, é de bom alvitre procurar o pessoal do tráfico e informa-los de suas intenções, do contrário, corre-se o risco de ser abordado de uma maneira muito desagradável, com armas em sua direção.

Falando do “movimento novo” usa o relato de um traficante para descrever como é inaugurado um novo ponto de venda, as relações que precisam estabelecer com alguns contatos que lhe fornecem armas e drogas, geralmente um traficante também.

Com o passar do tempo, o esquema de aviso de perigo para os traficantes nas favelas modernizou-se. No início, eram pipas empinadas que, quando embicadas e recolhidas depressa, sinalizavam que a Polícia estava entrando. Depois disso, os fogos disparados pelos olheiros, que no início, tinham que ser acesos. Depois disso, em alguns lugares, passou-se a usar fogos eletrônicos, bastando para o acionamento apertar-se um botão.

Descreve o processo de “endolação”, embalagem das drogas, que chega a necessitar da divisão entre as drogas. Uma casa com um gerente de endolação para embalar-se cocaína e outra casa, nos mesmos moldes para maconha. 

A estrutura do movimento consiste nos olheiros ou fogueteiros, encarregados de avisar sobre os perigos, o vapor, responsável pela venda, o soldado, responsável pela segurança do vapor, pela da favela toda e pela segurança do “homem” o “cabeça” do movimento. Os gerentes, que controlam o fluxo das drogas e a distribuição dos homens, o braço-direito, o segundo na linha de comando e, finalmente, o homem, o dono do morro. Às vezes, pode acontecer de uma comunidade possuir mais de um dono. Isso, no entanto, é exceção.

A droga irriga o comércio interno da comunidade, na medida em que atrai para esta potenciais clientes para bares e mercearias, além de empregar moradores na endolação. As comunidades desenvolvem atividades para atrair consumidores. Consistem em bailes, festas, ensaios na quadra que atraem clientes para o tráfico e movimentam a economia de setores da favela.

Os motivos para ingressar no tráfico giram em torno dos seguintes temas: pobreza; simples prazer; revolta dentro de casa; o vício; falta de um emprego.

Algumas mulheres sentem-se atraídas pelos traficantes, procurando nestes destaque, status, respeito. Umas das principais causas de mortes nos morros são por causa das confusões envolvendo mulheres.

O autor aborda, também, a natureza das relações mantidas entre traficantes e moradores, que pode ser boa ou ruim. O tráfico, ainda, possui um poder judiciário próprio, na medida em que faz as leis e estabelece as penas, que podem variar de espancamento, expulsão da comunidade ou morte. E uma das leis impostas à comunidade, por exemplo, é a do silêncio. Ninguém nunca viu nada acontecer. O “alemão”, outro exemplo, é o inimigo de outra facção que quando cai em poder de um grupo rival, sofre bastante. Torturam e matam-no sem piedade. Antonio refere-se a um depoimento de alguém que sentia prazer, não em torturar, mas em matar. “Pega gosto” pelo assassinato.

O sentimento de religiosidade dos traficantes também é notado pelo autor. Estes possuem uma simpatia pelas religiões afro-brasileiras, A Umbanda e o Candomblé. Diz que eles se aconselham com os orixás e que estes estabelecem aquilo que devem fazer. Prestam culto a São Jorge, Exu, Cosme e Damião, santos ou entidades desse caldo de culturas que são as religiões afro-brasileiras.

Os motivos de distração dos traficantes, seus momentos de lazer, podem ser uns bailes funk ou uma viagem curta. E quando se fala em baile, lembra-se de música, e os raps, gênero musical por eles apreciado, podem fazer apologia do trafico ou trazer uma mensagem de paz.

E o mundo do crime? Será que os seus vários lados se tocam? Será que assalto a bancos, a carros-fortes ou seqüestros tem alguma relação com o tráfico de drogas? Uns pensam que sim, outros que não. As opiniões se dividem.

Quando são pegos pela Polícia, dependendo do traficante, sua fama, seu papel na área, sua cabeça tem um preço. A Polícia, melhor, sua “banda podre” procura, então, extorquir dinheiro dos traficantes para a liberação do comparsa. Essa extorsão chama-se “arrego” ou “mineira” e, geralmente, o preço é alto. Quando realmente prendem o traficante, usam a tortura para retirar-lhe informações. “Prende-se o sujeito e depois se descobre o que ele andou fazendo²”.

As batidas policiais nas favelas apresentam-se como fatos dramáticos para os moradores, porque os policiais, muitas vezes, abusam de seu poder, invadindo residências sem mandatos, prendendo arbitrariamente e, trocando tiros com os traficantes, as balas perdidas fazendo vítimas.

O autor termina este capítulo falando das ligações entre os grupos de traficantes da mesma facção, num esforço de mútua cooperação.

No capítulo quarto trata das prisões e a primeira frase do primeiro subtítulo diz: “Os comandos nascem dentro das prisões³”. Alianças são feitas aí dentro e levadas para fora das cadeias. Amizade é o que está na base dos comandos. A cobiça, o “olho grande” na área de alguém é motivo de discórdias entre as quadrilhas.

Os traficantes têm a obrigação de dar suporte aos que estão presos, muitas vezes os donos da área. Essa ajuda consiste em dinheiro, advogados ou até dar fuga a estes, já que o maior desejo de quem está preso é se ver livre. O autor encerra o capítulo com um depoimento de Flávio Negão, traficante já morto, onde ele diz que participam do tráfico pessoas que não aparecem e que seriam colarinhos brancos de todos os tipos.

Conclui seu trabalho fazendo um apanhado geral do livro, sempre estabelecendo ligações conceituais com a Antropologia e deixando à discussão sobre tão grave problema uma contribuição valorosa que acompanhamos até aqui, chamada “Um abraço para todos os amigos”.

Notas:
 RAFAEL, Antonio. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, EDUFF,1998.


1) pág. 74
2) pág.119
3) pág.139


Nenhum comentário: